Adega Vila Lisa.



















Havia referências disseminadas, mas não aquilo de uma página para dizer este lugar. E eu vou dizer isto, antes de tudo o mais: é um dos meus restaurantes preferidos. E não tem que ver com latitudes ou longitudes. É um dos meus sítios. Vou lá há anos. E há anos que, sempre que penso neste sítio, vem a ideia imediata e flagrante da comida. Os cheiros. As cores. As consistências. Aquele maravilhoso do jogo ancestral entre o azeite, o vinagre e os alhos. O vinho de jarra. Primeiro o branco. Depois o tinto, a partir do momento em que a sequência avança para a carne. O pão, renovado ao ritmo do que vem para a mesa. E o cerimonial é esse. As coisas vão acontecendo. Não escolhemos nada. Assim que nos sentamos, as entradas. A alma algarvia tão plena, naqueles pratos pequenos e despretensiosos. Batatas com azeite e alhos. Ovos com tomate. Enchidos. Estupeta de atum. O que for que se conspire naquela cozinha franca. Depois disso, xarém de lingueirão, de amêijoas. A seguir, o polvo assado com batatas cortadas aos cubos. Depois o pernil de porco, com aquela crosta dourada e o interior tenro e saboroso. E o caldo de grão com hortelã. Quase mágico. Depois de uma sequência tão generosa, o pensamento primeiro, ao vermos aquele caldo é que não vai dar. Asneira, se perdermos essa parte:) Porque é a parte pacificadora. Daí ter dito que era um caldo mágico. Uma leveza muito perfumada, que nos apazigua interiormente. O final é sempre com biscoitos de azeite e pequenos bolos de figos e de amêndoas, com um toque de erva doce. Com café de cafeteira e aguardente de medronho bem fresca. É assim. No Vila Lisa onde regresso sempre. 
O Algarve é maravilhoso. Mas é tão perigoso, nisto dos restaurantes. E os lugares mais perigosos são os que mais deviam respeitar a matéria-prima. Falo dos restaurantes de praia, em primeiro lugar. Com raras excepções, são uma lástima. A este nível, se evitarmos ao máximo sítios que tenham tabuletas a dizer beach bar e /ou que anunciem sunsets, uma parte significativa do perigo estará ultrapassada:) Outra coisa incompreensível tem que ver com os restaurantes perto dos mercados. Invariavelmente maus, invariavelmente turísticos. Com todas as conotações negativas que o termo pode ter. E eu lamento. Muito. Porque cada um destes sítios trai a alma do Algarve. Uma espécie de crime. A comida é um património frágil. Sujeito a coisas destas. A muitas coisas destas, se o Algarve for entendido e vivido à superfície. Por isso é que, muitas das vezes, temos de fazer o caminho para dentro. Afastarmo-nos do mar um bocadinho e procurarmos lugares onde os peixes e as ervas e as densidades da carne são persistentemente respeitados. 
No caso do Vila Lisa, vamos de Lagos até à Mexilhoeira. Não demora muito. A seguir, entramos no lugar e, à medida que vamos seguindo a rua principal, é estarmos atentos ao número 52, que surgirá à nossa direita. Aí, as janelas estarão abertas para a rua, a deixar adivinhar a meia luz da adega. Lá dentro, é deixar acontecer. É só isso. Deixar acontecer. É uma taberna. Não há toalhas nem guardanapos de pano. A loiça é simples e os talheres e os copos também. Os bancos são toscos e as paredes têm imperfeições e máculas. Aqui, o que interessa é a comida. É só isso. Tudo o mais é satélite. 
Sempre que digo ou escrevo estas duas palavras, Vila Lisa, acontece aquilo que acontece com as coisas que nos marcam. Sinto a memória de tudo. Muito. E é assim como se fosse um vento ou mar: não dá para controlar. Acontece a memória. Neste caso, dá para tentar dar alegria a essa memória, para não ser só um exercício de nostalgia. A vocação das pessoas que fazem comida com alegria é mesmo essa: a da alegria. Por isso, quando me lembro do Vila Lisa, basta juntar uns ingredientes e fica tudo melhor:) 
Com o sítio e com um livro que tem dentro a alma da comida a sul, os ovos mexidos com tomate que são, para mim, uma das entradas mais deliciosas da sequência de abertura, mal nos sentamos naquelas mesas toscas. E tão simples, como (quase) tudo o que nos é flagrantemente delicioso. 

