De olhos fechados.



























Se fechar os olhos, tenho dez anos outra vez. E estou a fazê-lo pela primeira vez. É Primavera ou assim. E estou a fazer bolo de iogurte. Se fechar os olhos, estou com a minha irmã mais nova. A comer fatias de bolo de iogurte e a beber copos de leite com chocolate. Bem frios, os meus copos de leite. Quentes, os dela. Sempre fomos muito diferentes, nós. Por mais que a minha mãe teimasse em vestir-nos de igual. Horas na Dª Irene, em provas longas. Eu tinha sempre vestidos ou saias. Para ela, eram calções. Por ser maria-rapaz. Por subir às árvores, quando fazia asneiras. Para fugir das consequências irritadas das travessuras dela. Se fechar os olhos, é Verão num lugar onde não entro há muito. É Verão outra vez. E há bolo de iogurte para o lanche. Ou à noite. Só que sem copos de leite com chocolate. No lugar onde não vou há muito, tinha de ser leite quente com mel e canela. Antes de dormir. A minha irmã mais nova gostava. Eu odiava. E dizia muitas vezes que não queria. De todas as vezes, não adiantava nada. Tinha de ser.
Eu sei que é um daqueles bolos que toda a gente sabe fazer de olhos fechados. Dificilmente justificaria um post, de tão simples. Em todo o caso, tenho aprendido algumas coisas acerca da dificuldade das coisas simples. Mas a minha irmã ofereceu-me um bolo de iogurte de presente. Veio trazê-lo aqui. Ainda quente. E fez-me feliz assim. Pela possibilidade de regressar de olhos fechados a lugares das nossas memórias juntas.

Mesmo sendo de fazer de olhos fechados, a receita:

1 iogurte natural + 4 vezes a medida do copo de iogurte de açúcar + 4 vezes a medida do copo de iogurte de farinha + 1 vez a medida do copo de iogurte de óleo + 5 ovos inteiros + manteiga e farinha para a forma.

É tão de olhos fechados, a receita. Junta-se tudo numa taça. Bate-se muito bem até haver bolhinhas. Leva-se ao forno durante uns 40 minutos. E desenforma-se ainda quente.

E está. Para o que quisermos. Agora que já sou "grande":), é o meu bolo preferido para o pequeno-almoço. Quase no final, com o café. Uma fatia de bolo de iogurte salpicada com a acidez doce de frutos vermelhos. E tudo fica um bocadinho melhor. Bem cedo pela manhã.

Para a Ina. A minha irmã que subia às árvores quando era pequena.

18 comentários:

  1. Assim, por momentos, pensei que o teu forno caprichoso tivesse dado umas treguas... Mas foi mais lindio que isso. Foi um bolo que te fez voltar a menina, oferecido pela irma mais nova que para nos sera sempre menina, tambem. Tao bom, quando um pedaco de qualquer coisa nos leva inteiros ate memorias felizes...
    Um beijo para a minha Mar.
    De mais um teclado furioso e sem acentos ;)
    Da tua cidade com luz, pronta para um dia longo...
    Babette

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  2. Ah! A receita de bolo de iogurte (igual à da minha mãe). Para mim e para o meu irmão também é voltar a outros tempos...
    Este (juntamente com o bolo mármore e bolo mulato)é um bolo que não me canso de fazer e de que tantas vezes tenho saudades.
    É verdade que é um daqueles bolos que (quase) toda a gente sabe fazer de olhos fechados. Mas...justifica plenamente um post, de tão simples e ao mesmo tempo tão "transportador" e "avassalador".
    Está decidido! Este fim de semana vou fazer bolo de iogurte para a Maria Francisca!!!
    Bom fim de semana Mar

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  3. Por incrível que pareça eu nunca fiz bolo de iogurte, apesar de ser fácil de confecionar. A minha infância é marcada por outros bolos mas também acompanhados com leite frio, gelado. É tão bom quando se é mimado pelos irmãos e quando as memórias de infância marcam a idade adulta pela positiva. Pequenos momentos que se transformam em grandes, símbolos do amor que nutrem uma pela outra.
    Bonito texto o seu!

