Entre.














Sempre este diálogo. Entre o interior e o exterior. De vez em quando, penso na minha casa como uma ilha. E até que parece. Todas as portas de vidro dão para terraços que por sua vez dão para o jardim. A água que rodeia a casa-ilha por todos os lados é verde e é feita de árvores cada vez mais altas e frondosas. E as sebes e as heras, enredadas nas coisas todas, como se quisessem tomar conta de tudo. E até que tomariam, se não fossem disciplinadas. Tem qualquer coisa de lugar secreto, este jardim caótico. Sente-se assim, quando começamos a descer as escadas. Que vamos entrar num lugar escondido, separado do resto do mundo por uma frente verde. 
O meu jardim é o silêncio que vive em cada uma das páginas deste lugar. Raramente o deixo aqui. E passo lá muito tempo. Essencialmente contemplativo. Essencialmente silencioso. Pouco depois de acordar, vou lá fora. Pouco antes de adormecer, vou lá fora. E enquanto faço a minha comida. Muitas vezes. Vou lá fora, a meio das coisas que estou a fazer. A maior parte das vezes, é sem objectivo. Passo por um dos bustos sérios de mármore, desço as escadas e fico ali. Não é preciso muito tempo nem nada. O suficiente para reparar na maneira como a luz desce sobre o mundo. O suficiente para reparar que as árvores estão cada vez mais bonitas, cada vez mais fortes. O suficiente para estar a sós com aquele verde. E o suficiente para deixar que o jardim me recorde que o tempo passa. 
Por estes dias, os jacintos e os narcisos e as magnólias. Mesmo com chuva, quiseram nascer no primeiro dia de Março. Fico sempre feliz quando os vejo, como se fossem surpresa. Quis apanhar algumas dessas flores-surpresa, juntei-as às laranjas e aos limões que já tinha ido buscar às árvores. Vieram para o interior. Para o lugar onde nascia outro jantar. Outra mesa. 
No mês novo, há coisas que mudam. E outras que se mantêm. O meu cesto de ir às compras de (quase) todos os dias. A inspiração que também vem dos livros e que faz com que cada mesa seja como cada um dos nossos dias: especial. Os serões de sofá, a beber café. A alegria que é fazer comida. Muito, dessa alegria. E gostar de pensar em tudo o que permanece. Em tudo o que muda. Em tudo o que se reinventa. Em tudo o que resiste. Por mais inultrapassáveis que possam parecer os invernos das nossas vidas. E em tudo o que está entre. Como este mês, que é feito de Inverno e de Primavera. Um tempo de transição. 

E uma das minhas árias preferidas. Um dos dados que não muda. Ter crescido a gostar muito desta ária. 



14 comentários:

  1. Bom dia, Mar.
    Que lindo é o seu jardim! Que maravilhosa descrição faz dele e do vosso relacionamento. Também tenho narciso, os crocos e um ou outro jacinto a alegrar o meu pequeno jardim. Ontem, precisei muito da alegria deles e da sua cor. Há dias assim.
    Deixe que lhe pergunte, o que fez com os cogumelos? Eu e o meu marido adoramos cogumelos estufados, servidos em cima de fatias de pão torrado, chamo-lhes "cogumelos à bordalesa", com arroz, com massa, recheados...
    Continuação de boa semana. Eu vou voltar até ao seu jardim Obrigada por me ter deixado entrar.
    Bjs
    Ana

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  2. Bom dia, Mar.
    Que lindo é o seu jardim! Que maravilhosa descrição faz dele e do vosso relacionamento. Também tenho narciso, os crocos e um ou outro jacinto a alegrar o meu pequeno jardim. Ontem, precisei muito da alegria deles e da sua cor. Há dias assim.
    Deixe que lhe pergunte, o que fez com os cogumelos? Eu e o meu marido adoramos cogumelos estufados, servidos em cima de fatias de pão torrado, chamo-lhes "cogumelos à bordalesa", com arroz, com massa, recheados...
    Continuação de boa semana. Eu vou voltar até ao seu jardim Obrigada por me ter deixado entrar.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Obrigada. Creio que dá para perceber que me é muito, este jardim. E também parece haver aquela dimensão de criança, por haver lugares onde podemos esconder-nos do que está lá fora. É um bocadinho caótico e tudo o mais, mas gosto assim. Os pássaros parecem sentir-se mais livres e fazem imensos ninhos. Só tenho de vigiar os instintos felinos das minhas duas gatas, que acham imensa piada a tentar alcançar ninhos e pássaros. Há uns dias, a Júlia deixou um pássaro pequenino aqui no terraço, como se fosse um troféu. Fico sempre zangada com elas como se fossem gente, quando é assim.
      Estes cogumelos são parte da base de um risotto muito especial. E cogumelos salteados e fatias de pão torrado parece-me uma formulação bem inspiradora. Fiquei a pensar nisso:)

      Um beijo.

      Mar

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  3. Um espaço tão lindo, o vosso jardim. Com uma qualquer aura de encanto, de mistério, de reduto de um tempo sem medida. E assim como que toma conta de nós. Envolve quem o percorre. Um dos privilégios do sítio onde moram. E que devolvem por inteiro, na forma como cuidam. Que lindas as flores e os verdes do mês que tão bem descreves. Entre faz pensar nesse caminho. E em como é bom percorrê-lo: viver o Inverno e ir ao encontro da Primavera...
    Beijo
    Babette

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    1. Olá Babette,

      É cheio de lugares secretos. Ainda me lembro da primeira vez que vocês vieram cá a casa. Os teus miúdos foram logo a correr lá para fora e eu só pensava nas escadas e nos muros e nas pedras. Agora já conhecem as árvores e as heras e é mais tranquilo:)
      É isso. Ao encontro da Primavera. Esteve um dia tão bonito, hoje. Um dia tão Primavera, que foi. E ontem choveu. Um tempo entre, este. Março é Inverno misturado com Primavera.

