Do que eu gosto é de gostar. E sou do género de gostar muito de gostar muito, quando acontece ser assim. O avesso deste sol é que, quando não gosto ou quando deixo de gostar, é como se alguma coisa de cristal se quebrasse. Fazendo a comparação inevitável com a comida, é assim como desligar um lume. Mas o contrário disso é tão bonito e vale tanto por cada uma das vezes em que percebi que na minha vida havia lumes que devia deixar extinguir. Há temperos que não valem mesmo a nossa atenção e o nosso amor. Quando é assim, é melhor desligar e não lamentar muito.
O amor. O tal ingrediente superlativo. O detalhe que muda tudo. Nisto da comida, nisto de receber alguém em nossa casa. Se pensarmos a sério, é bem sério, isso de abrirmos as portas da nossa intimidade. Fazer comida, escolher os vinhos, pôr uma mesa. Receber é um assunto muito sério. E, ao mesmo tempo, carece de alegria, de encantamento, de ternura. Por isso, não concebo nenhum desses movimentos sem uma verdade limpa.
No dia das imagens, recebi duas pessoas que me são muito. A tia Beca e o tio Mourão. Tecnicamente, são tios do meu marido. Mas eles adoptaram-me e eu a eles. Às vezes, o sangue é uma questão dispicienda e o amor é que vale. Seja como for, gostei deles mal os conheci. E sei que é recíproco. É bom pegar no telefone e ligar à minha tia Beca para lhe dizer que tenho saudades dela ou que encontrei um vinho de que ela vai gostar e que estará à mesa, quando voltarmos a reunir-nos. É bom que ela me abrace, assim que abro a porta e que pergunte "como é que está a minha menina?". A verdade é que, nem que "a menina" às vezes esteja mal, fica logo bem, depois desse abraço e dessa saudação. Os afectos têm uma componente de repetição ou de previsibilidade que é só linda. Parece que nunca nos cansamos do que gostamos. Parece que nunca nos cansamos de quem gostamos. Creio eu que é assim.
Fica a mesa que os recebeu num destes dias de chuva e de frio. A receita da comida principal. E um vinho que fez sentido com isto tudo. Este. Quando é assim, o Inverno é tão de gostar.
Carne de vitela em vinho tinto
NB: A peça de carne adequada para este tipo de cozinhado é a parte do "patinho". Idealmente, devemos temperar a carne com o vinho tinto que for servido para acompanhar e o sumo de laranja é milagroso no tempero das carnes vermelhas. Dou a referência de uma hora para panelas de ferro fundido, mas creio que deve ser necessário mais dez a quinze minutos num outro tipo de panela.
1 quilo de carne de vitela + 1 cebola vermelha + metade de um pimento vermelho + 1 talo de aipo + 4 dentes de alho (esmagados e com um pouco da casca) + sumo de metade de uma laranja + 2 folhas de louro (sem a nervura do meio) + meio litro de vinho tinto + 1 colher de Maizena (uso Express) + sal, azeite, molho inglês, coentros e pimenta preta q.b.
No talho, pedir para partir a peça de carne em cubos mais ou menos do mesmo tamanho. Se possível, temperar com alguma antecedência. No tacho onde vai ser cozinhado, colocar os pedaços de carne e todos os temperos da sequência. Envolver bem com as mãos, para que a carne tome o tempero por igual e deixar estar, se houver tempo. Caso não haja hipótese disso, leva-se ao lume e deixa-se estar durante uma hora, primeiro em lume forte (os primeiros dez minutos) e os seguintes em lume brando, para cozinhar lentamente. Durante esse tempo, mexer e acrescentar mais vinho e um pouco de água, se necessário. Pouco antes de retirar do lume, acrescentar a Maizena, mexer, rectificar os temperos e salpicar com mais coentros.
A música é esta por gostar muito. Placebo. Loud like love.
A música é esta por gostar muito. Placebo. Loud like love.
Boa noite, Mar.
ResponderEliminarÉ verdade, receber é expor a nossa intimidade, é partilhar o nosso mundo. Daí, só devemos receber os que nos são queridos, aqueles que gostamos de gostar.
