Pouco que dá muito.





Há uma humildade intrínseca a determinadas coisas com que se faz comida. Sabemos que se se disser "lagosta", há uma série de referências inevitáveis. Se pronunciarmos "trufas", mais referências. Os referentes, as referências. O que se entender. Mas e quando se diz "batatas"? Quais são as coisas que vêm com isso? Que imaginários ou cenários? Muito longe dos outros. Muito provavelmente. Batatas. Ingredientes prévios. Disseminados. Para acompanhar qualquer coisa. Raramente valem por si. Ou não. Até pode acontecer que aconteça. Como com esta entrada muito frugal. Por se sentir que as batatas reinam, ali. Que nem o sabor de um queijo é capaz de perturbar. De desviar os sentidos do que ali é soberano. E então, mesmo que viva num país com pouca (ou mesmo nenhuma) soberania, sei que temos coisas assim como estas. Que uma das lições maiores da nossa comida é a da frugalidade. Que os peixes que vêm das nossas águas frias são como não há em nenhum outro lugar. Que as couves que por esta altura do ano são cobertas de geada durante a noite, são folhas tenras no dia seguinte. E que o nosso sol, a nossa luz é mesmo muito nossa. Não se consegue em parte nenhuma. Em nenhum dos outros lugares onde parece residir a nossa soberania. Uma consequência dos (des)governos sucessivos.
Sem saber muito bem o que está para vir. Sem conseguir antecipar o que for, podemos a nossa soberania maior. Que é assim. Do pouco, fazer muito. Batatas, umas rodelas de queijo, um fio de azeite e flor de sal.

Batatas doces e chèvre

4 batatas doces + 8 rodelas de chèvre + azeite, flor de sal e pimenta preta q.b.

Descasca-se as batatas doces, corta-se ao meio e um pouco na base, para não ficarem irregulares. Coloca-se num tabuleiro, salpicadas com flor de sal e regadas com um fio de azeite. Leva-se ao forno. Decorridos 20 minutos, hidrata-se um pouco, com água. Mais dez minutos no forno quente e, logo a seguir, as rodelas de chèvre em cada metade, com um pouco de pimenta preta moída. Quando o queijo estiver no ponto, retira-se. À espera, pão. Uma salada bem verde. E um copo de vinho. Branco. Rosé. Ou o que quisermos.

E está. Pouco que dá muito.

12 comentários:

  1. A maior parte das vezes são as coisas mais simples e comuns que dão a sensação de satisfação plena, como estas batatas com chèvre. Para mim as batatas são exatamente com a Mar disse, "pouco que dá muito", não é necessário mais nada!
    Um excelente fim-de-semana!

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  2. Conseguiste transformar um alimento (aparentemente) humilde numa entrada muito nobre. Nesta altura de "pouca soberania", temos, mais do que nunca, puxar pela nossa criatividade. A começar na cozinha. E aproveitar o que é nosso, como tão bem o fizeste. Tenho pensado muito nisto, ultimamente. Principalmente enquanto cozinho. E sobre a nossa capacidade (ou não) de subsistência. Tenho um post escrito sobre isto (ainda por publicar), a propósito de uns canelones de couve, com muitos ingredientes da minha horta.
    Adoraria sentar-me contigo a comer essa entrada. Com um copo de tinto a acompanhar :) E até poderíamos falar do estado do país. E de livros e de vernizes;)

    Beijos

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  3. Querida Mar,

    Gostei desta relação entre a batata e o queijo. É uma relação de complementaridade interessante e com potencial.

    Um beijo

    Fa

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  4. Olá Mar,

    Do pouco fazer muito. Sou assim. A minha mãe diz que consigo do nada fazer alguma coisa. O meu marido diz que sou imaginativa! Muito! E partilho da sua opinião de que o que temos é do melhor. O peixe, o azeite, o pão, as batatas, a nossa luz. E então só temos que fazer aquilo que tão bem sabemos, transformar. Dar asas à imaginação e do pouco fazer muito. Certos que isto também nos ajuda na nossa soberania. O saber fazer e fazer bem.

    Um beijo para si.

    Íris

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  5. Cozinhar é ser-se criativo. É arriscar conjugações. Há tempos cometi a veleidade de combinar alheiras com batata doce. E por que não batata doce com queijo de cabra? Achei delicioso o contraste do doce com o salgado e o milagre da multiplicação subjacente.
    Beijos
    Uma boa semana para si!
    Patrícia
    Obs. Não estou a conseguir comentar com o foodwithameaning. Não sei porquê.

