Antes de Lagos.



































No domingo voltou a vontade. De registar mesas. E comida. E as coisas que foram a espuma de um dia quente. Uma espécie de auge dos dias quentes. Acaba por ser uma coisa óbvia. E nós tendemos demasiado a não pensar muito as coisas óbvias. Talvez por acharmos que estão adquiridas. Que não precisam de ser pensadas. Acontece que as coisas óbvias são as coisas mais simples de todas. As que nos passam despercebidas. Acontece que as coisas óbvias e simples e pequeninas são a fonte maior de felicidade. Não são os extremos. Não são os picos. São estas. Como sentir falta. Como sentir saudades. Eu sentia falta deste ritual dominical. É a minha oração. Pôr uma mesa bonita. Fazer comida que faça alguém feliz. Por estes dias, sem registo. Sem fotografias. Sem textos a acompanhar. Mas houve sempre. Comida. Mesas com flores e velas. Copos velhos de cristal misturados com outros depurados. Coisas assim. Sem registo. Sentir falta. Sentir saudades. Gostar muito de uma coisa que nos falta. Como este registo. A mesa de domingo. Com um bocadinho da ilha de Murano. Um bocadinho azul vindo de Veneza. Um presente que é amor azul-turquesa. Porque em Veneza se imaginou um bocadinho de azul aqui. E comida. A maneira como se deu início a uma refeição de auge de Verão. Daí ser muito leve. Daí ser muito verde. Daí ser muito delicada. Corações de alface e nozes. E risotto de radicchio. Uma daquelas coisas que ficou da cidade da água. As folhas de radicchio. E as flores de courgette. Quis recuperá-las desta maneira fragmentária. Às vezes é assim. As coisas que nos ficam na memória recuperam-se em fragmentos. Quase nunca por inteiro. Mas o que fica são mesmo as saudades. O que me fica mais são as saudades das pessoas. E por isso, a assinalar mais uma despedida, uma carta breve. Em papel feito em Florença. Pintado à mão. Papel para a Leninha levar para a Índia. Foi o que me trouxe de lá. Papel. Depois de uma outra despedida. Antes de mais um regresso. Até mais um regresso. Um desenho vindo do imaginário do António. Que vê sempre os pais à mesa. Com a subtileza quase imperceptível de ter distinguido os copos de vinho branco e de vinho tinto. E a lista. A lista de todos os anos. Que eu achei que este ano ia ser só "Lista de coisas para levar". E não. Foi outra vez como todos os anos. "Lista de coisas para levar para Lagos". Às vezes é tão bom estarmos errados. E regressar a lugares que achávamos que iriam ficar só em suspenso. A casa não vai ser a de sempre. Não vai ser em tons ocre. É branca. Muito branca, a deste ano. A minha casa transitória de Lagos. Ser sempre a menina Mar, no Mercado de Lagos. E a narrativa aqui. Desde que existe este aqui. Desta vez, vinda de um lugar muito branco. Mas a olhar o mesmo mar. O mar não mudou. É o mesmo de sempre. E está lá à espera que eu o olhe quando a areia não tem ninguém. Pouco antes de ir ao mercado. A melhor das minhas memórias dos dias de praia. A que vou voltar. Voltar é bom. Sentir saudades também. E lá, vou sentir saudades das flores das árvores que ficam aqui. Mas depois, volta-se. Volta-se sempre aos lugares onde somos felizes. Afinal podemos isso. Voltar aos lugares. Uma e outra vez. Não faz mal.

10 comentários:

  1. Querida Mar,

    Gostei muito dos azuis. Em particular de um pedaço do céu/terra de Veneza sobre uma mesa branca e transparente, com uns leves toques de cor. Muito à Mar.

    Desejo-lhe umas boas férias: descanso e inspiração.

    Um beijo

    Fa

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  2. Este blogue é maravilhoso. Há muito tempo que acompanho, e hoje, não resisto à pergunta:

    Lagos é este Lagos?

    https://www.facebook.com/notes/josélia-antunes/a-praia-da-minha-vida/10150254671319826

    Jo

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  3. Olá minha querida Fa:

    Uma mesa muito à Mar:) Com um fragmento de Veneza. Estão a ser de descanso, os dias. E de inspiração, também. Se visse o mercado hoje de manhã, iria entender-me com intuição. Sinto sempre uma alegria renovada. Como se fosse pequena outra vez ou algo do género:)

    Um beijo com carinho. Que os seus dias estejam a ser doces e tranquilos. É o que peço para si aos meus deuses das coisas visíveis.

    Mar

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  4. Olá Jo:

    Não consegui aceder ao link que deixou. Incompetência minha, de certeza:) O mar que está ali fora é de Lagos no Algarve. Bem no sul. Agradeço muito o seu adjectivo. E fico sempre surpreendida. É desde sempre uma espécie de não-lugar. Onde venho registar coisas. Para nunca me esquecer delas. Não sei bem. Por isso, fico muito feliz e muito grata que as coisas registadas tenham chegado a si. E que signifiquem coisas boas.

    Um beijo.