A mesa, como sempre, muito bonita e a carne de vitela com um aspecto divinal, quase que lhe sinto o aroma. Deve ter sido uma bela refeição.
Também costumo fazer assim a vitela, mas, normalmente, uso vinho branco.
Uma boa semana.
Bjs
Ana
Boa noite, Mar.
ResponderEliminarÉ verdade, receber é expor a nossa intimidade, é partilhar o nosso mundo. Daí, só devemos receber os que nos são queridos, aqueles que gostamos de gostar.
A mesa, como sempre, muito bonita e a carne de vitela com um aspecto divinal, quase que lhe sinto o aroma. Deve ter sido uma bela refeição.
Também costumo fazer assim a vitela, mas, normalmente, uso vinho branco.
Uma boa semana.
Bjs
Ana
Boa noite, Ana
EliminarSim. Esse espaço deve ser sagrado. No fundo, as nossas vidas são tão cheias de contrariedades e de negações. Por isso, os lugares onde respiramos na nossa intimidade devem ser preservados, guardados.
Muito obrigada por gostar. Esta mesa foi posta com muito carinho. E a comida foi feita também nesse espírito. É-me necessário que assim seja. Caso contrário, nada teria acontecido.
Também faço com vinho branco, mas o molho fica mais denso com vinho tinto. É um molho que liga bem com dias de chuva. Parece que ficamos mais felizes por estarmos em casa, junto dos que nos amam.
Um beijo. Boa semana.
Mar
Dos textos mais bonitos dos últimos tempos... Porque isso do gostar está mesmo bem (d)escrito. É assim. Ponto. E isso de querer bem, de gostar, significa a exposição, o dar, a ternura, o encantamento. Perdi esses adjectivos com algumas pessoas. E muitas delas depois da sequência do dar, do expor, do receber ter tido como resposta algumas referências que me fizeram perder esse encantamento. Quebrou-se esse elo, então. E eu concluí que seriam os tais temperos dos quais não fazia mal desistir. Lamento, mas gosto muito mais de pensar nos que agora me merecem toda a ternura. Porque tal como tu, eu gosto muito é de gostar ;)
ResponderEliminarBabette
PS. Mais um beijo depois das deambulações sobre fubá, açaí, goiaba e queijo de minas ;) Fiquei com fome e tudo ;)
Também aqui, essas perdas. Faz-se o processo. Anda-se para a frente. Creio que a serenidade ajuda, nesse caminho. Se fizemos as coisas por bem, com verdade, está tudo certo. Mesmo que tudo nos pareça profundamente errado. Ante as desilusões e as mágoas, a serenidade. Gosto assim.
EliminarE sim, não há mal nenhum em deixarmos cair algumas coisas. Eu achava que não, que tinha sempre de persistir nos afectos. Mas se eles se perdem, fazer o quê?
Obrigada por gostares.
Também fiquei com saudades do Rio, depois da nossa conversa de há pouco. Vontade boa de voltar lá:)
Outro para ti.
Mar
(Nunca sei se os meus comentários são publicados visto que a minha conta dá sempre erro) dizendo de novo: em Março irei ver Placebo. Se esta música tocar irei lembrar-me de si. Beijinho grande professora.
ResponderEliminarFoi publicado sim:) E ainda bem, que gosto muito de ver aqui o teu nome. Vais gostar do concerto, que eu sei e é bem linda, essa possibilidade algures em Março. Fiz ontem um "gosto" enorme numa das tuas fotografias. Proud and loud love, linda Marta.
EliminarUm beijo grande para ti.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarGosto sempre tanto dos seus textos mas, este tocou-me particularmente.
Por me fazer lembrar uma tia, irmã do meu pai, de quem gosto muito.
Nem consigo imaginar o dia em que tiver que me despedir dela.
E também por me rever nas suas palavras. Seria incapaz de convidar alguém de quem não gostasse para ir jantar a minha casa.
