Rememoração.

























Foi-me confiado. Com uma certa solenidade. Com a expressão própria de quem confia um tesouro. Uma comoção ligeira no rosto da minha sogra. A retirá-lo de uma gaveta. Daquelas gavetas que há em todas as casas. Que estão quase sempre fechadas. Foi há uns anos, já. Isto do rosto grave, da voz ligeiramente embargada. Era dela. Da mãe da minha sogra. Uma mulher que eu vou imaginando pelos relatos. E pelos retratos. Que deixou coisas lindas atrás de si. Copos que têm estado nas mesas de que gosto todos os dias. Loiças delicadas que têm sido vividas.Toalhas. Quadros. Tabuleiros. Coisas tangíveis, todas. Que evocam o que há de intangível numa memória. E a mais persistente de todas elas. A memória da comida que fazia.
Vive nos que provaram a comida, a memória. Nos olhos comovidos dos que a viam a mover-se no universo que dá as memórias mais gratas de todas. As das coisas que nos sabem bem. As coisas que nos fazem bem indefinidamente. Que nos acompanham pela vida. Que vêm num repente. Quando sentimos o aroma que era mesmo o da comida de avó. Quando um certo sabor faz com que sejamos pequeninos outra vez. Outra vez a regressar da escola. Outra vez o jantar que estava à espera, nas noites quentes de Verão. É assim, sempre que recupero uma das receitas do livro que era dela. Uma coisa de ver o silêncio nos olhos dos que a conheceram. Um silêncio terno e solene. Porque ela volta de repente. De repente, está ali um bocadinho. Por causa de uma receita.  Esta tinha uma espécie de advertência no título: Lulas muito boas. E já está. Nada sofisticado. Nada descritivo. Mas exacto. Ficaram assim como ela dizia que eram: muito boas. Com vinho do Porto. Um elemento que dificilmente associaria a lulas. Mas sim, todo o sentido, que fez. Em fatias de pão torrado. Com batatas fritas, como ela escreveu. Eu dei a minha música à receita da avó. Para que houvesse um bocadinho da minha música na comida que ela deixou escrita. Muse. Sunburn. Plug in baby. Showbiz. E mais.

PS: A receita está na imagem do livro. É só aumentar um bocadinho. Melhor assim, pelas palavras dela. De uma das mulheres que houve antes. Queria que as instruções fossem dela.

10 comentários:

  1. Verdadeiras relíquias, estes caderninhos com caligrafia de outros tempos. Da minha avó, não tenho caderninhos de receitas. Cozinhava de memória, sem receita. Tudo coisas muito simples, mas muito saborosas. Há pratos que, por mais que tentemos reproduzir, nunca ficam iguais aos que ela fazia. E penso que a avó do seu marido teria apreciado a música que acompanhou a sua receita.
    Já li a receita. Pelas palavras dela. E gostei. E um dia experimento. E depois conto como correu. Um beijo

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  2. Mais um texto lindo neste cantinho d'aMar...

    Adorei relembrar esta caligrafia, que associo ao grande Homem da minha vida, o meu avô, secretário atento e sempre disponível da esposa, cujo maior desgosto era não saber ler e escrever!
    E que memória doce, relembrá-los assim... ♥♥

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  3. Já te disse que adoro as histórias lá de longe. De antes de nós, de outros sítios, de pessoas reais. Por isso me comovo sempre que olho esses cadernos que são impressões digitais e memórias tangíveis. Já te disse também, que nunca mais comi lulas como as da minha avó....
    Babette

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  4. Olá Ilídia:

    Não estou bem certa quanto a isso da música. O meu marido detesta:) Desaparece para longe, quando é Muse. Mas devia adorar. Por ter sido bem no meio de um concerto deles que eu disse que sim. Que já era tempo de voltar. E dizer que sim:)
    As descrições que me são feitas relatam isso das receitas de memória. O cozinhar intuitivo. Como eu faço quase sempre. Mas ficou este caderno volumoso. Com folhas amarelecidas. Que está nas minhas mãos, agora. Gosto de pensar que um dia vai passar para outras mãos. As lulas ficam óptimas. De um sabor delicado. Julgo que pela introdução do vinho do Porto.

    Um beijo para si. E espero que entretanto tenha resistido à sua adicção:) Ou não. Adorei o seu post sobre o vício. Sober for one day:)

    Mar

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  5. A caligrafia. Aqueles apontamentos no início das receitas. Que dizem que é óptima. Que fica bem. Ou não, que não é para repetir. Mas a letra é um detalhe encantador. De pessoas que aprendiam a escrever com um sentido de brio que não é comum. Há coisas que se perdem. Por isso é que é bom olhar estas letras desenhadas. E que elas tenham evocado os teus avós também. Um bocadinho de ternura acrescentada ao texto que gostaste de ler.

    Um beijo com carinho.

    Mar

    PS: Está quase o dia da tua menina. Deve andar a contar os dias para o aniversário, imagino. Suponho que agora já não goste de carteiras cheias de rosa:) Diz coisas de que ela goste, sim?

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  6. Imensas histórias a propósito da avó do Vasco. Quase todas relacionadas com o sentido de casa. E era muito bonita, também. Um rosto delicado, com brincos frágeis de pérolas. Cabelo apanhado. Deixou coisas muito bonitas. Que eu procuro usar todos os dias. Para lhes render a devida homenagem: com a beleza que significam. A mais valiosa, por ser quotidiana. E não dá para ser a mesma coisa, nisto dos sabores da infância. Porque as mãos são irrepetíveis.

    Um beijo de final de dia.

    Mar

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  7. Estes mimos são o que fica visível após a ausência, aconchegam o que sentimos, como se a presença "aumentasse" ao revermos as letrinhas.

    Sou sortuda, também tenho uns exemplos de receitas com uma letra especial,de um pai desaparecido na adolescência, sim receita de champanhe e leitão assado! Outras...imagina, da minha mãe e tia, mas de tricô, o número de malhas...:)

    Obgda
    Cristina

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  8. Tens razão, Cristina. São pedaços visíveis da ausência. Que se transforma em presença. Pensar que a letra foi desenhada por mãos que viveram mesmo. Que andaram nos lugares por onde andamos agora. Até sermos também ausência. Saber que um dia vamos ser isso: ausentes. A ver se escrevo umas receitas, também:) O tempo é sempre curto. Nunca chega, o tempo que temos. Obrigada pelo comentário. Num dia em que fez particular sentido. Coisas silenciosas.

    Um beijo da Mar.

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  9. É verdade, o tempo é sempre curto, a ver se escrevo algo, para alguém mais tarde recordar.
    Beijinhos.

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  10. Escreva sim. Como fez hoje:) Sabe sempre bem ver coisas escritas. Principalmente por sabermos que somos finitos. Que acabamos e pronto. Ou não. Podemos não acabar inteiramente. Partículas infinitesimais de nós. Que não (se) acabam.

    Um beijo para si.

    Mar

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