      Um beijo.

      Mar

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  4. Um jardim que se adivinhz maravilhoso. Lindas, as flores do início da Primavera. Bela luminosidade, a das fotos - como sempre.

    Ana Vasconcelos

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    1. Olá, Ana

      É um bocadinho de mundo maravilhoso, sim. Pelo menos, tem esse efeito em mim. E obrigada por isso da luz nas imagens.

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  5. Olá Mar,

    Em primeiro lugar, que saudades de vir aqui e deixar-me estar! Olhar as fotos, primeiro tudo de seguida e depois devagarinho, uma de cada vez.

    Depois, que bem me fizeram as suas palavras. Depois deste último mês.

    Engraçado, já disse o mesmo no blogue da Ilídia. Não é por acaso que vocês são amigas.

    Também ela falou da sensação renovação que se sente na Primavera, independentemente do rigor do Inverno. E de ciclos.

    É bom saber isso. Faz bem pensar nisso.

    E saber que, por mais difíceis que sejam os dias, por mais sobrecarga de trabalho que tenha, há sempre um outro mundo á minha espera, onde está a minha cozinha.

    O meu marido ontem perguntou-me como é que eu descarregava a pressão dos dias. E eu respondi: "assim". Com o jantar, o pôr da mesa. E fiz um bolo de iogurte. Que depois recheei e cobri com curd de limão e framboesas. Foi a sobremesa.

    O oxigénio deste mês de Fevereiro foram 4 dias no Alentejo. na zona do Alqueva. Maravilhosos!

    E uma ida ao Apolónia. Já tenho todos os ingredientes para finalmente reproduzir a sua mousse de chocolate.

    Sim, a Natureza diz que é Primavera. Diz que só é preciso um pouco de paciência, a seguir ao Inverno vem a Primavera. Isso é garantido. E pensar nisso faz bem, diz que está tudo bem.

    Um beijo do Algarve,

    Sandra Martins

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    1. Olá, Sandra

      Alegria pelo seu regresso. E obrigada por gostar dessa maneira. Fico feliz por saber que está bem, aí.
      Impossível não assinalar aqui as flores que nasceram no primeiro dia de Março. Assinalo-as interiormente, todos os anos. Especialmente os jacintos, que têm um significado íntimo. Há uns anos, foram uma espécie de razão para continuar, depois de um episódio que poderia ter sido só devastador. As flores até que são frágeis, mas têm poderes secretos:)
      E eu não estou impaciente, em relação à Primavera. É difícil dizer, mas este Inverno está a ser muito sereno, muito generoso. Tenho tido a sensação de estar a ser um tempo extremamente revelador. Guardá-lo-ei sempre como um dos Invernos mais bonitos e mais densos da minha vida. Quando vier a Primavera, quero vivê-la também assim.
      Coisas e dias bons para si. Esse bolo deve ter ficado delicioso. Uma boa maneira de finalizar o dia e uma refeição.

      Um beijo para si.

      Mar

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  6. Olá Mar,

    Vim para dizer que fiz ontem a mousse de chocolate. Finalmente!

    E que bem que soube!

    Acabei por arranjar uma nova versão, involuntariamente.

    Não coloquei raspas de laranja porque não tinha em casa. É tão habitual ter citrinos na fruteira nesta altura do ano que nem olhei. E também não olhei com atenção para a receita. Nem parece meu. Mais um sinal de que o mês de Fevereiro me fez mal.

    Depois de começar a fazer é que reparei que de chocolate negro eram 200 gr. Como só tinha 100, usei mais chocolate de leite.

    Ficou muito boa e desapareceu praticamente toda (depois a balança acusa...).

    Tenho que voltar a fazer, "ipsis verbis", para comparar as versões.

    Obrigada.

    Um beijo do Algarve e, uma vez que já é 5ª, votos de bom fim - de - semana,

    Sandra Martins

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    1. Boa noite, Sandra

      Imprevistos desses tornam a vida mais doce. E vai ver que a balança é boazinha:) Eu acho que as balanças não gostam é de massas folhadas e coisas do género.

      Obrigada. Por ter querido reproduzir essa mousse aí longe. E por vir dizer aqui da sua experiência. Fico sempre feliz e grata.

      Um beijo grande para si.

      Mar

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  7. Este post tem um quê de magia. As flores, os recantos do teu jardim. Lindos, os narcisos, os jacintos e a magnólia. E linda a forma como vives tudo isso, a aproveitar cada estação, valorizando cada coisa que nos oferece.
    Uma magnólia em flor é das visões mais bonitas. A minha, coitada, nunca floriu. Todos os anos penso que será o ano, mas ainda não foi. Mas ainda não perdi a esperança :)

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Olá Ilídia,

      Já te contei que tive uma infância um bocadinho errante, sem morada certa. E nunca havia jardins em nenhuma dessas moradas. O que não deixava de ser curioso, dadas algumas coordenadas familiares que não importam para aqui. Mas o ponto é que eu ficava triste, sempre que chegávamos a um sítio novo e percebia que também não havia jardim. Talvez seja por isso que vivo tanto este lugar. E eu sou do género de viver aquilo que há para viver. Também será esse dado a funcionar.
      Não entregues os pontos. Ainda hoje te disse que foi essa minha fé que manteve o limoeiro ali do jardim. Há coisas das quais devemos desistir. De outras, não.

      Um beijo.

      Mar

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