Julho, o mês-sol.





















O Verão está a acontecer outra vez. E é sempre tão fácil. Em mil e uma coisas, tem a ligeireza de uma rapariga de cabelos soltos e pés descalços. O que quer que aconteça, aquela leveza estival. Acordar e adormecer. Começar e recomeçar. Terminar coisas e deixar que elas respirem o que tiverem de respirar, até que sejam só uma paz qualquer em nós.
Ter nascido sob o signo do sol determina amar os dias de Verão como entidades sagradas e prestar-lhes um culto quotidiano mais intenso do que em todas as outras estações. E não precisar (nem conseguir) enumerar as razões do meu amor sagrado pelo Verão. Tal e qual como no poema: quando puderes dizer o teu grande amor/deixa o teu grande amor de ser grande. Assim mesmo. É uma coisa de viver. isso. A frescura muito limpa das manhãs, antes de o mundo começar a aquecer. O céu azul-livre. Os sons e os cheiros. Uma luz que só agora. As declinações infinitesimais da luz dos dias. As luzes que alumiam as noites longas de Verão. A lua. As estrelas. A chama das velas. 
E é altura de as refeições serem quase sempre lá fora. O espírito é fácil como um dia de Verão. Não é preciso pensar muito, nem tomar grandes decisões. A aritmética é simples e imediata como beber água fresca. A mesa recebe tudo e fica pronta assim sem mais. A história de cada Verão passa muito por aquela mesa lá de fora. Os almoços ligeiros. Os jantares que se prolongam até que as conversas sejam um quase sussurro pelas noites dentro. As celebrações a propósito de pequenas coisas. Quase sempre inesperadas, quase sempre sem antecipar nada ou quase nada. Jantares de improviso. Mesas sem lugares marcados. Tudo lá fora. 
Este ano, as hidrângeas estão mais bonitas do que em todos os outros anos. Muitas, que são. De cores diferentes e misturadas. Guardar e celebrar isso como o acontecimento maravilhoso que é. Cada grão de areia que é o nosso tempo de vida. Sempre a escorrer, num movimento contínuo e imperceptível. Por isso é que volta e meia viro ao contrário a ampulheta que é vidro frágil como o tempo. Só para não me esquecer que isto tudo é sempre areia que nos escorre dos dedos. Face a essa espécie de clepsidra movida a areia, viver. Ir lá para fora e perceber o lugar exacto de cada coisa e gostar mesmo é de ver a mesa a ser vivida, com os objectos mexidos e trocados de lugar. É assim que gosto mais de ver as mesas. Nessa fase em que o bom é que esteja mesmo desalinhada e confusa e sonora.  
O Verão cheira a orégãos do Algarve e a pimentos padrón. Sabe a vinho branco muito fresco e a limonada gelada. O Verão é ouvir o som dos talheres e do tilintar dos copos lá fora. O Verão é sentir que as tortillas sabem ainda melhor. A magia dos ovos, que se transformam em coisas deliciosas e fáceis assim como o Verão. E sempre, os livros. Este era um daqueles livros adiados. Tens de ler o Stoner. Tens de ler. E eu li. Um livro que nos muda por dentro. Há muito que não me caíam as lágrimas no final de um livro. E sim, tenho a noção de que não é uma imagem de acordo com o espírito ligeiro de Verão. Mas também não é esse o meu entendimento dos livros. Aquela cena de "leituras de Verão". Isso é suposto ser o quê, ao certo? No meu caminho, algumas das leituras mais difíceis (e mais apaixonantes, também), aconteceram em tardes e em noites quentes de Verão. O Eça que o meu pai tinha dito para ler mais tarde e não aos doze anos. A Agatha Christie e a Patricia Highsmith. Os dilemas morais da literatura dos russos enquanto velava as sestas das crianças de quem tomava conta, nos meus trabalhos de Verão como babysitter. E à noite, com aquela liberdade e com aquele silêncio que só mesmo à noite. Foi sempre assim. E que assim continue, porque nem sei, se me faltasse esse oxigénio. A personagem deste livro que me fez chorar na última página é uma pessoa boa do início ao fim. E do início ao fim, tudo lhe é mau e difícil. Subverte os nossos códigos quase infantis que esperam sempre que às pessoas boas aconteçam coisas boas. Uma personagem inesquecível e tocante, o invisível professor Stoner. Pelo John Williams que foi um escritor quase imperceptível, enquanto viveu. 
E está. Mais um Verão a começar outra vez. No início do mês-sol. Julho é tecido de luz. 

A música é dos Massive Attack. Vão estar aqui, num destes dias de Julho. O trip hop da cidade cinzenta de Bristol, num dia luminoso de Verão. Os contrastes são bons. 


11 comentários:

  1. Lindas palavras, as tuas, para descrever o Verão. Aproveitemos esta ligeireza desta época do ano, condimentando-a com um pouco de complexidade (concordo, os contrastes são tão interessantes).
    Um beijinho *

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    1. Obrigada, linda Ana. E sim. É como na comida. Condimenta-se um bocadinho, para isto tudo ter (ainda) mais sabor. Um Verão maravilhoso para ti!

      Um beijo.

