Preservação e "O Príncipe Feliz" de Oscar Wilde.

























Dentro dos muros do palácio, vivia feliz. Era chamado assim: de príncipe feliz. Não sabia o que era a velhice ou a dor, a mágoa ou a negação. Todos os que o rodeavam eram jovens, fortes e belos. As flores nunca pareciam morrer. E a relva estava sempre verde. A morte era um dado oculto. Ele não precisava de saber que um dia, tudo aquilo que conhecia, acabava por morrer. Mas um dia ele morreu. O príncipe feliz morreu. Sem verdade. Os homens que nunca lhe disseram que as pessoas e as coisas morriam fizeram dele uma estátua. Cobriram de ouro, rubis e safiras a reprodução perfeita do corpo morto do príncipe feliz. E arranjaram-lhe uma morada bem alta. De lá de cima, todos continuariam a admirá-lo. Por ser tão belo. Por ter sido tão belo, continuaria a encher de beleza as vidas dos que se moviam cá em baixo. Perto do pó dos caminhos imperfeitos para lá dos muros onde habitou o príncipe feliz. Os homens prestar-lhe-iam tributo. E ele continuaria a ser belo, para deleite dos homens e das mulheres que nunca lhe haviam dito que iria morrer. O seu castigo seria a perspectiva permanente da miséria e da maldade que havia aos pés do seu corpo feito ouro. Veria todos os dias os que padeciam. Veria todos os dias os que tinham fome. Veria todos os dias cada um dos desesperados que se atiravam da ponte mais alta do seu reino anteriormente perfeito. Todos os dias teria de assistir. E todos os dias teria de não poder fazer nada ante os que caíam, por não poder ser de outra maneira.
Numa noite, apareceu uma andorinha. Tinha parado a meio do voo que a levaria até ao Egipto. Tinha de partir, porque o Inverno estava perto. Se ali ficasse, morreria de frio. Noite após noite, o príncipe feliz pediu à andorinha para esperar só mais um dia. Noite após noite, pedia-lhe para que o despojasse dos rubis, das safiras, do ouro que o cobria por inteiro. Ela iria ser as mãos, os pés, os olhos dele, junto dos que sofriam cá em baixo. Ela assim fez. Todas as noites dizia que tinha de ir embora para um país mais quente. Todas as noites acabava por aceder aos pedidos do príncipe feliz. Deixava uma safira numa casa onde havia fome. Um rubi na casa de um escritor desesperado. E folhas de ouro nas mãos dos infelizes que o príncipe lhe apontava do alto do pedestal onde o haviam colocado. Até não restar mais nada da beleza do príncipe feliz. Numa noite muito fria, a andorinha beijou o príncipe nos lábios. Disse que o amava e que, por isso, teria de o beijar nos lábios e não no rosto. Depois, morreu.
No dia seguinte, os homens olharam a estátua. Repararam que tinha deixado de ser bela. Não brilhava, porque já não havia ouro nem safiras nem rubis. Era feio, o príncipe feliz. Já não iria servir-lhes de nada, por não poderem viver da beleza dele. Mandaram destruir a estátua. Entulho, o corpo do príncipe feliz. Junto dele, o corpo muito frágil e morto de uma andorinha. Segundo Deus e os seus anjos, as duas matérias mais preciosas daquela cidade. Mas nunca ninguém soube disso. Só Deus lá muito longe, que só existe depois de morrermos, dizem. E os seus anjos sempre em trânsito. Os homens não. Os homens só queriam do príncipe que ele fosse aquilo que eles queriam: belo. E feliz. Mais nada. 
Uma adaptação livre de uma história de Oscar Wilde. Foi escrita para crianças. Mas eu acho que O Príncipe Feliz é uma história de adultos. Não obstante, li-a ao meu filho, numa destas noites. Disse-me que não tinha percebido tudo, mas que sabia que era uma história muito bonita. Eu sei por que é que ele não percebeu tudo. É que são precisos vários sedimentos de desilusões, até que se alcance o sentido desta narrativa. Em todo o caso, que haja sempre felicidade com verdade. Não uma felicidade "murada", como na história de Oscar Wilde. E como na de Siddhartha, de Hermann Hesse.
E aprender que, face ao que nos arde, depois de mais uma desilusão, há sempre a possibilidade de erva verde. Tal e qual como na terra queimada. Por estes dias, uma homenagem silenciosa ao Outono. Narrativa de uma dádiva que se transformou em frascos de doces e em caixinhas de molho de tomate. Os frascos e as caixas preservarão o melhor e deixarão de fora tudo aquilo que não interessa. Depois, mais preservação. E bolo de iogurte. Com café quente, bebido por uma tigela. Um caderno novo, para ir escrevendo a vida por escrever. E preserverar, com preservação.
Molho de tomate feito no Verão e preservado para o Inverno
8 quilos de tomate coração-de-boi + 15 dentes de alho + sal, azeite e açúcar.
Primeiro, retira-se a casca dos tomates. Reservam-se, partidos em pedaços grosseiros. Num tacho largo com azeite em doses generosas, os dentes de alho picados (com pedaços da casca, para acentuar os sabores). Deixa-se só um bocadinho ao lume e junta-se o tomate. Tempera-se com sal (ao gosto de cada um) e com uma colher (de sopa) de açúcar. Fica a apurar durante uns vinte minutos. Rectifica-se de sal e de açúcar, se necessário. E deixa-se arrefecer. Depois, guarda-se em caixinhas no congelador. Preservado.