Também eu já desliguei lumes que não valia a pena manter acesos. Outros, talvez por me custar muito, mantive me lume muito brando. Nada de fogo forte, já não sou capaz com certas pessoas.
O que, no meu caso, vai dar ao mesmo porque eu sou uma pessoa de paixões.
Gostei muito da sequência das fotografias!
Com este tempo cinzento e frio, até apetece ficar a olhar para elas, principalmente a do tacho.
Obrigada pelas seus esclarecimentos por causa da mousse. Creio que cognac não consta do stock de bebidas lá em casa. Uma aguardente velha sim.
Servirá como substituto?
Hoje quero fazer o arroz de molho inglês com ervilhas, como acompanhamento de bifes de frango com limão.
Um beijo do Algarve,
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarMuito obrigada por gostar dessa maneira. Pelo que tem dentro das suas vivências. Abrace muito essa sua tia. Faça coisas boas. Se pensarmos bem, a parte mais significativa e luminosa das nossas vidas acontece quando somos capazes de fazer bem a alguém só por isso de fazer bem.
Tem sido tempo de deixar que alguns lumes se extingam. A vida é também assim. Às vezes inventamos razões para não deixar cair as coisas, mas a realidade toma conta do assunto.
Experimente com essa aguardente. A minha intuição diz que vai correr bem. E aí no Algarve há uns nougats de figo deliciosos que parecem ter sido feitos para aquela mousse de chocolate. Se quiser, corte-os em pedaços pequenos e embeba-os nessa aguardente.
Também vou fazer o arroz de molho inglês daqui a nada, para associar a postas de garoupa com aipo e maçãs verdes:)
Um beijo para si.
Mar
Linda mesa! Com o tempo lá fora a pedir cores. Adorei minha amiga. Os fentos, e os teus afetos que eu sei bem como são, francos, mal a tua porta se abre. E é como dizes, é sério o assunto receber. Dar total tempo a quem chega, dar a comida e dar o espaço e dar amor. Dar todo o tempo de preparar. Aquele que eu imagino só teu e da tua música e dos teus tachos.
ResponderEliminarUm beijinho grande,
da Pipinha
Olá Pipinha,
EliminarA mesa de sábado à noite, aqui em casa. E a alegria quentinha do abraço da minha tia Beca. Ela ficou bem feliz. E eu também. Estava tanto frio e chovia muito, mas estávamos bem. Ela gosta de gostar. Partilha do espírito.
Obrigada, minha linda.
Um beijo grande.
Mar
Gosto sempre tanto dos textos! A mesa esta linda como sempre, tudo muito delicado e muito bem conseguido, so poderia ser para alguem de quem gostamos muito. As chamas vao passando por nos e sempre nos ensinam alguma coisa, umas ficam, outras sao so boas lembrancas do passado e outras nunca chegaram a ser chamas. bjs
ResponderEliminarOlá Lígia,
EliminarObrigada por esse gostar exclamativo. Gosto muito destes meus tios. E tenho uma cumplicidade especial com a minha tia. Entendemo-nos bem. As coisas exteriores acabam por absorver isso, creio. Ou ser consequência. E sim, ela gostou da mesa. É do género de dar conta dos pormenores.
Nem todas as chamas permanecem como boas lembranças. Quando é assim, dou início ao processo de esquecimento, para que se queime tudo até ao fim.
Beijos para si.
Mar
Este teu texto fez-me pensar nas tias Becas da vida de tanta gente e no facto de a tanta gente fazer falta tias com abraços reconfortantes como este da tua. Muito bonito este texto que também fala de deceções e de eliminação de alguns "temperos" da nossa vida. E eu gostava de ser assim e de gostar muito e de mostrar que gosto muito, mas simplesmente não consigo ser efusiva a esse ponto. Há sempre qualquer entrave. E tenho pena de ser demasiado introspetiva e racional. Acho que o gostar fica sempre assim pela metade e, muitas vezes, morre mesmo e, com ele, morrem tantas coisas e pessoas. Deixam de fazer parte. E tenho pena, mas não se manda nos afetos.