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  4. Que bom quando um bolo evoca memórias tão doces como as tuas :) Também bebia o meu leite frio, tal como tu. A minha D. Irene chama-se D. Teresa e tem, como dizemos por cá, umas "mãos de prata". Ainda recorro a ela de vez em quando, sabes? E nunca me desiludo.
    O primeiro bolo que me lembro de ter feito era uma espécie de pão de ló, com uma cobertura de ovos, para um aniversário do meu pai. Quis fazer-lhe um bolo. Ficou muito mau, muito feio, mas foi muito elogiado :) Acho que ainda há fotos :) De iogurte, nunca fiz. Acreditas?
    Um beijo

    P.S.: Sim, estou bem. Mas esta semana andei muito atarefada, a tentar pôr o trabalho em ordem, depois da doença do Manel. Fica atenta ao correio ;)

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  5. Querida Mar:
    Soube-me bem ler as suas palavras. Descreve muito bem a sorte que se tem quando se tem uma irmã e todo esse universo de ternura e recordações.
    Uma pergunta super simples: será que o iogurte pode ser grego não açucarado? Se assim for, aho que vou fazer este bolo! Para a minha família de momento bem numerosa...
    Beijinho.

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  6. Que bom estes sabores tão antigos. Daqueles que fazem parte dos primeiros. Muito bonito o presente da Ina para ti (falávamos ao telefone, eu e ela, enquanto o bolo nascia;)) e que bonito o teu texto a lembrar-vos pequenitas, nos sítios e nas casas. Uma tão diferente da outra. As duas com a mesma franqueza, o mesmo sorriso.

    Um beijinho para as minhas amigas irmãs,
    da Pipinha

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  7. Nada disso, o meu forno temperamental continua com os seus humores:)Só gosta de fazer brownies e bolos salgados de legumes:)
    E sim. Há sabores que são imediatos. Por nos levarem de viagem ou assim. Este bolo é sempre eu e a minha irmã quando éramos pequenas.
    Já estás de volta da cidade com muita luz. Depois de um dia longo. O meu foi um daqueles que coloca as coisas nos seus lugares. Arrumadas.

    Um beijo.

    Mar

    PS: Vou enviar-te um fragmento do dia que arrumou coisas. Tirei fotografias poéticas a um bocadinho de decadência.

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  8. Olá Maria Jorge:

    Só por essa decisão, o meu post de olhos fechados já está justificado:)
    Estes bolos de quando se é pequeno têm esses efeitos "transportadores" de que falou. Verdadeiras viagens no tempo. Sem ser preciso saber nada sobre a velocidade da luz.
    Fico tão feliz por ter dito que a receita era igual à da sua mãe. Nem sei se haverá outras maneiras de fazer este bolo tão de infância. Mas deve haver.
    Esses outros bolos de infância também são assim como o de iogurte. Avassaladores. E tão simples. Curioso, serem simples e simultaneamente avassaladores.

    Um bom fim-de-semana para si. E para a menina que vai ter um bolo de iogurte só para ela:)

    Mar

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  9. Olá Graça:

    É bom haver coisas que nunca fizemos, também. Tem outros bolos ligados à sua infância. Será por isso que nunca terá feito bolo de iogurte.
    Leite frio com fatias de bolo. Podia ser simples ou com chocolate. Mas tinha de ser frio. A minha irmã era ao contrário. E comia aquela película de natas que se forma, quando o leite está quente. Fazia isso para me provocar, por saber que me causava náuseas:) Mas gostamos uma da outra, ainda assim. Com todas as coisas em que divergimos. Como estas pequeninas. E outras nem tanto.

    Obrigada a si. Por ter gostado de ler.

    Mar

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  10. Olá minha Ilídia:

    A comida e as suas consequências. Ou efeitos. Muito "Em busca do tempo perdido". Embora eu esteja parada no segundo volume. Há demasiado tempo.
    Acho que muitas de nós terão tido uma Dª Irene. Ou uma Dª Teresa. Num Natal qualquer, estive a ver fotografias dessa altura. Eu e os meus vestidos. O Vasco ficou comovido e tudo, que nunca me tinha visto assim pequenina:)
    Lindo, esse episódio do bolo de aniversário do teu pai. O meu também foi uma das "vítimas" preferenciais das minhas aventuras culinárias:) Guardo isso com carinho.
    Imagino-te a fazer um belo bolo de iogurte para o teu menino. E sabes, acho que se presta a um daqueles teus rituais de fim-de-semana.