    Mar

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  5. : )) Mar,

    É que este link é do perfil do facebook, e sim, não é possível aceder sem ser por lá, parvoíce minha... consta de umas fotografias minhas quando era miúda que são irrelevantes para aqui, e um pequeno texto escrito há uns meses, onde digo o que sinto pela minha praia, em Lagos, no Algarve.
    Faço gosto por partilhar consigo, porque tocou-me a forma como fez aparecer Lagos, em mais um dos seus bonitos textos.

    Está aqui:

    "desde sempre, quando chega a altura das férias (e não só), seja em que ano for e em que circunstância estiver, existe a praia da minha vida.
    tal como a família que não se escolhe, assim é esta praia.
    primeiro, porque tinha que ser
    agora, por ser

    lá, o mar é único, porque é fresco, protector, aconchegante, e ao mesmo tempo que me põe no meu lugar, por ser imenso e selvagem, também me convida a viver memórias, mais ou menos privadas, mais ou menos boas.
    é afectivo. emociona.

    todos os anos há momentos em que, perto desse mar, tomo decisões, faço balanços, sonho.
    projecto a vida.
    viva.

    a praia da minha vida é lindíssima quando está soalheira e serve de chão a centenas de pessoas,
    mas quando o tempo está 'embrulhado', e o mar profundo balança entre o cinza orlado e o índigo,
    então a minha praia transcende,
    ilumina-se verdadeiramente.

    diz-se que é uma Meia Praia, mas para mim é uma praia inteira"

    ... visto aqui parece um pedacinho fora do contexto, mas como não deu para o link, e para saber o que lá estava...

    Obrigada.

    : )) beijinhos

    Jo

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  6. Há mesmo qualquer coisa de especial nesta ideia de sul. Um lugar que transcende os comentários imediatos de ser "ventoso". Eu gosto da fúria do vento que há lá fora. Começa a adivinhar-se ao final da tarde. E segue o caminho que tem para seguir, durante a noite. Pela manhã, já está tudo bem outra vez. Não há réstia de fúria:)
    Gostei tanto do que escreveu sobre a sua praia. Gosto tanto (e agradeço) que tenha partilhado aqui um fragmento muito belo. Sobre o chão inteiro que é a Meia-Praia. Aqui em frente, enquanto escrevo, é a praia de Porto de Mós. É desde há muito tempo assim. Um lugar onde há aquelas coisas que escreveu. De olharmos o mar e haver resoluções. Decisões. Esperanças. Coisas assim, que vêm com a água.

    Um beijo com carinho. E de gratidão.

    Mar

    PS: Tenho a sensação de já ter lido o seu texto antes. É uma coisa muito impressiva, mas foi publicado em outro lugar? Desculpe a pergunta:)

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  7. Muito grata pelo seu carinhoso acolhimento. Bons sentimentos emergem quando é assim. Fico feliz.

    Vou há 40 anos para a Meia Praia, e não conheço qualquer outra praia em Lagos, o que significa que a praia me prendeu : ) mas acredito que todas sejam tão bonitas, porque é um mesmo mar. Cheio.

    Um beijo também.

    Jo

    PS: Não peça desculpa. Foi um pequeno texto que escrevi apenas no facebook. Creio que essa sensação que tem, surge de uma forma de escrever de certa forma banal, o que pode dar essa impressão. É a minha forma de escrever 'coisas' que vou sentindo. Como por exemplo, aqui:

    http://comunidade.sol.pt/blogs/josefadobidos/default.aspx

    : ))

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  8. Só consegui escrever aqui "durante Lagos"... Mas mesmo nestes meus dias que têm tido pressa, tenho vindo repetidamente à mesa que era antes de Lagos. A jarra que te lembrará sempre Veneza. Os guardanapos lindos que entretanto te acompanharam a Sul, as peças que juntas para criar um ambiente tão certo. A tua mesa antes de Lagos... Com as coisas boas que lhe acrescentaste. E com tempo para escrever à mão. Uma carta escrita a uma amiga que vai para longe. Num papel que leva beleza...
    Um beijo
    Babette

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  9. Olá Jo:

    Tem razão nisso das praias. O mar cheio é o mesmo. Acolhe e está tudo bem. E eu é que agradeço. Antes de eu a acolher, já a Jo o tinha feito. Não reparou? Leu as coisas que eu deixei. E depois escreveu. Isso é acolher. Eu só correspondi ao seu gesto limpo e gratuito. Obrigada por isso.
    E vou lê-la no link que deixou. Mais uma coisa a agradecer:)

    Um beijo para si. Que gosta de Lagos assim como eu. Do mar de Lagos.

    Mar

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  10. Sei que sim. Que os teus dias têm sido muito à pressa. Muito cheios. Nada do espírito de Agosto:) A jarra azul de vidro de Murano. O vidro que está por toda a parte em Veneza. O papel da carta veio da mesma loja onde comprei o teu presente:) E por esta altura, a amiga para quem escrevi à mão já está muito longe. Eu vou um bocadinho na bagagem. Com uma carta. Quis que ficasse aqui. A esperar pelo regresso da Leninha.

    Um beijo para ti. Que és minha amiga. E os amigos podem escrever durante, depois. Ou até mesmo não escrever, que está tudo bem. Os bons sentimentos são etéreos, como os pássaros. Livres.

    Mar

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