Kairos.












Era preciso esperar, até poder deixar aqui esta comida de que gosto tanto. Esperar pelo kairos, o momento oportuno. O espaço de tempo que me é necessário, antes de escrever. Os ingredientes, os tempos, os processos já facilitados, as adaptações. Preciso de resolver todas essas questões previamente. Para mim, a medida certa é fazer cada coisa nova três vezes. Isso obedece a uma lógica que me ajuda a partilhar aqui as coisas com serenidade. E então, a primeira vez é livre de registos. É só assim de sentir, de ir percebendo como é que as coisas funcionam entre si e se consigo ou não interpretá-las. Corre quase sempre bem. Mas há sempre aquele quase que nos falta. E eu acho que isso é também importante. As respostas erradas que nos fazem chegar às respostas certas. Ou não, ao percebermos que, por vezes, o errado é só errado. A segunda vez é para ir escrevendo a receita, num dos meus cadernos, actualizados ao ritmo da comida que vou fazendo. E a terceira vez guarda só a alegria e o encantamento. Porque não preciso de estar a medir os passos nem as quantidades. Já estão em mim. Concentro-me só em aproveitar bem o momento. Cada uma das efervescências, cada um dos aromas, cada uma das cores das coisas.
Foi também assim, com as migas que ficam hoje. A receita foi-me dada por uma amiga alentejana que tem um tempero que se reconhece de olhos fechados. Cumpri tal como me disse, mas com uns dados meus, algures na segunda vez em que fiz esta comida que é o Alentejo, no que tem de íntegro. Fica então. Com fragmentos da mesa em que aconteceu. 

Migas da Isabel

10 fatias de pão (alentejano, de preferência) + 1 cebola (média) + 4 dentes de alho (picados, com um pouco da casca) + 1 folha de louro (sem a nervura do meio) + metade de uma chouriça + meio copo de vinho branco + 5 tiras de bacon + 3 tiras de pimento vermelho (picadas) + 1 colher (de sopa) de massa de pimentão + água, flor-de-sal, azeite e coentros q.b. 

Primeiro, corta-se as fatias de pão em pedaços (podemos e devemos usar a côdea). Tempera-se com um pouco de flor-de-sal e com alguns coentros picados. Reserva-se. Entretanto, aquece-se cerca de 1 litro de água. Ao mesmo tempo, pica-se a cebola, os alhos, o pimento e um pouco de coentros. Corta-se depois a chouriça e o bacon em pedaços pequenos. Leva-se ao lume tudo junto, numa caçarola, com um fio de azeite. Deixa-se refogar durante uns cinco minutos, mexendo. Decorrido este tempo, acrescenta-se o vinho e deixa-se estar, até evaporar (cerca de dois minutos). Retira-se do lume, para travar um bocadinho o processo. Assim que a água estiver quente, acrescenta-se ao pão (aos poucos). Quando se perceber que é a quantidade certa, pressiona-se os pedaços de pão amolecidos com uma colher de pau. Leva-se o refogado outra vez ao lume e acrescenta-se o pão amolecido e a colher de massa de pimentão, envolvendo bem. Se for preciso, mais um pouco de água quente, até ficar com a consistência de que gostamos. Prova-se, para ver se está de acordo com o nosso gosto. Se necessário, acrescenta-se mais flor-de-sal e mais azeite. No momento de servir, mais coentros picados. 

E sim, ficam maravilhosas com este vinho. Tapada do Chaves Reserva 2010. Foi um ano bom, 2010. Deixo aqui este lugar no Alentejo, com a descrição de um vinho de que gosto (mesmo) muito. 


A música é esta porque dançar isto tem uma cadência serena. É como fazer uma receita nova pela terceira vez. Tal como a comida, acontece e pronto. Frank Ocean. 


13 comentários:

  1. Bom dia, Mar.
    Admiro a sua capacidade de organização. Tão metódica. Os seus rituais. E adoro migas/açordas. Esta receita é para fazer e, talvez desta vez, o meu filhote aprenda a desfrutar de umas belas e saborosas migas.
    A mesa, pelos fragmentos, adivinha-se linda e acolhedora.
    Continuação de boa semana.
    Bjs
    Ana

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  2. Bom dia, Mar.
    Admiro a sua capacidade de organização. Tão metódica. Os seus rituais. E adoro migas/açordas. Esta receita é para fazer e, talvez desta vez, o meu filhote aprenda a desfrutar de umas belas e saborosas migas.
    A mesa, pelos fragmentos, adivinha-se linda e acolhedora.
    Continuação de boa semana.
    Bjs
    Ana

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    1. Olá Ana,

      Creio que neste, como em muitos outros aspectos, procuro conjugar o meu sentido de organização com a minha tendência natural para o que é do domínio do emocional. Gosto assim. No que diz respeito ao blog, o método é para isolar as hipóteses de correr mal a outros. Ficaria desolada.
      Se sim, ficarei feliz. Como fico sempre. Este lugar tem por base essa ideia de disseminação muito livre.
      Foi a mesa do jantar de ontem. Achei que a luz daquelas velas merecia cristalização e não resisti a fazer um registo.

      Que esteja a ser uma boa semana para si. Obrigada.

      Um beijo.