    Um beijo para a minha Ilídia atarefada.

    Mar

    PS: Estarei curiosa, atenta ao correio:)

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  11. Olá minha Lusitana:

    Coisas de irmãs com idades próximas. Partilhávamos tudo. De vez em quando, as nossas zangas eram uma tempestade só. A parte boa é que umas horas depois, já estávamos nos nossos lanches. Ou nos nossos "piqueniques" improvisados. A ver filmes pela noite dentro, nas férias.
    Sabe que me ocorreu isso do iogurte grego? Acho que deve ficar maravilhoso. Adequado a uma família bem numerosa:)

    Um beijo para si. Com aquele carinho.

    Mar

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  12. Tu andavas por lá, também. Só que bebias copos de água muito devagar. Em vez de copos de leite com chocolate. Gostávamos de ti nas mesma:)
    Lembras-te da Ina na escola primária? Um terramoto:) Soube bem voltar a lembrar essas coisas. Tanto, como o bolo de iogurte que nasceu enquanto falavam as duas.

    Um beijo para ti, minha amiga irmã:)

    Mar

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  13. Se eu fechar os olhos tenho cinco anos. É Agosto e está um calor infernal.Estamos de mãos dadas a descer as escadas da missa. Ela direitinha nos ganchos e nos vestidos e eu a coçar-me toda porque o tecido "pica" e já não aguento mais o cabelo preso :)
    Se eu fechar os olhos estou a andar de triciclo em casa, ou a comer com as mãos. A minha mana a beliscar-me para eu pegar nos talheres e a ouvir mais um sermão por minha causa :)
    Se eu fechar os olhos tenho 16 anos. Estamos na quinta de uma amiga nossa a preparar a festa dos 18 da Isa (ou Mar). A música que toca (e que ela escolheu)é a banda sonora do Great Expectations e mergulhamos divertidas na piscina exposta ao sol de Julho.
    Se eu fechar os olhos estou na faculdade a correr para apanhar o comboio rumo a Aveiro e ao nosso sumo de laranja na Past. Av.
    E se eu fechar os olhos tenho 29...Estou sentada ao sol deste Inverno numa hora de almoço da semana passada ao lado dela que vai falando energética do que vai fazer nessa tarde.
    Ela muito compenetrada e segura de si e eu a perguntar se podemos um dia fazer um bolo só para comer a massa :)
    É que eu sempre adorei subir às árvores só para ver o ar de aflição dela a seguir ;)
    Ina

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  14. O meu preferido também. Por me levar a uma altura em que nada parecia meter medo, em que tudo parecia fácil e possível. E o ritual de roubar dedadas de massa com uma mãe sorridente, que fingia não reparar...
    Tentei passar este doce momento à Leonor e penso ter conseguido. É o "nosso" bolo, feito a 4 mãos. Pelas lembranças, pela simplicidade. E sim, também dou conta que ela me rouba a massa, mas olho para o lado, sorrio e finjo não ver! :)

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  15. Querida Mar,

    Pelos vistos as irmãs mais novas devem ser todas formatadas para serem as traquinas e as marias-rapaz. A minha irmã podia ser a sua Ina. Só convivia com rapazes e lembro-me, como se fosse hoje, de vê-la a trepar às figueiras gigantescas que tínhamos (agora só lá está uma) por detrás da casa dos meus pais e a alinhar em todas as brincadeiras de rua ou de quintal. Eu sempre fui a menina dos vestidos, a bem comportada, a estudiosa, a que preferia ficar a ler enquanto ouvia o som das marotices dela na rua. Mas acho que foi com ela que aprendi a não ter medo de lagartixas, a apanhar abelhões com frascos e acima de tudo a ser mais descontraída.Foi ela quem me ensinou a dar cambalhotas (que medo tinha eu de partir o pescoço, e para ela o processo parecia ser tão fácil).É certo que a nossa cumplicidade obrigou-me muita vez a esconder as travessuras onde ela se metia já na adolescência ( mas isso dava um filme). Com dezoito anos ela também já fazia qualquer receita de forma exemplar. Os bolos dela eram sempre fofos e os meus, ao contrário, pareciam queijo autêntico, de tão amassados que ficavam. E nada tinha a ver com o forno, pois era o mesmo. Hoje adoro cozinhar e ela não. Nem quando cá vem a casa e ao folhear os meus livros de culinária sente o meu entusiasmo. Hoje sou eu que lhe apareço em casa e levo um bolo, como fez a sua Ina.
    Obrigada por me ter "obrigado" a fechar os olhos por momentos.

