"Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara."



Acabamos todos por fazer diferença nas vidas dos outros. Há graus para isso. Podemos ser uma diferença ínfima, quase imperceptível. Há aqueles que se assinalam muito. São aqueles que mudam trajectórias. Vidas inteiras. Essas são as grandes diferenças. As ostensivas, declarativas. Ou não. De tão significativas, também acontece terem de ser caladas. Queria falar das diferenças pequenas. A propósito de uma pessoa. O senhor Gil. Durante muito tempo, o senhor Gil não teve nome para mim. Era só uma figura que me acenava todos os dias, quando passava de carro. O “senhor do adeus” daqui. Como o “senhor do adeus” de Lisboa. Tinha o mesmo ofício, esse senhor. Todos os dias acenava aos carros, na zona do Saldanha. Julgo que o senhor Gil nunca terá ouvido falar do senhor João Serra. O que faz com que o gesto dele seja ainda mais dádiva, mais poesia. Só por um acenar. Trata-se disso. Levantar um dos braços e acompanhar esse movimento de um sorriso. Muito provavelmente, não se pensa muito nos reflexos destas coisas ínfimas. A pressa é tanta, todos os dias. Ainda por cima, é mesmo uma daquelas coisas quotidianas. Mesmo perto do nosso olhar. Como de costume, olhamos mais depressa para as coisas que nos parecem raras. Difíceis. Ou até mesmo inalcançáveis. Equações diárias, essas. Nem sempre conseguimos resolvê-las. Nem sempre queremos sequer tentar a resolução. E eu também não sei a fórmula. Mas sei isto: a minha vida quotidiana seria bem diferente se o senhor Gil não existisse aqui. Que sei que o dia começa a sério, quando o vejo a dizer bom dia com um gesto. E que terminou quando está à espera. Os carros vão passando. E ele diz adeus. Como se dissesse sem palavras que quer que voltemos no dia seguinte. Que estará à nossa espera. E que fará exactamente aquilo que esperamos dele: que diga adeus. Mesmo que chova muito. E que faça vento. Ou calor, quando é quase Verão e o sol é uma espécie de castigo. Ainda assim, está. E isso faz uma diferença enorme. Poesia muito limpa, a da vida do senhor Gil. Oferece-nos poesia todos os dias.
Quando é assim, é melhor nem querermos respostas para perguntas que nos parecem inevitáveis. Para quê? Ou porquê? Por que é que o senhor Gil nos acena todos os dias? Porque sim. Só por isso. É que o gesto do senhor Gil é bem capaz de ser como os poemas. E não servir para nada. Bom que assim seja, que o mundo é tão pragmático. Melhor que fosse mais poesia. As coisas haviam de ser um bocadinho melhores. Ou menos difíceis, no limite.
Só para dizer obrigada. Por todos os dias. Porque a diferença fundamental são as pessoas. Que fazem da nossa vida o melhor dos lugares. Mesmo nos dias que custam um bocadinho. Ou principalmente nesses. A diferença ínfima pode ser essa. E isso ser grande. Por isto: fazer de um lugar um sítio melhor é uma coisa muito grande. Só para dizer isso. E para deixar música que diz que é para abrirmos os olhos.

NB: O título pertence ao "Ensaio sobre a cegueira" de José Saramago. Uma daquelas formulações que é um livro inteiro.

17 comentários:

  1. Mar,

    São gestos que trazem silêncios bons, que nos protegem. Que fazem encontros por dentro para vermos para fora.
    A continuidade é vida, de facto.

    Belíssimo texto, como sempre. Obrigada.

    Um beijo

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  2. : )) esqueci-me de assinar... Jo.

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  3. É por pequenos gestos como estes que a nossa vida tem algum sentido, porque há alguém que faz com que os nossos dias sejam diferentes e melhores! É bom quando se tem o espírito aberto para perceber que pequenos gestos podem trazer algo de bom aos nossos dias, mesmo que seja por pessoas que não conhecemos.
    Um beijo de bom fim-de-semana

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  4. Olá!

    Também já me cruzei várias vezes com este homem do adeus. Acena a todos que passam com a mesma leveza. Fico contente por alguém se lembrar de fixar estes momentos singulares. É uma forma de salvar pequenos fragmentos do transitório.As palavras certas salvam pequenos fragmentos do mundo.
    Bom fim de semana!
    F. Pinheiro

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  5. Obrigada por dizer tao bem aquilo que eu tantas vezes senti com um adeus semelhante.

    M.

