Shuffle.




























Aquilo que me pareceu difícil foi o silêncio. A possibilidade de silêncio em Roma. Não tivesse sido este o percurso. Assim silencioso. Imperceptível. Muito por causa dele. Por causa do amor dele pelas pedras esculpidas de Bernini. E então, um mapa por isso. Uma cartografia a obedecer a essa lógica. Igrejas. Fontes. Museus. Palácios. E foi possível, o tal silêncio que me parecia impossível. Neste lugar, muito especialmente: Chiesa di San Francesco a Ripa, em Trastevere. Vazia. Ninguém. Nem sinal de gente. Havia um êxtase em mármore. Contemplado num silêncio que me pareceu desconhecido. E neste sítio. Chiesa di Santa Maria della Vittoria. O êxtase de Santa Teresa. Mármore feito carne. Como se sentisse mesmo. As mãos. Os rostos. As tensões dos músculos. Tudo como se o mármore fosse habitado por respiração que não acaba. 
Uma outra parte do silêncio aconteceu por causa de um quadro. Na Galleria Borghese. Não é um daqueles que muitos procuram ver. Por isso, não havia ninguém na sala. O amor sagrado e profano. Há muito que queria vê-lo. Poder estar sentada a olhá-lo. As duas mulheres. A criança no meio delas. A água. As flores quase mortas. Silêncio também aqui. 
Silêncio numa mesa do Caffè Greco. Meio recolhida. Lá fora, o mundo parecia um ruído só. Muitas pessoas juntas, a formarem uma massa informe. E a impossibilidade de narrativa, por haver tantas. E tão juntas. Mas também nos caminhos mais caminhados é possível fazer um percurso pontuado por silêncios escolhidos. Os antiquários. Oásis de silêncio. Na Via del Babuíno. Na Via Margutta. Na Via Condotti. Difícil de imaginar. Mas sim. As portas fechavam-se e aquela ausência de perturbação. Só as vozes de quem estava. A explicar. A dizer as peças. A que tempo longínquo tinham sobrevivido. 
Estas coisas escritas são mais para dizer que sim. Que na Roma que parece esmagar, de tão bela, é possível o recolhimento. Pensei muitas vezes que aquela cidade é assim como uma mulher muito bela que não se deixa possuir. Permite a contemplação. Alimenta o desejo. Incendeia o imaginário. Mas não mais do que isso. Por ser estonteante, pode devastar. Estes lugares ficam como memória dos momentos em que há a possibilidade de retomarmos o nosso centro. Lugares em que nos detemos nos pormenores e nos esquecemos um bocadinho do todo. Assim, não ficamos (tão) esmagados. 
Memórias em shuffle. Como quando ouvimos músicas aleatórias, sem obedecer a uma lógica particular. A água das fontes. A mesa de um restaurante. Em suspenso. À espera que alguém a habite e lhe dê sentido. Palavras escritas em algodão. A dizer que o amor é uma revolução. As árvores muito altas, a tentar chegar a um céu mais azul. 
Com as memórias em shuffle, ficam dois livros. Um deles ensina a comida daqueles lugares. Os ingredientes. Os nomes das coisas. Fotografias muito essenciais. E aquela cadência das palavras escritas em italiano. O outro livro aconteceu-me. Eu não andava à procura, mas aconteceu. E parece-me o guia mais emocional. As entradas são tão poéticas quanto isto. O banco de jardim mais elegante para ler um livro. O beco mais romântico para roubar um beijo. O bar de jazz com os sofás mais confortáveis. A melhor fonte para chorar o fim de um amor. E indicações muito pragmáticas, a acompanhar a poesia. A melhor pizza. O restaurante mais antigo. A melhor carbonara. A melhor enoteca. Coisas assim. Há muitos livros sobre Roma. Muitos. Escolhi este. Assim pequenino. Assim breve. De trazer connosco. E seguirmos as coordenadas que entendermos seguir. 
Fica fechado (mais) este capítulo. Com música. Estas.




14 comentários:

  1. Deixou-nos um texto muito bonito. Daqueles que merecem várias leituras. As músicas também me tocaram ... principalmente a primeira.

    Foi um bom presente, neste final de tarde.

    Um beijo

    Fa

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  2. Querida Mar,

    Um texto para ler e voltar a ler, sentir e voltar a sentir. Fiquei ainda com mais vontade de visitar Roma.

