Quando escrevo sobre um sítio, o critério é sempre o mesmo. E é muito simples: foi/é por gostar muito e por entender que faz sentido dizer que, numa geografia qualquer, há comida (boa) à nossa espera. Por isso, escrever aqui sobre um lugar, é como quando falo com amigos e lhes digo que se come mesmo bem no sítio X. O registo é rigorosamente o mesmo, com a excepção de calar aqui restaurantes de que não gostei nada e que quero é esquecer. Pelo óbvio da distinção que me é sagrada entre o que é público e o que é privado, mas também porque não sou crítica gastronómica, nem tenho pretensões de nenhuma espécie. Não tenho nada que ir por aí. A minha cena é outra. Trata-se de liberdade, antes de tudo o mais e de deixar aqui coisas boas de viver. Se tudo correr bem, numa conjugação irrepetível de astros, outras pessoas viverão coisas tão boas e irrepetíveis quanto a tal conjugação de astros. É assim.
E este sítio que fica hoje é um daqueles sítios que tem mesmo de ser partilhado e descrito e vivido. Não tem que ver com sofisticação, no que a palavra pressupõe de inacessível. Tem que ver com comida deliciosa e honesta. É isso que sinto sempre, na comida do José Avillez e em cada uma das suas versões naquele perímetro do Chiado. Bons ingredientes. Quem faz comida a sério, sabe que é aí que começa o jogo. Ou não, se a matéria não estiver de acordo com o espírito da honestidade. E quando os bons ingredientes são trabalhados com respeito e com arte, uma magia qualquer acontece à mesa.
Creio que, de todos os restaurantes do universo José Avillez, este é o meu preferido. Já escrevi sobre os outros. Faltava este. E a comida deste sítio é uma espécie de casa. Percebe-se que até é essa a ambiência do lugar. Os objectos que reconhecemos da nossa infância, num painel-amálgama. As madeiras e os mármores de casa de pasto. A luz quente. A de fora e a de dentro. Os sofás. As almofadas nos sofás. Convites subliminares para prolongar coisas boas. E o mais importante: a comida. Esse é o ponto. Tudo o mais é acessório, por mais que eu goste de respirar a beleza dos/nos lugares. Mas a comida é que é. E como é maravilhosa, a comida deste sítio. Começa e termina nesse ponto maravilhoso. O tártaro de atum, com aquele tom asiático de frescura exótica. A tempura irrepreensível dos peixinhos da horta. E o risotto. Não consigo palavras que o digam e creio que talvez seja melhor assim. A imagem de um prato vazio é suficientemente eloquente, parece-me. No final, a delicadeza de um leite-creme de laranja e de baunilha. A comida é um lugar por si só. E, em circunstâncias destas, é um dos melhores lugares onde podemos (e devemos) demorar-nos. No final de coisas destas, o infinitivo de um verbo. Este aqui: voltar. Muito. Voltar muito. Assim a vida o permita.
E a luz de Lisboa é sempre linda. Mesmo com intermitências. Chuva depois sol. Vento depois aguaceiros. Sol outra vez. Com tantas hesitações, o céu fica confuso e acaba por ficar um bocadinho às cores. E, de surpresa, um arco-íris assim inteiro. Um daqueles presentes vindos não sei de onde. Um arco-íris inteiro. Como se tivesse sido desenhado pelas mãos pequenas de uma criança. Uma coisa boa dos dias intermitentes pode bem ser a possibilidade de um arco-íris. Convém não esquecer. E, se algum dia for indiferente a um arco-íris, deixei de ser quem sou. Também convém não esquecer. O arco-íris inteiro fica aqui com este sítio inteiro onde se come (muito) bem. E com as luzes das velas na igreja silenciosa onde gosto sempre de entrar e de estar. Assim mesmo. Sem sermões. Sem morais. Sem juízos finais ou iniciais. Só silêncio, os sussurros ocasionais e a respiração lá de fora da cidade. Lisboa é linda como uma mulher que envelhece bem. Chão irregular onde me perco intencionalmente tantas e tantas vezes. Distraio-me com os azulejos e com os recortes dos prédios no céu e com o céu e com os pássaros nas estátuas sozinhas dos poetas. E com os graffitis. E com as pessoas e com as narrativas e a música que trazem dentro. E com o céu outra vez. É por isso que acabo por me perder um bocadinho. Seja o que for, recupero sempre o meu norte. Literalmente, neste caso:)
A música tem Jack White dentro. The Raconteurs. Steady, as she goes.
A música tem Jack White dentro. The Raconteurs. Steady, as she goes.
Olá Mar,
ResponderEliminarNão conheço nenhum restaurante destes chefes ditos "famosos". Fiquei surpreendida com a simplicidade deste espaço. Esperava que transpirasse luxo.
Fico com a referência para experimentar talvez em Maio, já que temos bilhetes para o Rock in Rio.
Aproveito para dizer que, tal como tinha dito, já experimentei o creme de ervilhas com funcho. Absolutamente delicioso!
Um beijo do Algarve e votos de bom fim - de - semana
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarNão tem que ver com isso de chefs famosos. Detesto essa palavra e o imaginário inevitável. Especialmente se estiver associada a comida. Isso é ruído que distrai do essencial. Não sou dessas ondas.
Se experimentar, vai ver que vai acontecer como com o Vila Lisa. Disse-me que gostou muito:)
Que bom que gostou do creme de ervilhas. Fico mesmo feliz. E agradeço essa sua atenção carinhosa.
Um beijo para si também, para o seu/nosso Algarve. Que seja bom, o seu fim-de-semana.
Mar
Como me soube bem descer a Lisboa enquanto o meu dedo rolava na bolinha do rato.
ResponderEliminarQue saudades de ir. Especialmente a Lisboa e especialmente a esse Cantinho do Avilez. Pela comida e pelo ambiente, como tu dizes, de casa. Tão bonito que é estar num sitio assim.
E as pedras irregulares e escorregadias da cidade.
Muitos beijos,
da Pipinha
Eu sei como gostas tanto deste sítio. E de Lisboa. A vida está a uns dias de abrandar um bocadinho. E de ser só uma questão de ir. O chão irregular de Lisboa e a comida e o lugar boa onda estão lá. À tua espera:)
EliminarUm beijo grande.
Mar
PS: Não tenho registo da tal cervejaria de que te falei. Por enquanto:)