Ovos mexidos com tomate 
NB: A receita é uma interpretação freestyle, porque a base é a intuição e a memória. Infelizmente, a receita destes ovos não está no livro de receitas. Fui tentando, até chegar a este ponto que é para partilhar aqui:) 

1 cebola (média) + 3 dentes de alho (picados) + 1 folha de louro (sem a nervura do meio) + 1 tomate coração-de-boi (maduro, sem a casca e partido em pedaços) + 2 ovos inteiros + azeite e flor-de-sal q.b. 

Leva-se ao lume uma sertã com a cebola picada, os alhos e a folha de louro, num fio de azeite. Quando a cebola ficar translúcida, juntar o tomate, um pouco de flor-de-sal, mexer e deixar cozinhar o tomate (cerca de 5 minutos _ este tempo depende do tomate). Decorrido este tempo, junta-se dois ovos batidos, com um pouco de flor-de-sal. Mexe-se de imediato e dá-se duas voltas. É importante que os ovos não fiquem cozinhados demais. Transfere-se de imediato para um prato e serve-se com fatias de pão (ligeiramente tostadas, se assim o quisermos). E estes ovos sabem bem das duas maneiras: quentes ou frios. 


NB: É imprescindível fazer reserva. Por isso, deixo o contacto: 282968478. Só serve jantares e em dois rounds: o das 20h e o das 22h. O preço é fixo e não tem Multibanco. 

E Jamie XX. Porque a viagem de carro de e até ao Vila Lisa é mais bonita assim. Um som electrónico que é como uma estrada que flui, sob as estrelas. A vida dá-nos cada presente:) 


12 comentários:

  1. este ano fui a este gostei muito, acho que tb ias gostar: http://fugas.publico.pt/restaurantesebares/338505_ribalta

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    1. Olá Sílvia,

      Pelo descritivo e por vir de ti, só pode ser mesmo de gostar. Já guardei as coordenadas:) Tem de ser é para a próxima vez que estiver no sul. Obrigada.

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  2. Fugir dos lugares que anunciam "sunsets" :) Muito bom! É que parece uma epidemia, de Norte a Sul! O segredo é mesmo esse: fugir dos focos turísticos e procurar os lugares frequentados pelos locais. Também procuro sempre isso e tenho-me dado bem. Gostei das tuas imagens. Deu-me vontade de me sentar a essa mesa :)

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Olá Ilídia,

      A praga dos "sunsets" e dos "rooftops":) São ondas. Dão o que têm a dar, esgotam-se e não fica grande coisa para contar a história.
      O Vila Lisa é um sítio muito especial. Comida honesta, sabes? A sofisticação é essa, não precisa de anglicismos. E dá mesmo vontade de sentar e ficar. Já passei ali umas horas bem felizes:) Que bom que gostaste. Obrigada por isso.

      Um beijo grande.

      Mar

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  3. Olá Mar,

    Gostei muito e já anotei todas as indicações.

    Como lhe disse, é altura de acertar umas contas com Lagos e ficar com memórias felizes. Este local parece-me muito bem para um jantar de dia de férias, depois de um passeio pela zona.

    Muito obrigada pela partilha.

    Esqueci-me de comentar que adorei os seus frascos das especiarias. Lembra mesmo magia: uma sala secreta, só para usar os pós mágicos. No fundo é isso que é a cozinha, não é? Um lugar encantado.

    Ontem, da minha, saíram uns frascos de doce de uva e de figo. Só quem gosta de cozinhar é que compreende esta alegria infantil.

    Quando eu for ao Adega Vila Lisa, conto como correu.

    Um beijo do Algarve,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Algumas coisas merecem mesmo que se acerte as contas. Outras não e mais vale deixarmos ficar. Lagos é uma cidade tão cheia de alma, que merece esse acerto. Pense com carinho, sim?:)
      Esta taberna faz com que fiquemos centrados só no prazer de comer e de estar com quem amamos. E tem uma luz muito linda. Se for, que goste muito. Assim espero.

