Mesa para o dia da palavra pequena.




É muito breve, a palavra que enche o dia. O de hoje. E os outros todos. Todos os outros dias em que somos aquela figura que dá banho e veste e tenta passar creme em corpos pequeninos que se mexem demasiado. Parecem imperceptíveis, esses gestos quotidianos. Achamos que não vão ficar. Que são gestos de manutenção. Alimentar, lavar os dentes, ensinar a usar o guardanapo no colo e a manter os cotovelos afastados da mesa. Uma aritmética difícil, que exige persistência e doses de paciência que não se conseguem medir.
Para o meu filho, sou essas coisas todas. Não sou quem joga à bola e anda de barco no rio. Não tenho braços musculados e fortes, que fazem lembrar os heróis das bandas desenhadas. Não sou capaz de muitas coisas. Há muitas coisas que me faltam. Mas sei que para ele, a representação imediata da mãe é sinónimo de cabelos longos, saltos altos e vestidos um bocadinho curtos:). Uma mãe que cheira a flores e que dá banhos que o acalmam. E sei que, se no meio das brincadeiras todas que há lá fora, acontecer uma mágoa, ele vai refrear o choro. Que não vai querer chorar lá fora. Para vir para junto de mim. Para poder chorar o que o magoou lá fora. E fica tudo bem, depois desse momento só nosso. Fica sempre tudo bem.
A mesa de hoje não foi para mim. Nem sequer para as outras mães que estiveram. A mesa de hoje foi para ele. As borboletas brancas suspensas nas folhas verdes são para ele. O pássaro de porcelana também. E um outro que encontrou lugar nos ramos frágeis de uma árvore breve. E então, por entre a agitação do dia, no meio de todos os lugares que ali estiveram, ouvi-o dizer que a mãe era como as borboletas brancas da mesa. Lindo, no imaginário do meu filho, ser assim representada.
Neste dia, lembro-me sempre das mães que não são. E que não são, porque não aconteceu assim. Às vezes, há mesmo coisas que nos ultrapassam. E o mundo acaba por ser um bocadinho impiedoso. Um bocadinho impositivo. E por todo o lado, coisas que dizem que é suposto. Que é suposto conseguirmos ter filhos. Ter maridos. Ter casas organizadas. Trabalhos que correm sempre bem. E sentirmo-nos realizadas. Tão cheia de arrogância, esta ideia da realização. A carecer de densidade. A transbordar de sobranceria. Afecto para as mães que não são. Para todas as mães que querem muito isso. Ser mães. Há-de haver um sentido para tudo o que não se consegue ter ou fazer. Libertador, acreditar que sim.

18 comentários:

  1. Querida Mar,

    Gostei muito do centro de mesa. Mesmo muito ... Lindo!

    As suas palavras também revelam uma grande sensibilidade e atenção pelo outro. É reconfortante ler este texto! Como filha também tive um bom dia da mãe, como se irá aperceber, mas ficou mais completo com esta perspectiva que aqui encontrei já ao final do dia.

    Um grande beijo

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  2. Uma mesa absolutamente linda! Com borboletas da boa sorte, com um pássaro branco lindo e recortado. Com a primavera num dia que se quer feliz. Num dia tb, como todos os outros, em que nos devemos lembrar da outra metade que não celebra a data da mesma forma. Muito sensível, a minha Mar. Que pôs a mesa para o António. O tal altruísmo que é ser mãe...
    Beijo
    Babette
    PS. e um beijo para a Fa!

