Pão.
















Se pensarmos bem, as comidas de que mais gostamos são (quase) sempre muito simples, muito essenciais, muito afectivas, muito humildes. Estas variáveis acabam por estar sempre lá, nas nossas comidas mais gostadas. Podem até nem ser todas, mas estão lá. Porque, se pensarmos bem, as vontades mais flagrantes e mais imediatas não vão buscar a ideia a mesas de banquetes ou de restaurantes com estrelas. Por mais que a vida até se queira temperada, com os doces e com os amargos todos a que temos direito enquanto andarmos por aqui. E creio que todas as variáveis começarão nesta variável muito importante: na humildade. As coisas lindas e virtuosas das comidas muito humildes. As que nos lembram que, pelo meio da privação e da necessidade, muito de maravilhoso pode acontecer. As gastronomias das geografias todas parecem ter sempre este dado elementar dentro. Todas elas contam esta narrativa paralela, pensando bem. Nutrir com o disponível. Alimentar muito com pouco. Comida de guerra. Em dias de guerra e em dias de paz. A intuição sábia das mulheres fortes. Os hábitos com lastros difíceis de traçar. E tanto, tanto disso de transformar as coisas, de as tornar melhores. Se pensarmos bem, é disso que se trata, nisto da vida. Há o mau, há o terrível, há o incompreensível, há o imponderável. Todas as perplexidades que conseguirmos enumerar parecem querer contar essa história de fazer com que isto até possa ser um bocadinho melhor. Queiramos nós. Esse é o ponto de encontro mais importante. Quando aquilo que não conseguimos comandar coincide com aquilo que em nós está aos comandos. Ou então, podemos sempre remeter para um Alto Comando qualquer e chamar-lhe destino ou deus ou assim e ficarmos por aí. Podemos fazer acontecer alegria na noite mais escura. Penso assim. Penso tanto assim. Depois de tantas noites mais escuras, aquela alegria inextinguível. 
Pensar em pão seco, por exemplo. Pão seco pode ser uma coisa maravilhosa. Ou várias coisas maravilhosas. Pão seco pode ser uma açorda. Pão seco pode ser torrado e barrado com manteiga. Pão seco pode ser transformado num doce que nos faz agradecer estarmos vivos. E pão seco também pode ser isto das imagens. Pode ser a base de uma salada saciante e deliciosa. Pedaços de pão seco, um fio de azeite, umas ervas também secas e um forno quente. A seguir, a salada acontece com o que quisermos ou com o que tivermos disponível. Mas a parte da magia pertence aos pedaços de pão seco que se vão transformando numa espécie de acontecimento. 
E uma alegria de tempo quente e fazer um refresco num dia de chuva porque sim. O das imagens é de tangerina e a "colher" é um talo de aipo dividido ao meio, para acrescentar (ainda mais) frescura. Há outros, mas eu gosto tanto de tangerinas e tanto da palavra. Uma divisão silábica cadenciada e temos tan-ge-ri-na, como no poema de Eugénio de Andrade. E isso ser o fruto imediato na nossa ideia, seja qual for a estação do ano. A nostalgia dos quiosques de refrescos numa garrafa de xarope com ilustrações que encantam como se fôssemos crianças. E este vinho verde especial que me fez reconsiderar o meu ponto acerca dos vinhos verdes e querer perceber melhor a ideia da biodinâmica. Certo para esta comida essencial.   
Esta é uma das minhas versões de panzanella. Nunca dá para ser a mesma, porque a faço com o que me apetece no momento, com o que está disponível. E sim, no Verão é que é. Não por ser salada, mas sim porque se ao pão do dia anterior juntarmos um tomate coração-de-boi e mais umas coisas, percebemos a sério que aquilo que nos faz felizes carece de tão pouco, afinal. Mas não há essa possibilidade agora e esta salada apeteceu-me agora, pelo meio desta Primavera temperamental. Basta não alimentarmos a nostalgia dos ingredientes de Verão, adaptarmos as coisas e não adiarmos a(s) alegria(s) que podemos ter agora, em vez de a(s) remetermos lá para o longe de um dia que pode até nem chegar a acontecer(-nos). 
Também por isso, rebentos de pessegueiros bravos. Breves, bem efémeros e bem frágeis. Metáforas-síntese da Primavera. As luzes quentes de casa, à noite. E este livro. Às vezes, escolhemos os livros. Outras vezes, os livros escolhem-nos. Neste caso, este livro escolheu-me. E a seguir, o meu filho escolheu-o e leu-o com intervalos calculados por ele. Notava-se que ia guardando as entradas de dicionário de um dia para o outro, para não chegar logo ao fim. Percebi a ideia. Como quando não se come um chocolate de uma vez ou isso. Um dicionário muito especial. Mesmo muito especial. Definições de uma criança insatisfeita com as definições dos adultos, de uma das minhas editoras preferidas, nisto de livros de criança, a Planeta Tangerina
Quanto a esta Primavera hesitante, consultei um dos oráculos e está lá escrito que o final de Abril tem (muito) sol. O Borda d'Água não falha:) É esperar e viver (bem) o que está a acontecer agora. 