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  6. Que bem, o teu texto aqui posto para o mundo. O Sr. Gil merece esta referência. Pelos gestos altruístas que pratica rotineiramente. E gratuitos. Há cada vez menos gestos desinteressados...
    Um beijo. Hoje tarde porque estive atarefada na cozinha ;)
    Babette

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  7. Numa altura em que parece que se perdeu a esperança nas pessoas, este teu texto vem lembrar que ainda há quem dê só porque sim, sem esperar nada em troca.
    No sábado, fui trabalhar, como te tinha dito. Depois de uma noite de tempestade como não tenho memória. Derrocadas, inundações, vacas mortas, atingidas por raios. Um cenário quase apocalíptico. Pela viagem, encontrei muitos grupos, de mangas arregaçadas, a ajudar. A dar, sem esperar nada em troca. E pensei que ainda há esperança. As pessoas ainda estão presentes, quando é preciso. E vim para casa a sorrir, apesar do cenário de destruição.
    Um beijo
    Ilídia

    P.S.: Fiquei feliz por saber que a tua Milky está feliz, junto dos seus gatinhos :)

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  8. Ensaio sobre a cegueira foi um dos livros que mais me marcou e o que de Saramago mais gostei de ler. E agora este texto escrito por alguém que sabe reparar. Poesia nesse gesto. E não sei se o senhor Gil se aperceberá da intensidade e do valor do seu gesto e da diferença que um aceno pode fazer na vida das pessoas.
    Um abraço (de quem espera que o tempo melhore por estes lados)
    Um abraço

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  9. Olá minha Jo que se esquece de assinar:)

    Gestos com silêncio dentro, sim. Silêncios bons que nos acrescentam. Acho que o fundamental deste gesto é que me lembra repetidamente que há sempre possibilidade de beleza. De bondade. E pensar nisso faz-me bem sem mais.
    Obrigada, sim?

    E um beijo para si.

    Mar

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  10. Olá Graça:

    Curiosas as coisas que podem acontecer bem perto. Creio que procuramos coisas longe, a maior parte das vezes. Ou andamos à espera de viver não sei o quê. Um dia. Sempre um dia longínquo.
    O sr. Gil lembra-me das coisas que acontecem perto. Que estão ao alcance de um gesto. De um olhar. Devia agradecer-lhe muito. Um dia tenho mesmo de parar o carro e dizer isso:)

    Um beijo de boa semana. O meu fim-de-semana foi muito lindo. E de um lado para o outro:)

    Mar

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  11. Que bom que alguém mais conhece o sr. Gil! E que o escreveu mais um bocadinho. Sim. Com muita leveza. Como se fosse nada ou coisa pouca. Está aqui, agora. Guardado um pedacinho dessa beleza efémera. A ver se não desaparece. A ver se se conserva. "Pequenos fragmentos do transitório"... Gostei:)
    Obrigada, F. Pinheiro.

    Uma boa semana.

    Mar

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  12. Eu não disse? Acabou por ser entregue, o meu texto. Sabes a história que não é para dizer aqui. O que importa é que o sr. Gil faz parte das minhas coisas d' amar:) Isso é que importa. O mais é espuma. E coisas que não importam assim muito.

    Um beijo. Deliciosas, as tuas tarefas de sexta:) Obrigada outra vez.

    Mar

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  13. O melhor da esperança é que é de uma teimosia que não passa:) Sei do que falo. Passo a vida a persistir nisso. Uma das minhas características mais acentuadas, segundo os que me conhecem bem. De vez em quando até podemos ficar cansados. E pensar que não adianta nada. Que é melhor estarmos quietos à espera que tudo aconteça. Num momento qualquer, levantamo-nos e dizemos que afinal não. Afinal é para persistir:)
    Obrigada pelo que trouxeste de ti ao texto sobre o sr. Gil.

    Um beijo.

    Mar

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  14. Olá Patrícia:

    Creio que não. Que o sr. Gil não pensará nessas coisas. Muito provavelmente, estará concentrado nessa tarefa doce e desinteressada: dizer adeus porque sim. Por ser esse o seu ofício. Nós correspondemos todos. E dizemos adeus também. Poesia disseminada, então:)
    Espero que o tempo tenha melhorado, aí na vossa ilha. Que haja sol.

    Um beijo para si. E obrigada.

    Mar

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  15. Obrigada a si, anónima M.:) Que bom que na sua vida também há pessoas que dizem adeus desta maneira. Partilhar coisas dessas faz bem. Traz coisas boas ao mundo.

    Um beijo.

    Mar

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  16. Sinceramente, The XX - Intro, começa a deprimir-me. É claramente a banda sonora daqueles que foram os momentos mais felizes enquanto aluno da Escola Profissional de Carvalhais. Remete-me para aquelas aulas em que escrevíamos palavras, frases, textos nas aulas da Professora Marisa. Um muito obrigado pelo seu bom gosto musical. Vai ficar para sempre como a melhor professora daquele espaço a que chamámos de escola. Obrigado pelos ditos 810 dias !

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  17. Olá Luís:

    Nostalgia. Também eu. Muito. Com ou sem The XX. Nem me quis despedir de vocês nem nada. Este processo faz parte. Ainda assim, nunca nos habituamos o suficiente. Bom assim, que não somos autómatos. Foi um privilégio ter sido tua/vossa professora. Estou a desejar que tudo vos corra bem. E a lembrar a vossa alegria irrepetível. Saudades vossas. Muitas. E acho que vou ter de me manter afastada das vossas salas de aula ou assim:)

    Vai dizendo coisas. E boa sorte para o que vier por aí.

    Professora Mar(isa):)

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