    Patrícia

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  16. Nunca suportaste nada daquelas coisas. Nada de ganchos. Nada de fitas no cabelo. Os vestidos que me encantavam eram-te insuportáveis. Bem que a mãe tentava:) Mas acontecia sempre o mesmo: chegavas a casa com os joelhos esfolados. Os vestidos sujos ou rasgados. Ou as duas coisas. Porque tinhas caído a andar de bicicleta. Porque tinhas andado a construir uma casa numa árvore. Porque tinhas andado ocupada a fazer uma série de coisas "muito importantes".
    Gostávamos de coisas diferentes, às vezes. Mas coincidimos em muitas.
    Foi lindo crescer contigo. Eu seria diferente. Tu serias diferente. Nada teria sido como foi. Nenhuma das nossas ocasiões. Nenhuma das nossas festas preguiçosas de Verão. Junto à água. Nós achávamos que quando fôssemos "grandes" é que ia ser. Fazíamos uma série de projecções. E não. Em muitas coisas, estamos completamente ao lado. Mas em muitas outras, o futuro acabou por ser melhor do que alguma vez o imaginámos. Creio que será assim com todas as histórias que não se repetem. Não inventámos nada, nós.
    Obrigada pelo bolo de iogurte. Obrigada por aquilo de precioso que veio com o bolo de iogurte. Obrigada por ti. E a ti, Ina.

    Da Isa. Sou Isa para ti desde pequena. O Vasco é que fez com que eu fosse Mar. Posso ser sempre as duas coisas. Isa e Mar.

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  17. Foi assim que pensei, também. Que este bolo significa esse tempo que não conseguimos recuperar inteiramente. O tempo em que nada assusta. Nada perturba. Porque nada é mais importante do que o ritual de estar a fazer um bolo muito simples. Daqueles que não dão nas vistas, numa mesa onde haja outros. E sim, havia sempre esse detalhe da massa. Para a minha irmã, quando fôssemos "grandes" e pudéssemos fazer tudo o que quiséssemos, a suprema liberdade seria a de comer a massa toda antes de chegar ao forno:)
    Gosto muito de te imaginar com a tua filha. A cumprirem juntas um ritual que há-de sempre ser só vosso. Obrigada por partilhares um bocadinho de carinho irrepetível. Por ser só teu e dela.
    E um beijo para as duas.

    Mar

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  18. Olá Patrícia:

    Uma espécie de clássico, este. Com alguns detalhes. Eu gostava dos vestidos. Conseguia usar as fitas no cabelo. Direitinhas até ao final do dia. E portava-me melhor. Mas havia os detalhes, também. Eu era a cúmplice dela. Só que sem estragar vestidos:) E mais tarde, protegíamos os segredos uma da outra. Inseparáveis, que éramos. As irmãs. Onde estava uma, estaria a outra logo a seguir. Acontecíamos juntas, nós. Como parece ter sido com a sua irmã. Que fazia bolos e era maria-rapaz. Como a minha irmã Ina. Tirando essa parte dos bolos, por sempre ter sido eu a fazê-los.
    É bom saber que há coisas que são para sempre. Como o sabor de um bolo de iogurte. Pelo menos enquanto eu existir, hei-de saber sempre a que sabe um bolo de iogurte. De olhos fechados.
    E obrigada, Patrícia. Tão lindo, o seu texto. Tão lindas, as suas memórias. Obrigada por ter partilhado um bocadinho da sua narrativa.

    Um beijo.

    Mar

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