Panzanella freestyle de Primavera

5 fatias de pão de Rio Maior ou Alentejano ou de Mafra (idealmente com dois dias) + 2 punhados de tomate-cereja (amarelo e vermelho) + 3 pimentos piquillo (assados, em lata) + 3 fatias deste bacon (opcional) + orégãos secos, manjericão fresco, azeite, vinagre balsâmico e flor de sal q.b. 

Primeiro, parte-se o pão em cubos mais ou menos do mesmo tamanho. Coloca-se numa assadeira, rega-se com um fio de azeite e salpica-se com orégãos secos. Mistura-se bem com as mãos, de maneira a que todos os pedaços de pão fiquem embebidos na mistura de azeite e de orégãos. Vai ao forno a 180ºC durante uns 15 minutos, tendo o cuidado de agitar a assadeira umas duas/três vezes, para que o pão fique bem tostado. Se quisermos usar bacon, corta-se em cubos e leva-se ao forno durante uns 10 minutos. Decorrido esse tempo, retira-se do forno e reserva-se. A seguir, numa taça, coloca-se o tomate-cereja partido ao meio, os pimentos partidos em pedaços e tempera-se com flor de sal, azeite, vinagre balsâmico e folhas de manjericão picadas finamente. Envolve-se bem e deixa-se repousar, para tomar o gosto. No momento de servir, escolhe-se um prato fundo e coloca-se primeiro o pão. A seguir, o bacon e a mistura de tomate, manjericão e pimentos. Envolve-se bem, salpica-se com folhas de manjericão "rasgadas" por cima do prato e mais umas gotas de vinagre balsâmico. 

A música é esta. Change it, Isaura. 


12 comentários:

  1. Bom dia Mar,

    Nem imagina como as suas palavras me fizeram bem. Tanto bem, hoje!

    Tudo o que diz é a minha filosofia de vida mas, nos últimos tempos, estas ideias têm estado ainda mais presentes. Só que de um modo algo confuso.

    E a Mar ordenou tudo.

    Por também achar que não se deve esperar por amanhã, neste caso em concreto, pela abundância do Verão, resolvi aproveitar a fruta da Primavera para fazer compotas. De nêspera e de tangerina!

    Quando olhei para as suas jarras, pareceram-me flôres de amendoeira.

    Só lhe posso agradecer as palavras sábias, que foram um bálsamo. Por vezes temos falta que algo ou alguém que nos faça "acordar".

    Um beijo do Algarve e votos de bom fim - de - semana

    Sandra Martins

    PS - Ficamos à espera do (muito) sol.

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    1. Querida Sandra,

      Só posso ficar muito feliz. E agradecer. As suas palavras também me fizeram bem, vê? Por vezes, as coisas boas vão nos dois sentidos e isso é muito lindo.

      Acabamos sempre por esperar por uma série de coisas que remetemos para depois. Faz parte da nossa condição. As coisas que só podem acontecer mesmo depois e que não dependem de nós. O Verão, por exemplo. Mas há coisas que não faz mesmo sentido adiar indefinidamente. E são bem mais do que pensamos, creio.

      Um beijo para si. Obrigada outra vez. E um fim-de-semana lindo. O sol está-nos prometido:)

      Mar

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  2. Mar, tens um talento imenso. A maneira como escreves é qualquer coisa de muito, muito bonito. Viajei contigo, acompanhei os teus pensamentos e ao mesmo tempo os meus voaram para longe...