      Mar

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  2. Que lindo post! Tudo é leveza e alegria. Gostei muito das hortênsias/ hidrângeas, das heras, dos pratos amarelos, dos sabores mediterrânicos, da música...
    Há muito que não choro no final de um livro. Quando ouço alguém falar disso, lembro-me sempre do dia em que a minha mãe entrou no meu quarto, sem se fazer anunciar, teria eu 14 ou 15 anos, e estava a acabar A Dama das Camélias. Nunca mais chorei daquela forma. Não sei se o voltarei a fazer.
    Hoje foi o meu primeiro dia de verão. Ainda não tinha conseguido comer cá fora. O tempo tem estado mau e na hora de pôr a mesa, achámos sempre arriscado e acabámos por comer no interior. Hoje não. Hoje foi pleno. E fomos à praia. Ainda não tinha ido à praia este ano. Apesar de evitar praia ao domingo, o dia esteve tão lindo que não resisti. Neste momento, escrevo-te na mesa do jardim onde jantámos. E está-se muito bem :)

    Um beijo grande,

    Ilídia

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    1. Que bom que gostaste, minha querida. E sim, leveza e alegria. Por ser Verão e porque o Verão determina que haja hidrângeas e mesas lá fora e muitas outras coisas que só agora.
      Não voltarás a comover-te como nessa circunstância. Há coisas que são só irrepetíveis. Se agora voltasses a esse livro sentirias coisas diferentes. E isso não é mau, creio. O tempo a passar em nós, por nós, é uma benção.
      E fico mesmo feliz por esse teu/vosso domingo. Dias bons para vocês. Muitos.

      Um beijo.

      Mar

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  3. Vir aqui é sempre um presente, sabes... quando abri a tua página e comecei a ver as imagens, foi precisamente este pensamento que me surgiu. Sabes, quando tens uma revista ou um livro que adoras e aguardas aquele momento para ler ansiosamente em sossego, em paz, para conseguires dar a atenção devida ? O teu cantinho é isto e muito mais. É o meu presente. E é o meu presente especial, porque quem o escreve é sem dúvida assim. Muito especial. Muito doce. Já te disse que gosto muito de ti, pessoa bonita ?


    Ah o Verão, Mar... o teu texto é uma lufada de sol, de coisas boas, que me deixam tanta saudade... dos dias grandes com sol até tarde, do calor, das noites bonitas, das refeições leves, dos pés descalços, das conversas boas... de tudo isto e muito mais. Por qui vive-se uma Primavera bipolar, com mais chuva que dias de sol, de tal forma que quase me esqueço que já é Verão.

    A tua metáfora da ampulheta e da areia, é algo que me lembro sempre, quando deitada na praia agarro num punhado de areia e ele escorre rapidamente por entre os meus dedos... a vida, as nossas vidas, têm todas esta finitude, umas mais devagar, como a ampulheta, outras mais rápido, como a velocidade com que escorrem das nossas mãos. E nós que vivemos muitas vezes, como se fôssemos viver para sempre...

    Fiquei muito curiosa quanto ao livro ;) E gostei da música bonita. :)


    Um beijinho grande, querida Mar e dias bonitos e leves para ti, como a frescura de um Fizz num dia de Julho. E Julho, o teu mês, é um mês muito bonito. É mesmo um mês sol. ♡

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    1. Sei bem o que é:) E agradeço-te muito, querida Cláudia. O teu carinho e a generosidade com que (me) escreves é muito linda. Quando se tem um blog há tanto tempo, vai-se percebendo uma coisa inevitável: as pessoas vêm e vão. Não se sabe que ventos as trouxeram nem se sabe que ventos as levam. Seja como for, gosto muito do vento que te fez chegar aqui.
      Imagino que tenhas muitas saudades destas enumerações de Verão que são daqui, deste nosso sol. Mas há-de haver coisas lindas de Verão que só aí. Confio que seja assim.
      Isto tudo passa rápido. Daí a música e os livros e a comida e o sol e as pessoas que nos fazem bem.

      Um beijo grande para ti também. Dias lindos de Julho:) Obrigada.

      Mar

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    2. ;) Eu não deixo de vir aqui. Podem passar dias, posso nem sempre vir logo, mas este teu cantinho apaixonou-me desde o primeiro texto que li e comentei. Que se a memória não me atraiçoa, penso que foi a rapariga do Lidl :) Não há vento que me leve daqui. ;) E também eu, gosto muito do vento que me trouxe até ti.

      As saudades são muitas, mas sim, claro que sim. Há coisas bonitas, em todos os lugares do mundo, não é ? :)

      Passa mesmo rápido demais. Daí que tudo o que enumeraste, seja tão, mas tão importante e essencial. Tudo e todos os que nos fazem bem e felizes. É isto que importa.

      De nada, doce Mar. Continuação de dias lindos para aí, para ti e para os teus.

      Beijinhos

      Cláudia

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    3. Vens por bem, linda Cláudia. Sinto assim. Obrigada. Sempre. Pelos tais ventos indizíveis. Por ti. Pelas tuas palavras sempre generosas.
      O tempo a passar é uma dádiva. Um movimento que tem tanto de imperceptível como de mágico.

      Muitos dias lindos para ti também. Para os que amas. Longe ou perto.

      Um beijo.

      Mar

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  4. Que luminoso! As cores tão intensas. Verão é alegria numa estação.

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    1. Muita luz de Verão. E aquela alegria que é sol invencível.

      Um beijo grande para si, querida Ana.

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  5. Olá Mar, além dos textos e das receitas que partilha,( muitas das quais já testei) adoro os objetos que vai mostrando nos vários posts. Lindos! Gostaria de lhe perguntar onde comprou a mesa de jardim que aparece nas fotos. Obrigada. Bjs Margarida

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