David Vann. A ilha de Sukkwan.


























Cortante. Avassalador. Tenso. Difícil. Do género de ter de parar para respirar. Mas depois ter mesmo de se ler rápido. Li-o em menos de vinte e quatro horas. A abdicar das primeiras horas de sono de Setembro para poder ler mais. Já tinha acontecido com outros livros. Só os livros verdadeiramente bons têm este efeito. Aqueles que não conseguimos adiar. Que não são mornos. De deixar para depois. Fica-se imerso. Uma narrativa em carne viva. Em que se adivinha uma realidade crua. Porque as boas narrativas devem ser assim. Devem aproximar-nos da realidade. Mesmo que nos sejam distantes. Mesmo que dificilmente nos imaginássemos na pele das personagens. Com a distância que nos permite a nossa narrativa irrepetível. Mas as personagens são feitas de pedaços vivos que vivem em cada um de nós. Adormecidos, muitas vezes. Mas os bons escritores são assim. Capazes de invocar os espíritos mais despidos das pessoas reais. E então, sim. Estamos mesmo no mais inconfessável traço. Naquilo que há de mais recôndito e impartilhável. Os bons escritores fazem isso. Não são de efabulações. Não nos servem os lugares-comuns das pessoas que são lugares-comuns. Olham-nas para além disso tudo. E depois dizem-nos assim: era possível isto. Por mais monstruoso ou distante que seja. Era possível isto. Era possível a desorientação. Era possível não saber o que fazer. Era possível fazer tudo errado. E dar cabo de tudo. No limite. Uma história que é nos limites. Contada por um escritor que carregou durante anos a culpa do suicídio do pai. Por lhe ter dito que não. Que não iria passar uns dias a uma ilha com ele. Durante anos, a culpa. Durante anos dizer que o pai tinha morrido com um cancro. E a tragédia de achar que todo o amor que sentia pelo pai não tinha sido suficiente para que ele não fosse ao extremo. Que havia só aquele não irreversível. E então, escreveu um livro. E tentou publicá-lo. Dez anos longos até que sim. Dez anos de recusas. De cartas formatadas a dizer que não. Que era mais urgente (e rentável) pedir a uma figura qualquer para escrever um livro sobre dietas ou sobre histórias de amor que são aquilo dos lugares-comuns. Tantos livros. Há tantas páginas por aí. Que não fazem diferença nenhuma. Que existirem ou não não muda nada. Mas não estas. Não as páginas em sangue de um escritor assim. David Vann. A Ilha de Sukkwan.
Setembro começou assim. A ler como se isso fosse a coisa mais importante de todas. Como se nada fosse mais determinante que não chegar ao fim de um livro.

6 comentários:

  1. Querida Mar,

    Ampliou-me a vontade, já existente, de abdicar de horas de sono em prol da leitura.É quando a casa pára e nela começam a viver as personagens desfolhadas paulatinamente a cada virar de página.Outra dimensão.

    Obrigada por partilhar tanto entusiasmo.

    Ficam as referências do autor e da Ilha,Sukkwan.

    Um abraço
    Patrícia

    ResponderEliminar
  2. Olá, Mar. Estive com este livro na mão. Quase o comprei, mas lembrei-me das pilhas de livros que tenho à espera de serem lidos e pousei-o. Ao ler o seu texto, arrependo-me. Temos mais isso em comum. O gosto pelas "narrativas em carne viva". Livros que nos fazem sofrer. Também gosto disso nos filmes. As horas, A Pianista, mais recentemente O Cisne Negro... Filmes que são uma agonia do princípio ao fim.
    Já há muito tempo que não leio assim, pela noite dentro. Com um filho de 3anos, com uma energia inesgotável, confesso que à noite o sono ganha. Mas, ao ler o seu texto, recordei alguns episódios engraçados da adolescência: a minha mãe a entrar no meu quarto, a mandar-me apagar a luz, e eu apanhar um valente susto, pois estava a ler Drácula; outra vez, encontrar-me lavada em lágrimas a ler A dama das camélias :) obrigada por me ter permitido recordar estes espisódios, dos quais já não me lembrava ha muito tempo.
    E desculpe, mais uma vez o longo comentário. Mas a tagarelice é daquelas coisas que já desisti de combater.
    Beijos
    P.S. Acho que vou mesmo comprar o livro :)

    ResponderEliminar
  3. Vir aos sítios de todos os dias. E terminar um dia que sabes que foi longo. Mas depois o bom de saber que há este sítio com coisas que acolhem. Mesmo que hoje seja a história de uma história triste. Mas que te prendeu de tão bem escrita. Anotada. Para ler em dias mais desanuviados.
    Obrigada por hoje ao telefone ;)
    E bom fim-de-semana. Um bocadinho a pensar no próximo ;)
    Babette

    ResponderEliminar
  4. Olá Patrícia:

    Fico feliz, sabia? Por ter ampliado qualquer coisa. Neste caso, a vontade de abdicar de horas de sono. E sim. Muito porque é quando a casa pára. E fica quieta. Não há solicitações exteriores. E fica-se a sós com o que há de interior. O modo como as personagens de um livro vivem em nós, por exemplo. E mais coisas. E se puder, leia o livro do escritor que fez com que eu fosse dormir de madrugada:)

    Um beijo.

    Mar

    ResponderEliminar
  5. Olá Ilídia:

    Sei bem o que é não conseguir energia ao fim do dia para ler. O meu filho não dormia. E eu passava as noites em claro. A repetir muitas vezes que amava muito o meu pequenino. Que ele não tinha culpa de não dormir. E que se calhar, era eu que estava a falhar algures. E contava os minutos para que amanhecesse rápido. Tempos difíceis em que não lia à noite.
    Mas depois tudo foi acalmando. E devagar, uma mãe vai recuperando coisas que achava eram lá de trás. Como ler à noite numa casa silenciosa.
    Este livro é como tentei descrever. E o que lhe acrescentar, depois de o ler. Em sofrimento, como os filmes que referiu. Especialmente o Cisne Negro. Que ainda não consegui ver até ao fim. Porque aquelas dores me são demasiado familiares. Não as sinto à distância de uma narrativa. A dança pode ser um exercício extremo de violência. E pressupor subordinação à ideia de beleza. Perigoso, qualquer tipo de subordinação. Muito particularmente o que faz com que tanto o corpo como a alma sejam sacrificados.
    E gostei muito do seu longo comentário:) Espero ter correspondido.

    Um beijo. E boas leituras. De dia. Ou à noite. Quando for.

    Mar

    ResponderEliminar
  6. Olá minha linda:

    Estou contigo nos dias longos que tens tido. Aqui. E ao telefone. E aí, assim que disseres. Gosto que te tenhas sentido acolhida aqui. E que queiras ler um livro a que não se fica indiferente.
    O fim-de-semana está a ser lindo. E sabes, ontem encontrei coisas muito AD (e muito Babette:). A pensar no almoço da semana que vem. A ver se gostas do imaginário que vou colocar à mesa.

    Um beijo.

    Mar

    ResponderEliminar

AddThis