Sol.















Os dias de sol. De sol a sério, franco e inequívoco. Sol que dá (ainda mais) vontade de deixar lá para trás a memória de cada Inverno literal ou metafórico em que a possibilidade de sol parecia invenção de um deus louco. E com sol, é mais fácil. Parece tudo tão mais fácil. Cada uma das enumerações imperceptíveis dos nossos dias com aquela ligeireza boa. E acordarmos como páginas limpas de um caderno novo. O jogo que parece que é repetido e antigo como o mundo é este: andarmos sempre entre dois pólos, feitos trapezistas. O quente e o frio. A luz do sol e o cinza das nuvens. O doce e o amargo. A felicidade e a infelicidade. O bom e o mau. Os opostos todos que a vida engendra e que nos dão hipóteses maravilhosas de persistir, de resistir, de reinventar. De baralhar as cartas e de dar de novo. E, claro, sempre naquela instabilidade muito frágil. Fio invisível que nos sustenta e que nos abre os caminhos. Tantas e tantas vezes sem rede. 
Por estes dias de sol, a aritmética titânica da filosofia anglo-saxónica a preencher o meu tempo. O tempo do dia, quando a vida dá para isso. E muito e sempre, o tempo da noite. Resisti tanto e durante tantos anos à filosofia assim desta maneira, sem personagens e sem enredos. A cada página de cada um dos ensaios que tenho lido, parece-me inconcebível essa omissão voluntária. Neste livro das imagens, muito especialmente. A racionalidade a pôr em evidência a injustiça esquizofrénica do nosso tempo. Como se fosse um daqueles jogos de construção com blocos de madeira. Lógico e sereno, com as peças a encaixar-se. Tudo nos seus lugares devidos. Tudo uma questão de tempo e de paciência. Sempre com exemplos muito concretos e muito noticiados e muito próximos das nossas memórias colectivas. E a partir desse ponto, a mente brilhante deste filósofo a trabalhar e nós a (tentarmos) acompanhar. Tenho feito uma viagem pelos meandros do utilitarismo, neste e em outros livros. Parece-me que não serei a mesma pessoa, quando chegar ao destino desta viagem. E não foi por falta de aviso do homem que sublinha os livros todos antes de mim. Segundo ele, livros destes são perigosos, nas mãos de pessoas como eu. Mas isso não o impediu de os dar a ler:) Para além do livro, deixo uma das aulas (repletas) deste professor, na Universidade de Harvard. Cinquenta e cinco minutos preciosos, assim queiramos. Fica aqui, então. Mais a água silenciosa, tal como a vejo de um dos terraços da minha casa-ilha onde todos os errados acabam por dar certo. E uma coisa linda dos dias de sol: pés descalços, pulseira de prata velha no tornozelo e o meu vestido preferido. A dar as boas-vindas a um dos meus meses mais especiais. Maio é agora outra vez e não consigo dizer a minha alegria por ser Maio outra vez e assim. Com este sol, a juntar-se ao sol que está em mim, haja as nuvens cinzentas que houver. 
Mal os livros que estou a ler descansam das minhas mãos e dos meus olhos, fazer coisas que parecem fazer-se sozinhas, tais os movimentos anteriores. Como esta tarte. A Tarte Tatin que faço há anos e sempre com o mesmo resultado silencioso, mal a sirvo. Nunca a faço sem me lembrar que esta delícia nasceu de um erro, de um lapso, de um esquecimento. E as ressonâncias interiores disso tudo. Claro que sim. Os erros têm dentro essa possibilidade. A de podermos olhar para eles e pensar que não há nada a fazer e que o caminho é o da eliminação pura e simples. Ou então não, tentamos fazer com que dali nasça qualquer coisa maravilhosa. Esta tarte é assim mesmo. Erro que deu em maravilha delicada. Fica ainda melhor servida com este gelado. Nunca consigo fotografia desse momento mágico em que as natas geladas se fundem com o caramelizado denso da minha Tarte Tatin. É que coisas destas são urgentes. Quando é assim, não dá para registos. Vida real a chamar da mesa:) 

Tarte Tatin

1 embalagem de massa folhada (redonda) + 5 maçãs (da variedade Pink Lady, que consigo encontrar sempre aqui) + 100 gramas de açúcar (uso sempre este, que fica melhor e encontro-o aqui) + 100 ml de vinho do Porto + 1 vagem de baunilha + 1 colher (de sopa) de manteiga