    Um beijo e obrigada também pelas palavras que me dirige. Especial esta nossa relação que em nada sinto virtual! Boa semana!

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  3. Falámos neste tesouro que encontraste em Roma. O silêncio no meio da cidade grande ! Poder escolher o silêncio ali. Muito especial este passeio que nos dás, por Roma, pelas esculturas de pedra, pelos vossos momentos em viagem.
    Beijinhos !
    Vou à massa dos bolos com pedacitos de chocolate !
    Amanhã levo-tos !
    : )

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  4. Olá Fa:

    O essencial do que quero dizer é muito assim: essencial. Acho tão bonito que três músicas tenham sido um presente para si. Isso, por si, dá-lhes um sentido tão poético. Como se tivessem ido a voar até Lisboa:)

    Um beijo.

    Mar

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  5. Olá Isabel:

    Bom que sim. Vontade de Roma. As palavras são coisas. Pessoas. Especiais:)

    Uma boa semana para si também.

    Mar

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  6. Olá Pipinha:

    É que havia sempre muita gente. E eu gosto muito de pessoas, mas conheces-me. Gosto tanto de pessoas como de solidão. Estes bocadinhos de tempo são para (me) lembrar que sim. É possível o silêncio, ali.
    Cookies de chocolate amanhã:) A minha encomenda é entregue amanhã. O António já perguntou. As crianças e os pedidos amorosos que formulam.

    Beijos nossos para ti.

    Mar

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  7. Uma viagem inteira a Roma, por estas imagens. Gostei especialmente da última em que és tu e Roma ;) Qualquer cidade consegue ter silêncios. Eu também preciso deles. Em cada viagem há momentos assim. De reflexão, contemplação, recolhimento, cansaço até. Momentos em que, recordo mais tarde, o mais importante foi um silêncio. Uma pausa demorada a olhar uma estátua, um rio, o mar, as pessoas que passam por nós numa praça movimentada.
    Um beijo
    Babette

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  8. Depois de um dia difícil, daqueles cheios de ruído, soube-me especialmente bem ler o teu texto,sobre o silêncio que conseguiste em Roma, ver as tuas fotos e ouvir as músicas que te acompanharam. É sempre muito bom viajar contigo :)

    Um beijo,
    Ilídia

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  9. Belíssima viagem à "cidade eterna"! No meio daquele bulício há locais assim! E com que beleza, simplicidade e encanto a descreveu!... E que vontade de voltar, santo Deus!

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  10. Olá Babette:

    Também. Creio que consigo gostar muito dos dois registos. Da agitação. Do fervilhar. Da perda de noção da narrativa que se é. Que são os outros. E de estar quieta. E silenciosa. Quando ando em trânsito, sinto que é mais necessário o exercício de parar. De suspender o andamento. E estar atento ao respirar. Ao nosso. Ao dos outros. E das coisas. As coisas também respiram, à maneira delas.
    Bom que te tenha feito bem, o registo de Roma. Fico feliz por isso.

    Um beijo.

    Mar

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  11. Olá Ilídia:

    Hoje assim. Com muito ruído. E muitos papéis:) Já passou, o dia. É bonito, isso. De escreveres que é bom viajar aqui. Tem a ver com essa vontade, creio. Uma coisa de criança. Ou só vontade de ser fada:)

    Um beijo.

    Mar

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  12. Olá Maria:

    No primeiro dia, pareceu-me que seria difícil. Impossível. Gente o tempo todo e por todo o lado. Este último registo é mesmo para isso. Para deixar uma espécie de "lista de lugares onde se consegue ouvir o silêncio em Roma":)
    Que volte. Que volte à cidade persistente. E obrigada por ter gostado.

    Mar

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  13. Roma é uma das cidades que mais gostava de visitar. Espero que esse dia chegue e levo daqui boas referências. Também gosto da contemplação dos lugares e das coisas, como se quisesse que fiquem gravadas para sempre na minha memória. Várias memórias, músicas, livros que nos acrescentam e dão sentido à vida!
    Um beijo,
    Graça

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  14. Olá Graça:

    E eu espero que sim. Que seja feliz em Roma. E gosto dessa ideia. É à medida deste lugar. Ficam aqui coisas. Que façam bem. O sentido mais persistente é esse.

    Um beijo para si.

    Mar

    PS: E eu ainda não sei como é o céu nas vossas ilhas:)

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