Casa Modesta _ Quatrim do Sul.






























Quando pensamos em ir a um sítio, antecipamos. É inevitável antecipar, naquele gesto primeiro de reservarmos tempo num sítio. Mas essa antecipação nunca é o que será vivido. Umas vezes porque antecipação nenhuma salva. Outra vezes porque antecipação nenhuma consegue ser tão bonita quanto a realidade. Com a Casa Modesta aconteceu da segunda maneira. Li este texto. E mais este. Vi as imagens. Encantei-me com a arquitectura. E com o nome, antes das palavras e das imagens. Mas em momento nenhum consegui antecipar as coisas maravilhosas que vivi na Casa Modesta. Porque nada substitui ou antecipa a vida. E essa é uma das (muitas) verdades sagradas que vamos levando connosco para onde formos.
A arquitectura é uma arte que respira. Porque é uma arte de tocar, de viver. Pelo meio de tudo o que se declina consoante as vidas que a habitam, a poesia contemplativa que pode pressupor. As edificações e tudo o que dizem sem dizer. Este sítio em Quatrim do Sul diz muito e não faz barulho nenhum. A casa fala connosco. Acolhe-nos silenciosamente como se nos conhecesse de há muito e a ela regressássemos muitas e muitas vezes. Assim como se fosse uma figura materna, a casa. Faz sentido que tenha o nome da matriarca da família e que por isso mesmo seja Casa Modesta. Faz mesmo muito sentido que assim seja, porque uma parte da poesia começa depois de dizermos estas duas palavras tão essenciais: Casa Modesta. Como é que uma casa pode ter um nome tão bonito e isso não ser uma coisa de livro ou de filme? Como é que uma casa pode ter uma arquitectura tão sensata e tão parte do sítio onde está? São possíveis as duas coisas, neste lugar especial. Entre muitas coisas que eu não consigo dizer bem, esta casa tem esses dois traços irrepetíveis. Um nome e uma alma. 
No tal momento de antecipar aquilo que viveria ali, não consegui prever aquele horizonte limpo para a Ria Formosa. Nem aquele silêncio verde-seco, só atravessado por umas braçadas mais vigorosas na piscina ou pelas vozes tranquilas das pessoas que habitam a casa. Nem os céus cheios de estrelas que contemplei em silêncio, deitada num almofadão de palha e de trapos, na açoteia do quarto. Nem os pequenos-almoços deliciosos e generosos. Também não sabia das conversas que teria com uma mulher muito bonita, a arquitecta que desenhou este sítio, a partir da casa de família dos anos 40. Mas aquilo que eu não sonhei de todo foi que faria comida na Casa Modesta. Não isso. Por vezes, a vida ultrapassa aquilo que em nós sonha.
A meio de uma das conversas com a Vânia, a excepção muito grata de poder fazer comida numa altura do ano em que isso não é hipótese. Ela leu-me bem, creio. Ligou à mãe para saber o que é que estava disponível no momento e a partir daí, começou a acontecer uma memória muito bonita. Fiquei feliz como eu fico e que é assim como se fosse criança e preparei um gin tónico para o homem alto, com as costas largas de quem nada muito, que até quando está na água lê e sublinha. Depois disso, desapareci, que tinha uns assuntos muito importantes a tratar na cozinha da casa:) Na bancada, um pato generoso, criado ali perto pelo pai da Vânia, o marido da mulher que deu nome à casa. Foi feito com o tempo e com o respeito que merecia e com a ajuda atenta da mulher que é uma parte significativa da alma daquele sítio, a Guida. Ela acolheu-me e esteve perto de mim o tempo todo. Enquanto desfiava o pato previamente cozido num caldo de laranjas e de funcho colhidos ali mesmo. Enquanto fazia o arroz dourado de frutos secos e cortava as amêndoas e os figos e salteava aqueles pedaços de carne densa e escura como eu nunca tinha visto. Aprendi com ela muitas coisas silenciosas que a comida sempre ensina. Entre elas, a receita que será a receita que ficará com o texto e com as imagens da Casa Modesta, a da salada verde-lima-mel que ela fez. O facto de não publicar receitas que não tenha feito (pelo menos) três vezes impede-me de deixar aqui a receita do pato delicioso que fiz neste sul tão especial. A seu tempo, sim. Tudo tem um tempo certo para acontecer. Neste caso, precisarei de reproduzir aquela comida e de ir apontando as coisas, porque fiz tudo de coração, a medir os temperos por ir provando e por ir pedindo coisas à Guida, ao ritmo do que a comida e o fogo pediam. Quando tudo estava pronto, ela pôs a mesa, o homem da Vânia foi à adega buscar um vinho do Algarve e a Dona Modesta tinha feito um doce ligeiramente cítrico e com a densidade boa dos doces do sul. Depois, o jantar. Depois, a graça de chuva numa noite quente de Agosto. Não consigo dizer o cheiro da terra, nesse momento. E não é coisa que se consiga dizer, parece-me. 
O inesquecível é uma arquitectura muito particular e, quanto mais improvável ou imprevisível for, melhor. A única coisa que realmente possuímos é a memória. Tudo bem que isso cessa mal morremos. Hemingway dizia que ele sabia uma coisa que os animais que ele caçava não sabiam. E essa coisa era esta: tudo morre. E é por aí. A noção libertadora que vem, quando olhamos a nossa finitude nos olhos, não desviamos o olhar e fazemos a melhor coisa que podemos fazer: vivermos com tudo, por inteiro. É disso que se trata, na Casa Modesta. De viver de acordo com uma lógica muito solar, que se orienta pela cadência das estações do ano, por aquilo que a terra próxima dá. As minhas memórias deste lugar são maravilhosas. E não são estáticas ou uma coisa anterior e que fica arrumada. São vividas, tal como a arquitectura da casa. A começar por isto: o mel e a lima nas minhas saladas verdes serão sempre a memória da Casa Modesta e das pessoas que a habitam. 
Antes de acabar este capítulo, mais uma coisa que me parece fazer todo o sentido. Há uns meses largos, soube-se que os senhores das petrolíferas se lembraram de ir brincar às prospecções no Algarve. Como sempre, esta gente está muito à frente. E então, quando as economias que têm por base o petróleo estão a afundar-se vertiginosamente, estes senhores que fazem muitos gráficos e muitas previsões que nunca acertam e que só lhes garantem remunerações e prémios de gestão que premeiam a incompetência, acharam que era uma boa irem para o Algarve. Eu disse que esta gente das gestões era muito à frente, não disse? Tão à frente que estão a ficar para trás e não percebem (ou não querem perceber) que o petróleo do Algarve não é aquele que eles pensam e que o futuro não é negro-petróleo. O futuro é verde e o verde não arrasa com o azul do mar. Deixo este texto da Sílvia, que foi através dela que assinei há uns meses a petição que diz que não, que o Algarve não precisa de plataformas petrolíferas. O link está lá, no texto que ela escreveu, mas eu deixo-o também aqui. À consideração. 