Leva-se ao lume o açúcar e o vinho do Porto numa sertã. Deixa-se caramelizar durante cerca de três minutos. A seguir, junta-se as maçãs, abertas ao meio e descaroçadas, a manteiga e a vagem de baunilha, depois de aberta ao meio e de retiradas as sementes com uma faca. Dá-se uns três minutos para que cada lado das maçãs fique cozinhado e, antes de se cobrir com a massa folhada, deve ter-se em atenção que a parte descaroçada das maçãs deve ficar virada para cima. Cobre-se a sertã com a massa folhada, tendo o cuidado de manter dentro os limites da massa. Vai ao forno a 180ºC entre 15 a 20 minutos (este tempo depende dos fornos, por isso é que convém estar-se atento da primeira vez que se fizer). Eu costumo servir na sertã, por achar que fica bem e também por pragmatismo, para que o caramelo não se disperse. Para que seja assim, mal sai do forno, inverto-a para um prato largo, volto a colocar a sertã por cima e devolvo-a. Esta é a parte que eu acho mais difícil deste processo todo. Tudo o mais, é fácil, bem no meu espírito descomplicado de fazer as coisas:) 

A música é dos Massive Attack. Protection. Trip hop + a voz doce da Tracey Thorn. Música eterna. 

4 comentários:

  1. Que linda a tua tarte! Nuca fiz tarte Tatin... tenho que experimentar.

    Ah e os dias de sol, tão bom... e a falta que o sol me tem feito... por aqui tem chovido tanto.. Mas desde ontem que o sol voltou e eu não resisti a um passeio ao fim da tarde, com um sol morno, primaveril, de Maio. E eu sou como tu, gosto muito do mês de Maio, nem sei bem explicar por quê... Talvez porque já não nos engana (tanto), já não chove, como em Abril, já se sente calor, mas não tanto como no Verão, talvez seja por isso tudo ;) Maio é uma promessa de sol. Maio é um mês Sol. Assim como tu, pessoa Sol, pessoa Bonita! :)

    Um beijinho grande para ti e um bom fim de semana ♥(seria muito bom, com sol, mas parece que o tempo por aí não está assim tão bom, outra vez, não é ? )

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    1. Pessoa sol é bem lindo:) Tu também, querida Cláudia. Muito solar, tu.
      Tens mesmo de experimentar fazer esta tarte. Fica uma daquelas coisas, especialmente combinada com gelado. Quase magia:)
      A chuva deu umas tréguas e aproveitei até ao último raio de sol. Nada muda aquilo que já se viveu. Entretanto, o fim-de-semana será para coisas aconchegantes em casa. Sofá, mantas quentinhas, episódios guardados do Anthony Bourdain para ver e fazer comida com a tranquilidade boa dos dias de chuva. As promessas interiores são essas. Que assim seja.
      Todos os meses têm uma marca qualquer, mas o mês de Maio é-me muito. Está ali na transição entre uma coisa e outra. E cheira a flores por todo o lado. A flores de laranjeira e a lilases. São os aromas de Maio.

      Um beijo para ti. E os dias lindos que mereces.

      Mar

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    2. Ohhh obrigada, Mar :) Tenho que experimentar mesmo. Pois e com gelado, então ;)

      Sim, os dias de chuva, também nos trazem isso. A tranquilidade, o conforto da nossa casa, vermos o que mais gostamos. Também gosto, e muito.

      É isso mesmo, Maio é um mês de transição e de flores, sem dúvida. Esqueci-me de mencionar isso anteriormente. Cheira mesmo muito a flores e pelos campos, às várias árvores, até acho que o calor, também tem na terra um cheiro muito característico. Não sei explicar, mas não é só a terra molhada que tem o seu cheiro (e que eu adoro). :)

      Outro grande para ti. E dias também bonitos, cheios de luz, cheios de cheiros bons, como os lilases e as flores de laranjeira. Tu também mereces.❤

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    3. De nada. É de coração, querida Cláudia.

      E sim, a terra tem um cheiro muito particular, nos dias quentes de Maio. Pensei nisso há uns dias. Maio e Junho têm um aroma qualquer que eu não consigo dizer. Hoje choveu como se fosse Janeiro. Mas soube tão bem. Sabem tão bem estes intervalos. A Natureza é sábia. Ela sabe o que faz. Bem mais e melhor do que nós, que nos enganamos tanto.

      Um beijo aí para longe. Que tenhas tido o teu dia de sol.

      Mar

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