    Concordo, as comidas simples, humildes têm algo de muito bom. Confortam-nos, penso que o seu segredo está realmente na sua simplicidade e como referes, muitas vezes na sua humildade (humildade, o que esta palavra, esta forma de ser, faz falta neste mundo). É como o pão, esse alimento tão simples e ao mesmo tempo tão bom. E foi aqui, que o meu pensamento voou, falares de uma forma tão bonita, sobre este alimento, levou-me ao torricado do meu pai. O meu pai fazia-me em miúda um torricado maravilhoso... Não sei se conheces, mas torricado, pelo menos o do meu pai, são fatias de pão caseiro, grossinhas, torradas em cima de uma grelha (na brasa), muitas vezes feito numa fogueira ou num fogareiro e depois de bem douradinho e com as marcas em xadrex, era barrado ou pincelado com azeite e alho... Tão bom, Mar... e que saudades...

    Obrigada por me levares para longe, até à minha infância.

    Um beijinho grande e um fim de semana cheio de coisas simples e boas. São sempre as melhores.

    Cláudia

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    1. Obrigada, Cláudia. Não só pelas (boas) palavras, mas pelo carinho com que lês e que deixas aqui. A minha escrita já me fez coincidir com coisas muito más. Nunca falei delas aqui e raramente falo delas fora daqui. A história parece que foi sempre feita de gente que quis aproveitar-se, servir-se dessa escrita e fazer-me mal sem olhar para trás. Talvez um dia essa(s) história(s) veja(m) luz e se equilibre um bocadinho a balança.
      Mas o ponto é que essa gente má vale nada, perto de pessoas como tu e como outras, que acolhem com generosidade as coisas aleatórias que vou escrevendo. Pela fé nas coisas e nas pessoas boas, obrigada a ti, querida Cláudia.
      Sei o que é torricado, sim. É um hábito do Sul, impregnado de honestidade e de simplicidade. O pão é tão simbólico, tão na base de tudo o que alimenta. E não estou a falar só de alimento para o corpo. Para a alma. Algumas das minhas memórias mais preciosas estão associadas ao pão. O pão feito pela minha mãe num forno de lenha, quando era pequena. Ela fazia sempre um pão pequenino para mim. Aquele sabor era especial e fazia-me sentir especial. O pão molhado em azeite, hábito do meu avô. Isso ficou-me de tal maneira que, esteja onde estiver, as minhas refeições começam sempre por esse pão e por esse azeite. Como se isso dissesse mesmo o que sou, creio.
      Fico muito feliz por te teres lembrado de coisas boas. Mesmo muito feliz.

      Um beijo grande e dias lindos!

      Mar

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    2. Como é possível haver pessoas capazes, de pegar em algo tão bonito, o que tu escreves e fazer-te mal... Há pessoas muito más realmente. Eu percebo bem, quando referes que nunca contaste, que não falas aqui de quem te fez mal. Também eu, tenho dificuldades em falar, partilhar coisas menos boas, mas como referes, se equilibrar um pouco a balança, se for libertador, por vezes é, talvez valha a pena. Muito obrigada pelas tuas palavras tão doces ;)

      Que bom que sabes o que é torricado, eu desconhecia a origem, nós somos da zona do Ribatejo e não do Sul. E que boas lembranças essas, do pão pequenino cozido em forno de lenha e também do pão com azeite. Estas coisas dizem realmente o que somos. Lembrei-me mesmo de coisas muito boas.

      Outro beijinho grande para ti, continuação de um bom domingo :)

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    3. É possível tudo o que se puder conceber de mau. Se pensares bem, é sempre mais fácil fazer mal, destruir, partir, quebrar, matar. O difícil é o contrário. Todos os (bons) opostos.
      Fui ingénua e tive uns maus encontros. Não falo disso porque procuro tratar das coisas a sós e também porque sou de boas energias:) Mas sabes, a minha alegria e a minha capacidade de reconhecer a bondade e a beleza nos outros não desapareceram. Essas características intensificaram-se. A par disso, tenho desenvolvido uma blindagem maravilhosa. Precisamos sempre de mecanismos de protecção. Eu achava que não e mudei nisso. Ainda bem que sim:)
      O torricado que eu reconheço é esse da região do Ribatejo. Desculpa, não me fiz entender bem. É que Ribatejo, a partir do sítio onde estou, é sul. E sim, o que somos. Quem somos. Hoje à tarde estive a tomar um chá com a minha mãe e lembrei-a dos pães pequeninos que ela costumava fazer-me para eu me sentir especial e única. Eu tenho mais três irmãos. O contexto do ser "especial e única"" é esse:)

      Outro beijo, minha querida. Obrigada.