E agora, com a benção da Guida, a salada verde feita com as coisas que fomos buscar à horta da casa. 

Salada da Guida da Casa Modesta

As folhas das alfaces que quisermos + rúcula selvagem + figos frescos + raspa de uma lima + flor de sal + azeite + vinagre balsâmico + mel + grãos de pimenta rosa (moídos na hora) + sementes de sésamo + folhas inteiras de hortelã

Espalha-se as coisas verdes numa travessa ou num prato largo. À volta, os figos cortados em quartos. Salpica-se com pimenta rosa e com sementes de sésamo. Numa taça, a flor de sal, o azeite, o vinagre, o mel e a raspa da lima (deve usar-se um raspador fino). Mexe-se e reserva-se. Tempera-se a salada quando toda a gente estiver sentada à mesa. 

A música é esta. Nothing's gonna hurt you baby. Às vezes sentimos assim. Que nada nem ninguém. 


12 comentários:

  1. Olá Mar,

    Extraordinário este texto! Por tudo o que descreve e pela referência que deixa.

    Nunca tinha ouvido falar da "Casa Modesta".

    Estivemos a 20 km uma da outra, 20 minutos de distância.

    Continuação de boas férias, que já percebi que estão a ser.

    As minhas estão quase, quase a começar.

    Um beijo do Algarve,

    Sandra Martins





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    1. Olá Sandra,

      Que bom que gostou. Muito especial, a Casa Modesta. Mesmo muito especial. Não tinha ideia de que ficava tão perto de si. Não sou impositiva, Sandra. Creio que entende o meu ponto.

      Estas férias, dentro de tudo aquilo que me é maravilhosamente habitual e por motivos que não são para aqui, estão a ser muito diferentes.

      Um bom descanso, nas suas férias a começar. E um beijo.

      Mar

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  2. Olá Mar,

    Sim, entendo o seu ponto. Mas, agora que já conhece também o interior do Sotavento algarvio, para o ano dê uma oportunidade a São Brás.

    Temos por cá não uma "Casa Modesta" mas uma "Casa da Barreira". É um sítio muito bonito e agradável para tomar um gin, por exemplo.

    Pode ser que troquemos frascos.

    Julgo perceber também a que refere no segundo parágrafo. Depois de uma situação difícil como aquela porque passou/passaram há uns tempos atrás, o tempo de descanso em família sabe ainda melhor.