      Os frascos de especiarias foram comprados no Mercado de Lagos, no Sr. Zé. São o ideal, para guardar os pós e os grãos que dão magia à comida. Estão aqui, no meu lugar encantado:)

      Doce de uva e de figo deve ser uma daquelas coisas. Nunca fiz. Tantas, as coisas que nunca fiz. E isso também é bom:)

      Um beijo para o Algarve.

      Mar

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  4. Já fui. Imprescindível, para quem quer conhecer o 'outro' Algarve. Na memória, entre todas as iguarias, guardo uma lebre selvagem estufada e uma sopa de rabo de boi a finalizar... que eu pensei que não conseguisse comer, mas consegui. Foi maravilhoso. Há muitas, mas muitas coisas no Algarve que me aborrecem. De cada vez que lá vou, tento não deixar que essas coisas tomem conta de mim... O Vila Lisa reconcilia-me com o Algarve que eu conheci em pequenina, quando em Vilamoura não existia marina nem os ditos restaurantes 'turísticos' e tudo cheirava a gerânios, a pinheiros mansos e as praias, quase desertas, se abriam às brincadeiras sem horas e aos mergulhos sem fim...
    A serra de onde cheguei ontem fez-me bem. É bom que o verão nos saiba pacificar.
    Um abraço e obrigada pelos textos sobre Lagos. Um bom regresso a casa.
    Marta (de Leça)

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    1. Olá Marta,

      É, realmente, um outro Algarve. Percebo essa ideia de reconciliação. A minha experiência do sul é muito de casa e de mar, a preservar-me do imaginário dos parques de diversões, dos restaurantes pretensiosos ou caóticos ou só muito maus. Essas dimensões passam-me ao lado. Nesse, como em outros aspectos, cada um sabe de si. E eu sei onde estou e onde não quero estar.
      Mas acho que há coisas que são só incompreensíveis. Como passar pela esplanada de um restaurante junto ao mercado e ver um prato de peixe cheio de manteiga (ou algo próximo disso), "ornamentado" com bróculos meio amarelos. Tão triste. Deu vontade de dizer que há uma coisa chamada azeite. E que em vez dos bróculos, uma salada de tomate coração-de-boi polvilhada com orégãos.
      Há um Algarve que não dá para rasurar. E há lugares e pessoas que tomam conta, que não querem ganhar tudo num Verão. O Vila Lisa é um desses sítios.

      Fico muito feliz por essa pacificação. Também a sinto.

      Obrigada por ter gostado dos textos sobre Lagos. Um abraço grande para si.

      Mar

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  5. Uma sugestão ; polvilhe os tomates com ovos com um pouco de orégãos secos no final.
    E sim, há um Algarve ainda desconhecido, felizmente.
    Um abraço.

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    1. Olá Aliete,

      Sabe que penso sempre que falta um bocadinho de verde?:) Amanhã vou fazer esta entrada para um jantar aqui em casa e vou fazer tal como disse. Obrigada.

      O Algarve de sítios como o Vila Lisa é uma geografia-tesouro.

      Um abraço para si.

      Mar

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  6. Tenho esse livro e já o li e desfolhei tantas vezes que há alturas que quase sinto o cheiro desses pratos. Ainda não foi este ano que o fui conhecer porque normalmente não fugimos daquela rotina chata da corrida matinal, mercado, praia, casa, sesta, praia, casa. Do próximo ano não passa. Com este teu post fiquei ainda com mais vontade. Comida à séria. Nos 15 dias que lá estive só fui uma vez a uma adega e foi para comer peixe grelhado. O resto é mesmo por casa, para aproveitar aquela maravilha de peixe que há no mercado de armação.

    Um beijo.

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    1. Olá Verinha,

      O livro e o lugar são maravilhosos. Já fiz várias receitas deste livro. Bem explicadas, sem os "mistérios" habituais de outros livros de culinária e que me irritam solenemente.
      A ver se vais ao Vila Lisa, então. Comida à séria, sim:) Espero que sejas tão feliz neste sítio como eu tenho sido, ao longo destes anos de alegria no sul.

      Um beijo.

      Mar

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