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  6. Vim ver e reler este post tantas vezes (como sempre...) e só agora dei conta que não comentei!... Ia jurar que tinha escrito um comentário... Que enaltecia essa virtude tão importante de transformar o pouco em muito. As batatas por si. Podem brilhar num cenário como o teu. E são uma lição de humildade e de realismo. Pouco que dá muito é uma boa máxima para estes dias. Com respeito por quem tem de aplicar isso todos os dias.
    Um beijo grande
    Da tua, Babette

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  7. Olá Graça:

    Nem imagina o alcance deste "pouco que dá muito". Para mim, digo. Quando estive grávida, o único desejo persistente que tinha, era de batatas. Fritas. Assadas. Em puré. Gratinadas. De todas as maneiras. O meu médico dizia que era demais. Mas eu não lhe ligava assim muito:)

    Obrigada por ter pedido um fim-de-semana excelente. Acho que sim. Que foi.

    Uma boa semana para si.

    Mar

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  8. Olá minha Ilídia:

    A frugalidade ensina muito. Principalmente aplicada à cozinha. À maneira como transformamos uma matéria numa outra.
    Julgo que quem gosta de comida e de cozinhar tem há muito interiorizados determinados preceitos, que agora parecem estar a vir ao de cima. E sim, sou mesmo de fazer coisas com coisas muito simples. Uma vez, uma senhora muito especial disse-me isso. Quando lhe preparei um almoço com duas postas de pescada, algumas batatas e uns quantos vegetais. Tudo a gratinar com um pouco de maionese aromatizada. Disse que era um talento. E eu acho que sim. Que temos todas esse talento muito humilde. E então, as circunstâncias podem ser mais ou menos transitórias, que nós sabemos que há-de haver coisas que permanecem. Com ou sem soberania colectiva.
    Havemos de marcar isso do vinho. Com livros, país e vernizes. Tudo misturado. Como têm sido as nossas conversas ao telefone:)

    Um beijo de boa semana.

    Mar

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  9. Olá minha Fa:

    Resulta bem, sim. Ocorreu-me que deve ficar bem melhor com queijo da serra. Uma variante que tenciono experimentar em breve.

    Uma boa semana para si. Que esteja bem.

    Mar

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  10. Olá Íris:

    Imaginação. Criatividade. Vontade. E todos os ingredientes que não consigo dizer agora. Isso e as coisas que vêm da terra e do mar do nosso país meio enfraquecido. Julgo que a redenção mais efectiva passará muito pelo que fazemos individualmente. Em cada um dos dias da nossa vida. Nos nossos trabalhos. Nos nossos afectos. Nas nossas casas. Julgo que será mais por aí. As outras soluções que nos apontam parecem não resultar. Também não percebo a persistência. Já vimos que as outras soluções reactivas não levam a nada. Talvez fosse melhor agir. Cansada de assistir a reacções sempre tardias.
    Feliz do seu marido. E feliz a Íris. Bom assim, que o quotidiano fica um bocadinho melhor. Quando se consegue muito a partir de pouco.

    Um beijo.

    Mar

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  11. Olá Patrícia:

    Lembro-me bem desse seu post. E de ter pensado que essa conjugação fazia muito sentido. Que resultaria bem. Gosto sempre desta componente de "risco", associada à comida. A possibilidade do erro também é libertadora. Nem que não seja por sabermos que não devemos voltar a arriscar determinadas conjugações. A vida bem que podia ser assim tão simples. Assim, não caíamos nos mesmos erros, creio.
    E não percebo o que se passa com o blogger, de vez em quando. Tenho recebido emails de pessoas que não conseguem comentar. Um caprichoso, é o que é:)

    Uma boa semana para si.

    Mar

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  12. Olá minha Babette:

    Já falámos várias vezes sobre o subjacente ao texto. De o exercício da frugalidade, da simplicidade não ser conceptual. Antes concretizado. Aplicado. Em todas as circunstâncias. Por mais que variem. Por mais revoltas que sejam as águas. Uma constância possível, esta. E sim. Um respeito profundo por quem não pode escolher.

    Um beijo de boa semana para ti.

    Mar

    PS: Só consegui escrever-te um email muito breve.

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