    Com as condicionantes necessárias, quando é o caso.

    Gostaria de lhe perguntar se acha que a sua receita de gelado de frutos silvestres resultará com figos.

    Ou se tem alguma que eu possa usar.

    No Verão do ano passado não houve abundância de nada mas, este ano sim.

    Agora no fim de Agosto tenho comido imensos figos ao natural, já fiz doce, conserva, batidos e também congelei. Daí a ideia do gelado.

    Muito obrigada por tudo.

    Um beijo do Algarve,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Não sei se resultará fazer essa receita de gelado usando figos. Nunca fiz. Mas nada como experimentar. Nesta altura do ano, costumo fazer figos inteiros em calda. São uma sobremesa maravilhosa, com o meu gelado de natas básico. Vou deixar a receita por estes dias.

      Obrigada pela referência que deixou. Sempre bom saber de coisas boas, de lugares bonitos.

      Um beijo para si.

      Mar

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  3. Muito feliz esta passagem neste lugar. Muito bonita a alma que nos contas esta casa, pelas palavras e pelas fotografias, mas muito pela tua expressão contente enquanto me contavas esta descoberta. Tão bom quando assim é! Quando um espaço nos consegue contar a sua história :) E eu que ainda não comi figos este ano :) Tenho que fazer esta salada verde-lima-mel !

    Um beijo grande ! Tenho a tua encomenda .) i call you
    Piping

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    1. Lembrei-me de ti, do teu Pedro arquitecto. Muito linda, a Casa Modesta. E sim, a salada é uma daquelas coisas. A lima e o mel ficam mesmo bem.
      Temos de resolver isso dos figos e eu sei como:) Ainda hoje, que é o dia ideal. Ligo-te mais logo, para ir ao teu encontro.

      Feliz aniversário, Pipinha! Um beijo grande.

      Isa

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  4. Que lugar lindo, Mar. Gostei tanto das imagens maravilhosas e do teu texto tão bonito. E que bom que foste feliz na casa modesta. Que a viveste e que a sentiste. É isso que é importante, o que vivemos e o que fica em nós.

    Retenho duas frases tão certeiras e bonitas:

    Por vezes, a vida ultrapassa aquilo que em nós sonha. Concordo tanto.. E, a única coisa que realmente possuímos é a memória. É tão verdade, Mar. E dá-nos a devida noção da nossa finitude.

    Gostei muito, e já tinha tantas saudades deste cantinho e tuas ;)

    Um beijinho grande para ti e obrigada pelas coisas bonitas e preciosas que aqui nos deixas ❤

    Cláudia

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    1. Muito linda, a Casa Modesta. Aquela luz de Agosto. As pessoas. As minhas memórias daquilo tudo. E as tuas palavras. Obrigada, querida Cláudia.

      Também tinha saudades. Tuas. Deste meu sítio. Um Setembro atípico, o que estou a viver. Mas necessário. As coisas estão quase nos seus lugares. Em mim e fora de mim.

      Nada a agradecer:) Obrigada a ti. Espero que tenhas passado os dias maravilhosos que mereces, aqui no nosso sol.

      Um beijo.

      Mar

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    2. As tuas palavras sobre um Setembro atípico, deixaram-me inquieta... Espero que estejas bem, tu e os teus, querida Mar.

      Foram dias muito bons, cheios de luz e de sol, nesse nosso cantinho.

      Outro beijo grande para ti. ❤

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    3. Está tudo bem, linda Cláudia. Atípico de diferente, de estar a ser diferente.

      Tão feliz por teres tido esses dias de sol. Mesmo muito feliz.

      Um beijo grande para ti. Obrigada e carinho aí para longe.

      Mar

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  5. Olá Mar,

    Fiquei fascinada com estas fotos e com este post sobre uma casa que acolhe! Este devia ser um pressuposto de todas as casas, mas esta de facto tem personalidade, porque respira carinho e dedicação em cada pormenor! Nós quando vamos ao Algarve ficamos sempre nas Termas de Monchique, porque para nós também é um lugar muito especial, mas esta experiência na Casa Modesta merece ser também vivenciada. Já não será este ano, mas no próximo, se os astros se alinharem. Referência anotada.

    beijinhos aqui da ilha

    Patrícia

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  6. Olá Patrícia,

    Que bom que sim, que o texto e as imagens tiveram esse efeito em ti. A Casa Modesta é, toda ela, feita de detalhes cheios de alma. A arquitectura serve essa alma. Não a mitiga, não tenta escrever por cima.
    Que os astros se alinhem, então.

    Um beijo aí para a tua/vossa ilha.

    Mar

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