      Mar

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    4. É verdade, o que não falta neste mundo, são pessoas más. E parece-me que cada vez está pior.
      Fazes bem, querida Mar. Temos que nos rodear de coisas boas, boas energias, boas pessoas, no que nos faz felizes. Eu também já fui assim, e para ser sincera, acho que ainda sou um pouco. Sem criar grandes barreiras ou mecanismos de protecção, ou seja, estarmos sempre de coração aberto, darmos-nos por inteiras e depois quando nos magoam, ficamos sem chão. Mas apesar de com o tempo, já ter aprendido a defender-me um pouco mais, não me é muito fácil, ser diferente.

      Ah, ehehehe ;) Não tens que pedir desculpa. Tudo o que está para baixo de nós, já é Sul :) Tão bom, teres essas recordações tão boas, esse sentir especial e única, com o pequeno pãozinho. É como o torricado do meu pai.

      De nada, Mar e desculpa só responder agora.

      Beijinhos ♥

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    5. Não tens nada de que te desculpar, linda Cláudia. Eu é que sim. Acabei de o fazer no comentário anterior.
      O tempo foi uma das melhores invenções da vida. As coisas acontecem-nos, pensamos que não conseguimos, que não vai dar. E dá. Conseguimos. Um dia. Depois outro. E tudo é melhor por estarmos com pessoas que nos querem bem. E já não consigo não ter sempre um bocadinho de medo de pessoas. Sempre fui tão franca, tão sem pensar. E agora não.
      Toma conta de ti e do teu coração. É o que eu (me) digo muitas vezes. Digo-te o mesmo.

      Um beijo para ti. Obrigada. Acho que és uma pessoa muito linda.

      Mar

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    6. Ohhhh muito obrigada, Mar.

      Nem sabes o bem que me fez, ler as tuas palavras hoje.

      Obrigada, de coração. E retribuo, eu penso o mesmo de ti. És uma pessoa muito bonita, e isso transparece no carinho que as tuas palavras têm, em toda a sua doçura. E se precisamos de pessoas como tu!

      Um beijinho grande para ti

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    7. Mesmo linda, tu. Isso faz mesmo muita falta. Gente assim. Retribuo isso de fazer bem. Obrigada, querida Cláudia.

      Um beijo para ti.

      Mar

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  3. Olá Mar,

    Gosto sempre desta visita matinal. Desta vez, estive a ler os comentários e fico feliz por perceber que não sou apenas eu a ficar estupefacta com o facto de haver quem seja capaz de pegar nas suas palavras para lhe fazer mal.

    Acho que a balança está desequilibrada: o BEM pesa mais o que o MAL.

    Mas, também queria dizer que no sábado fiz o seu molho para hambúrgueres. Foi assim uma ideia repentina. Eu gosto de planear e ter os ingredientes todos mas, tive que fazer sem o molho de soja e trocar o sumo de lima por limão. Ficou fantástico mesmo assim! Um almoço que podia ser banal, tornou-se especial.

    Um beijo do Algarve e votos de bom fim - de - semana,

    Sandra Martins

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  4. Olá Sandra,

    Esse molho é bem especial:) O meu filho adora-o, muito especialmente. E as adaptações e substituições de ingredientes fazem parte. Muitas das vezes, melhoram as coisas. Por isso, fico muito feliz que o tenha feito e que lhe tenha sido especial.

    Vivo a minha vida com uma alegria e com uma tranquilidade enormes, Sandra. É isso. Resume-se tudo a isso. E continuo a escrever e a pensar e a ler e a fazer (muita) comida. Continuar-me, como dizia o José Saramago.

    Um beijo para si. Obrigada pelo carinho.

    Mar

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