      Mar

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  3. Querida Mar,
    há muito tempo que não deixo registo das minhas passagens por aqui. Não que tenha deixado de te ler, de ver as tuas comidas, sempre tão aconchegantes.
    As tuas migas são tão diferentes das minhas. Fiquei muito curiosa e acho vou experimentar.
    um abraço,
    Guida

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    1. Olá Guida,

      Na paz:) Nisto das migas, não cruzei informação, antes de reproduzir a receita da minha amiga alentejana. Disse-me como aprendeu a fazer com a mãe, eu cheguei a casa e fiz. Tinha receio de fazer migas por achar que não se aproximariam da minha memória sensorial do Alentejo. Descobri que estava enganada.

      Obrigada por gostares de ler e de ver.

      Um abraço.

      Mar

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  4. Olá Mar,

    Engraçado o título do post, é parecido com "Queirós".

    Talvez daí a facilidade em dizer as coisas certas na altura certa.

    Eu não sou muito de migas. O problema não é com a comida alentejana, de que gosto muito. É genuína, sem sabores esquisitos nem preocupações com a apresentação. Está lá o sabor e isso é que importa.

    É que eu só como pão ao pequeno - almoço. Não dispenso a minha torradinha, sabe-me tão bem!

    Ou, raramente, á refeição.

    O meu marido é que me fala em migas. A avó, com quem ele foi criado, fazia para o pequeno - almoço.

    Tradições da serra, certamente.

    Por ele e porque gosto de ter a certeza do que gosto ou não, hei-de experimentar.

    Um beijo do Algarve e votos de bom fim - de - semana (o meu será um pouco diferente do habitual, o meu marido estará em Lisboa, em aulas).

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Uma sonoridade semelhante, sim.

      Eu adoro esta comida do Alentejo. Talvez por ser tão despretensiosa, tão concentrada no que vale, no fim de contas. As melhores memórias são sempre as que nos sabem bem. As que nos amargam, são só de esquecer.

      Eu adoro pão. E está em todas as refeições. Especialmente antes do almoço e do jantar, com azeite. Tenho o cuidado de não exagerar e vou equilibrando, com a ajuda persistente da dança.

      Parece-me o melhor dos pretextos. Fazer isto porque o seu marido gosta muito. Já fiz várias coisas de que pensava não gostar, com esse pretexto. Acabei por gostar de muitas delas.

      Um bom fim-de-semana diferente para si. Um beijo.

      Mar

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  5. Imagino-te a fazer as pazes com o mundo enquanto cortas todos os ingredientes miudinhos e preparas a coreografia que se segue. A sucessão de movimentos que hão-de pôr o jantar sobre a mesa. As luzes veladas revelam os momentos quentes e ternos do vosso jantar. E dão-nos um pouco da paz que se percebe. Um bom fim-de-semana.
    beijo
    Babette

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    1. É uma coreografia tranquila. Do género de deixar o mundo lá fora. Começa tudo a partir do momento em que tomo o meu segundo banho do dia, mal chego a casa. É pouco ecológico e não sei o que mais, mas é um ritual diário de que não abdico. De uma certa forma, esse dado prévio liberta-me para estes momentos que antecedem o jantar de cada um dos nossos dias. Creio que a vida seria bem diferente, sem estes rituais pequeninos e um bocadinho românticos. Espero nunca perder a capacidade de me encantar com tudo o que na minha vida é detalhe, pormenor.

      Um bom fim-de-semana. E um beijo.

      Mar

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  6. Um post sobre o teu processo de criação :) Muito metódica, a menina :) Não sou assim tanto :) Mas tenho uma certeza: só acaba no blogue aquilo que agradou e que vale a pena ser partilhado. Por mais bonita que tenha ficado a fotografia (lembras-te de uns certos pimentos? ;)
    Um dia venho buscar a tua receita de migas :)

    Continuação de um bom domingo.

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Muito metódica:) E extremamente pragmática. Gosto desses traços. Especialmente porque se conciliam muito bem com a parte onírica e romântica. Como costumo dizer, resolvo primeiro as coisas pragmáticas para poder estar à vontade na poesia e na beleza. Nisto da comida trata-se disso.

      E sim, fazes bem em não publicar experiências que ficam bem na fotografia e que não cumprem no resto. O mundo já está tão cheio de aparências, que não precisa de mais contributos.

      Uma boa semana para ti. E um beijo.

      Mar

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  7. Olá, Mar.
    Voltei. Tinha de lhe dizer que fiz o seu arroz de pato. Segui, metodicamente, as instruções, só fiz umas pequenas alterações, juntei umas gotas de vinagre (junto sempre no arroz) quando deitei a calda e, em vez do ovo, cobri com queijo ralado. Ficou óptimo. Obrigada por ter ajudado na confecção de uma refeição que nos deixou feliz.
    Continuação de um bom domingo.
    Bjs
    Ana

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    1. Olá Ana,

      Agradeço muito a sua atenção. É-me importante ter esse eco. Procuro isolar as hipóteses, para que as receitas sejam inteligíveis e para que tenham dentro os pequenos detalhes que vou apontando nos meus cadernos. Mas é sempre bom saber que houve alegria e felicidade por causa de uma receita. Obrigada outra vez.

      Uma boa semana para si.

      Um beijo.

      Mar

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