ResponderEliminarObrigada por esta mesa.
Beijinhos
Patrícia (foodwithameaning)
Olá Patrícia,
EliminarJá fui mais efusiva. Os desgostos vão fazendo os seus sulcos. Por isso, entendo o que escreveste. Creio que os equívocos das nossas vidas é que são perigosos. Procuramos sinais transcendentes no que nos acontece. Lemos coisas nas pessoas que não estão lá. Por isso, é bom que não sejas um equívoco para ti. Que te leias, que te sintas. Mesmo que seja para lamentar uma ou outra coisa. Mas devemos fidelidade ao que somos, antes de tudo o mais. E sim, os afectos não dependem só de nós.
A minha tia Beca trata-me como a uma filha. Nunca hei-de agradecer o suficiente. Creio que as minhas mesas nunca serão suficientes. Obrigada a ti.
Um beijo.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarO arroz de molho inglês fez, mais uma vez, sucesso. Desta vez com ervilhas. Já tinha experimentado a versão original e, outra vez com passas. Sempre bom!
Fiquei interessada na sua versão de postas de garoupa. Receitas de peixe são sempre mais raras.
Mas, para além de lhe dar conta do sucesso do arroz, queria dizer outra coisa.
O facto de ter falado ontem na tal aguardente, fez-me lembrar dos copos de "balão" para servir o cognac.
E achei que também serviam para a dita. E que seria muito bom desfrutar antes do jantar, com o frio que está. E chuva também.
Pus uma mesa bonita, acendi velas pela casa toda, Mozart a tocar e bebemos aguardente velha antes do jantar.
Ficaram esquecidos o stress do dia, o Inverno e todas as outras coisas que só merecem ficar à porta.
Está a ver o que para aqui vai a propósito da sua mousse de chocolate?
Também implica uma ida ao Apolónia, coisa que adoro!
Só tenho que lhe agradecer. E já agora à Nigella também.
Um beijo do Algarve, já a meio da semana
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarEsse arroz é mesmo especial. Nunca mais fiz arroz branco. Sempre a mesma base e com acrescentos, quando me apetece. O de ervilhas é o preferido do meu filho. Fico ainda mais feliz por saber que lhe soube bem.
Hei-de deixar aqui a receita, um destes dias. Essa garoupa perfumada com maçãs verdes está em fase de testes:)
Lindo, esse seu/vosso ritual de final de dia. Todas as pequenas coisas têm sempre algo de salvífico. É o que eu acho, pelo menos. Especialmente nos dias de chuva e de frio, em que tudo parece mais cinza.
Obrigada pelo seu registo de coisas boas. E um beijo.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarVim cá aborrecer novamente porque achei que fazia sentido, pelo conteúdo do post.
Embora seja a propósito da mousse de chocolate (ainda). E de gostar.
Quando temos preconceitos e não nos queremos abrir a experiências novas, só ficamos a perder.
Não é que a propósito da mousse de chocolate, descobri que o meu marido adora marshmallows e nougat de figo?
Ao fim de 15 anos de casamento, agora é que descubro!
Sem dúvida que a comida, para além do óbvio, tem um grande poder! E este seu cantinho é um fio condutor também muito poderoso.
Se já tinha muita vontade de experimentar a mousse, pela minha curiosidade, agora ainda tenho mais esse argumento. Para já, está decidida uma ida ao Apolónia para encontrar os ingredientes que fazem a diferença.
Quando concretizar, dou conta do resultado.
Um beijo do Algarve,
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarNão aborrece nada. Respeito muito quem me escreve. Lamento só poder responder à noite, a maior parte das vezes. Mas é a minha maneira de estar inteira, nas coisas. Mas não quero que seja à pressa, sem atenção ao que me escreveram/ao que estou a escrever.
E é muito lindo descobrirmos coisas nas pessoas que julgamos conhecer/entender de olhos fechados. Parece-me que tem aí as coordenadas certas para que essa mousse corra bem. Espero que sim.
Obrigada pela sua atenção. Pelo carinho. Um beijo.
Mar