Há lugares que nos envolvem num silêncio que é impossível noutros lugares. Envolver é um verbo bom. Tem qualquer coisa de involuntário, de incontrolável, de avassalador. Maior do que nós. É isso. Uma coisa que nos é superior e que o nosso entendimento não abrange. E, muito importante: silenciosamente superior.
Eu não sou pela ingenuidade que acredita que o exterior resolve questões interiores. Ao contrário, aquilo que levamos dentro (bom ou mau), vai connosco para onde formos e regressa inevitavelmente ao lugar interior de onde partimos. Podemos sentir uma solidão irrespirável no meio da multidão mais densa. Podemos sentir-nos desarrumados por dentro no cenário mais tranquilo que pudermos conceber. Podemos até querer fugir ao conforto mais confortável. E também podemos chegar às respostas certas depois de muitas respostas erradas. Também há essa versão. Aquilo de podermos sempre falhar melhor, nas palavras de Beckett. Bom assim. Falhar melhor é uma formulação que respira. Falhar melhor é coisa de gente que não atira a toalha ao chão, de gente que não entrega os pontos. Pelo menos, não enquanto o jogo não chega ao fim. As nossas vidas. As nossas vidas e os terrenos movediços onde todos os dias vamos a jogo. E, invariavelmente, com a sensação de que as regras do tal jogo são incompreensivelmente reveladas em cima do acontecimento. Por isso é que talvez seja melhor a versão em que não antecipamos assim muito e fazemos e não fazemos e dizemos e não dizemos e gostamos e não gostamos e estamos e deixamos de estar e queremos e não queremos.
No dia das imagens, quis muito ir a um lugar. Uma vontade assim como nas definições: imediata, urgente, impulsiva. E é tão bom quando basta dizer vamos:). Meia hora depois, aquele silêncio todo. E um vento persistente que faz com que lá em cima, no ponto mais alto, poucas árvores se mantenham. Eu não ia à procura de nada interior. A sério que não. Queria só fazer aquela estrada íngreme e sinuosa. Queria só olhar aquele exterior. Sentir que o céu estava um bocadinho mais perto. Ver a neve lá longe. Queria o silêncio que só nestes lugares. E aquela coisa boa da intimidade, que é estarmos com quem podemos falar muito sem dizer nada. E sabermos que, num determinado momento, aquilo de que precisamos no mundo inteiro pode resumir-se a três sandes feitas à pressa, sumo de laranja em três canecas de esmalte e três pessoas. Tudo dentro de um coração com os contornos bem definidos. As coisas e as pessoas. O inesquecível, de vez em quando, pode ser perto e pode ser estranhamente fácil. No meio desse silêncio íntimo, os únicos propósitos foram imediatos quanto a vontade de ir. E foi fácil. Voltar. Voltar a casa com aquele lugar na pele. Fazer uma sopa bem quente e bem verde. Cortar fatias de pão escuro e fragmentos dos queijos pequenos e secos de Évora. Terminar a noite daquele dia a terminar o livro de uma escritora misteriosa. E o maravilhoso que é isso tudo. O lugar. O pão escuro e o queijo seco. O creme verde. Este livro da tal escritora sem rosto. E os outros que vou ler, depois deste.
Creme verde de ervilhas com funcho
1 cebola (grande) + 1 batata (média) + 1 courgette + 2 cenouras + metade de um bolbo de funcho + 1 taça generosa de ervilhas (uso congeladas) + azeite, sal, água e hortelã q.b.
Primeiro, um refogado com a cebola cortada em pedaços, o funcho laminado e um fio generoso de azeite. A seguir, acrescenta-se as cenouras, a batata, a courgette, água até cobrir os legumes e um pouco de sal. Deixa-se ferver, reduz-se o lume e deixa-se cozer durante meia hora. Decorrido esse tempo, desliga-se o lume, acrescenta-se as ervilhas, deixa-se repousar durante dois minutos e passa-se com a varinha até não haver sombra de grumos. Rectifica-se de sal e de azeite e serve-se. Por cima, folhas de hortelã. Fica maravilhoso com queijo de Évora, esfarelado bem no momento de servir, que a ideia não é que o queijo fique derretido. Seria uma lástima estragar tudo no último momento:)
O lugar das imagens é a Serra de São Macário, em São Pedro do Sul. A música é dos Arcade Fire. E tem dentro a voz eterna do David Bowie.
O lugar das imagens é a Serra de São Macário, em São Pedro do Sul. A música é dos Arcade Fire. E tem dentro a voz eterna do David Bowie.
Vamos. Alinho. Também gosto assim. Quando esse eco é simples, sem necessitar de grandes palavras de incentivo ou argumento.
ResponderEliminarNo outro dia fui ao Ichiban, pensava que ia precisar de algumas palavras para convencer o jovem namorado. Mas "bastou" mostrar a tua publicação e consegui um "vamos" fácil de um fraco adepto de comida japonesa.
Adorámos! Quando fecho os olhos ainda consigo sentir aquele salmão braseado enriquecido pela gema de ovo. Que coisa boa!
Obrigada pela deliciosa partilha. :)
Beijinho beijinho.
Uma conjugação daquelas. O "vamos". Sem antecipações, sem argumentações. Porque sim. Porque é possível e porque não é preciso esperar por nada.