NB: Quando se usar, acrescenta-se o que quisermos. Pimento, orégãos, azeitonas, tomilho. Para guardar, deve ser o mais neutro e essencial possível.
A receita do doce de tomate está aqui . E a do bolo de iogurte aqui.

10 comentários:

  1. Mar
    Nem sempre a compreensão das coisas nos torna mais felizes. Contudo, também nos prepara para os embates e "lutas" inevitáveis.
    Ainda bem que partilhaste este texto. Faz bem ler estas coisas que nos permitem outras perspetivas e interpretações.
    Também eu ando numa fase de preservar e armazenar para os dias frios que hão-de chegar. Uma formiguinha!
    Um abraço
    Guida

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  2. Gostei de recordar "O Príncipe Feliz" pela tua mão. Ainda bem que o António não percebeu tudo. Que continue mais uns anos sem perceber. Quero prolongar a inocência do Manel o mais que puder. Que as desilusões demorem a chegar. Quanto a ti, que continues a "escrever sol".

    Um beijo,
    Ilídia

    Estou Vivo e escrevo Sol
    Eu escrevo versos ao meio-dia
    e a morte ao sol é uma cabeleira
    que passa em frios frescos sobre a minha cara de vivo
    Estou vivo e escrevo sol

    Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
    no vazio fresco
    é porque aboli todas as mentiras
    e não sou mais que este momento puro
    a coincidência perfeita
    no acto de escrever e sol

    A vertigem única da verdade em riste
    a nulidade de todas as próximas paragens
    navego para o cimo
    tombo na claridade simples
    e os objectos atiram suas faces
    e na minha língua o sol trepida

    Melhor que beber vinho é mais claro
    ser no olhar o próprio olhar
    a maravilha é este espaço aberto
    a rua
    um grito
    a grande toalha do silêncio verde

    António Ramos Rosa

    (Ao ler o teu texto, lembrei-me deste texto do poeta que nos deixou hoje.)

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  3. Que imagens belas, as que mostras. Preservar. Coincidência, ou apenas sintonia na forma como encaramos a vida, hoje também publiquei uma receita que guarda fruta para depois.
    A tua visão do Príncipe Feliz é terna e acutilante. Já li e reli. E pensei no António, que felizmente percebeu a parte que a sua ingenuidade de criança lhe permite. Antes assim.
    Obrigada à Ilídia pelo poema maravilhoso. E por prestar tributo a alguém que nos deixou.
    Babette

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  4. Olá Guida:

    Uma verdade. O Vasco lembra-me isso muitas vezes, dada a minha necessidade de compreender, de objectivar. A questão é que ando a aprender que não dá para isso o tempo todo. Quanto aos embates e às lutas, sabes que mais? Era escusado tanto. Tenho tido a minha dose.
    Mas é assim como escreveste. Os textos, os livros, os pensamentos...a diferença real vive nas palavras. Nas nossas. Nas dos outros. Obrigada pelas tuas, amiga formiguinha:)

    Um abraço grande.

    Mar

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  5. Olá Ilídia:

    Acabei de dizer obrigada no teu blog. Um poema. Hei-de falar-te do que significa/significou. Não aqui. Há coisas que pedem para não ser publicadas.
    Tive essa noção, face à maneira como ele entendeu esta narrativa. Do abismo que havia. Ele não sabe as coisas que acontecem às pessoas, à medida que o tempo passa. E isso deve ser preservado. Mesmo sabendo que a felicidade se declina também assim. Que seja com verdade, em todo o caso.

    Um beijo para ti. Com sol:)

    Mar

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  6. Olá Babette:

    Acabei agora mesmo de te ler. Isso tudo misturado, muito provavelmente. A traduzir-se nessa coincidência.
    Ele já sabe alguns dos ingredientes certos da vida. Não lhe oculto as coisas, nem protejo demasiado. A morte. A perda. O estar e deixar de estar. Não foi magoado ainda, o meu filho. Não foi desiludido. Nem sabe o que é isso. Melhor assim. Que tarde ou que não venha nunca, essa parte.
    Sabes qual o meu consolo, ante a morte de um poeta? Não foi. Está ali, naquele poema. Em todos os que escreveu. E nós, ali. Nós e a nossa humanidade terna. Feita poema.

    Um beijo de boa semana.

    Mar

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  7. Numa palavra, Mar:
    MARAVILHOSO!

    obrigada!

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  8. Olá Isabel:

    Numa palavra: OBRIGADA:)

    Um beijo.

    Mar

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  9. Que o seu António demore muito tempo a perceber o significado da história do "Príncipe Feliz", mas que vá aprendendo consigo as pequenas coisas que dão importância à vida e que por vezes conseguem pôr para segundo plano as desilusões.
    Gosto muito de preservar o que o verão nos dá e também ando nesse processo. Também é uma terapia.
    Um beijo,
    Graça

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  10. Olá Graça:

    Esse é um bom desejo. E um bom ponto de partida, também. Faz parte, o acumular de desilusões. O bom desse processo é perspectivarmos as coisas e as pessoas de maneiras renovadas. E frescas, se não amargarmos.
    Uma boa terapia, guardar o Verão.

    Uma boa semana para si!

    Mar

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