EliminarQue bom que foste/foram ao Ichiban. Comida inesquecível. Percebo bem isso de fechares os olhos e de te lembrares desse salmão braseado. Acontece-me frequentemente:) Também é um daqueles lugares "vamos". Como os Açores. Que fotografias lindas, as dos teus posts. Não sei se já te disse:)
Nada a agradecer. Fico feliz por teres gostado tanto.
Um beijo.
Mar
Descobri-a há pouco tempo. Gosto muito dos seus textos. e estive muito perto de adivinhar este lugar das suas fotos. eu apostava no Caramulo.
ResponderEliminaros seus textos faz-nos usar os cinco sentidos. Num só lugar. Aqui.
Olá Alice,
EliminarObrigada por ler. Por gostar. Por escrever a dizer que gosta. Isso é bem lindo. E grato.
A Serra do Caramulo é belíssima. Já não faço aquele caminho há anos, agora que penso nisso. Ia ao Caramulo muitas vezes, quando era pequena. Sentia um fascínio enorme pelos sanatórios abandonados.
Obrigada outra vez.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarAconteceu-me no domingo passado. Lembrar-me de um sítio tão perto e tão lindo que até parece retirado de um filme. Senti uma paz enorme. E já lá não ia há imenso tempo.
Só não levei o cesto com as sandes.
A sopa parece-me bem e vou fazer. Gosto muito de sopa mas, confesso que tenho tendência para me tornar um pouco repetitiva.
Um beijo do Algarve,
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarA proximidade tem um oxigénio especial. Está aqui. Pode ser agora. Bom saber que o seu domingo teve essa declinação. Da próxima, a ver se leva um cestinho com sandes:) As coisas têm um sabor que não se esquece.
Percebo isso de as sopas poderem ser repetitivas. E não é preciso complicar muito nem nada, para que não seja assim. Vou deixar aqui mais receitas de sopa:)
Um beijo para si.
Mar
Sempre inspiradora!
ResponderEliminarPelas imagens. Linda a Serra de São Macário!
Pelas palavras. Textos cada vez mais bonitos e que me trazem serenidade!
Pela receita. Simples e sempre com "aspeto reconfortante", e que tenho sempre curiosidade em experimentar!
Pela música. Sempre tão bem escolhida!
Beijinhos da Maria Jorge
P.S.- Este fim-de-semana, como em tantos outros, vou fazer o seu bolo fabulosamente simples com sabor a baunilha.
Olá Maria Jorge,
EliminarEscrevo o seu nome e lembro-me sempre do seu sorriso muito doce e muito bonito. Que comentário tão generoso. E comovente. Obrigada.
A Serra de São Macário é um lugar raro. Pelo que se vê. Pelo que se sente. Estar num sítio e não ouvir nenhum ruído é bem especial. E perto. Maravilhosamente perto.
Bolo de iogurte com baunilha:) Um bom espírito para o fim-de-semana, esse.
E faz-me bem pensar que estas coisas fazem bem. É isso. Obrigada outra vez.
Beijos para si também.
Mar
Boa tarde, Mar.
ResponderEliminarInspira-se paz, nesse(s) lugar(es) onde apetece ir de repente. Inspira-se - não, não me enganei, quero mesmo dizer inspira-se, porque respirar implica dois movimentos: inspiração e expiração, e eu não quero expelir nada, quero reter - paz, serenidade e beleza nas suas palavras e nas suas imagens e inspira-se conforto e aconchego na sua sopa. Obrigada.
Também eu, quando vou a esses lugares tão especiais, levo as sandes e, em vez de sumo de laranja, levo a termo com chá.
Continuação de uma boa semana.
Bjs
Ana
Boa tarde, Mar.
ResponderEliminarInspira-se paz, nesse(s) lugar(es) onde apetece ir de repente. Inspira-se - não, não me enganei, quero mesmo dizer inspira-se, porque respirar implica dois movimentos: inspiração e expiração, e eu não quero expelir nada, quero reter - paz, serenidade e beleza nas suas palavras e nas suas imagens e inspira-se conforto e aconchego na sua sopa. Obrigada.
Também eu, quando vou a esses lugares tão especiais, levo as sandes e, em vez de sumo de laranja, levo a termo com chá.
Continuação de uma boa semana.
Bjs
Ana
Olá, Ana
EliminarMuita, muita paz. Creio que não consigo dizer bem. Há coisas que não são discursivas. Este lugar é assim. O encantamento é uma coisa de todo o momento. Enquanto se faz a estrada. E lá em cima. Tanto, lá em cima.
Fico sempre muito grata pelas suas palavras. Creio que sabe isso. Mas nunca é demais dizermos a nossa gratidão. E sim, a sopa é aconchego puro.
É tão simples, isso de pormos umas coisas num cesto e de irmos sem mais. Uma liberdade muito bonita, que faz com que nos concentremos no essencial: no caminho, no destino e no regresso.
Para si também, dias bons. Obrigada.
Um beijo.
Mar
Que lugar maravilhoso com um ar tão puro. E comida pura a acompanhar.
ResponderEliminarUm beijo,
Ana
Sim, Ana. É mesmo maravilhoso. Este fim-de-semana voltei lá, a pretexto da neve:)
EliminarUm beijo.
Mar
Tão bonito! O lugar, o texto. Concordo tanto... até na multidão mais densa, nos podemos sentir sós... É bem verdade Mar.
ResponderEliminarBeijinho
Este sítio é tão lindo, querida Cláudia. E sim, a nossa solidão também pode acontecer pelo/no meio da densidade de muita gente junta.
EliminarUm beijo.
Mar