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  3. Adorei toda a magia com que vestiu as palavras simples neste dia tão especial: o dia das Mães. E tocou-me profundamente o último parágrafo, talvez por me ver tão bem espelhada nele. Obrigada, Mar :)

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  4. Neste dia, vivo consigo a imensidão de sentimentos presentes na magia de ser Mãe.Partilho consigo o afecto pelas Mães que não são. não posso deixar de homenagear também as Mães que já não estão!Hoje a alegria de ser e estar mistura-se com a imensa nostalgia de não poder abraçar a minha Mãe. Eu sei que, com dizia Drummond de Andrade, as Mães não morrem.
    Mas... o tempo passa e as saudades são muitas! Hoje, às oito da manhã,estava junto dela e conversei e chorei. Vim melhor e abracei os meus filhos com muito mais força...com muito mais alegria!
    A sua mesa é belíssima, lembra o paraíso.Os espelhos reflectem os objectos tão etéreos...tão maternais! Uma bela homenagem às Mães que estiveram à mesa e um bom exemplo para um menino que associa a sua Mãe a boeboletas!
    Um abraço com muita admiração.
    Emília Melo

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  5. Mar:
    Que beleza e quanta sensibilidade neste seu texto. Todos os comentários são também belos e pertinentes. Que mais posso dizer? Que a mesa é muito original, poderia aparecer na "nossa" AD!
    Beijinho.

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  6. Olá minha Fa!

    Recupero a sua palavra cheia de generosidade: reconfortante. Sinto-me feliz por ser lida assim. Que seja uma daquelas coisas reconfortantes. Como as suas receitas de assados, que me fazem pensar no bom que é chegar a uma casa. Que bom que tenha gostado deste centro. Com pássaros e borboletas brancas. Esteve presente nos meus pensamentos, enquanto o fazia. Por saber que a minha amiga com nome de Fada gosta de pássaros. Que os usa nas suas mesas poéticas.

    Muito obrigada. Por estar aí. E aqui.
    Um beijo para a filha. E um outro para a mãe.

    Mar

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  7. Olá minha amiga doce:)

    Que bom que tenhas gostado da mesa dos pássaros e das borboletas. Bom estares presente nos meus dias. Falámos enquanto estava a ser posta, a mesa que te faz pensar na Primavera. É bom lembrar isso, também. Que esta mesa te esteja associada. E sim, a mesa para o meu pequenino. Que gosta da liberdade destes animais tão etéreos, cheios de poesia. Um presente de mãe, num dia em que é suposto recebermos presentes.
    Sem esquecer todas as mágoas que acabam por estar associadas. Estes dias podem ser difíceis, de tão incontornáveis.

    Um carinho do tamanho do amor das mães: sem medida.

    Mar

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  8. Olá à minha Emília:

    Não consigo mesmo não usar este possessivo. Por causa do afecto que sinto ao ler o que escreve. Uma partilha doce, cheia, muito terna. Sinto uma honra enorme por ser lida por pessoas como a Emília.
    É fundamental lembrar todos os que não estão. E todos os que podem sentir-se tristes por não poderem viver este dia como projectaram. Sinto-me irmã dessa circunstância. Por ter a noção de que isto de se ser ou não mãe é completamente aleatório. Pode ou não acontecer. Não há nenhum sentido de justiça.
    Gosto de a imaginar a ter tido uma conversa com a sua mãe. Dessa representação doce de imaginar a minha Emília a falar com a mãe que já não está. E a transformar essa conversa num abraço cheio para os dois filhos.
    Acarinho muito tudo o que aqui deixa. Sinto-me feliz por ser merecedora. Obrigada, então, minha querida Emília.

    Um beijo da Mar. Houve chuva há pouco. E agora está um sol lindo. A brilhar de renovação. Escrevo-lhe assim. Com muito sol.

    Mar

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  9. Olá Lusitana:

    Gosto muito de a ler. Mesmo que diga que sente que não tem nada a acrescentar. Acrescenta sempre. Deixa sempre um bocadinho da pessoa sensível e poética que é.
    E sim. A nossa AD terá andado no meu pensamento, enquanto fazia a composição dos pássaros e das borboletas. Não conseguimos libertar-nos das referências que vamos tendo, creio.

    Um beijo cheio do sol que brilha lá fora. E um bocadinho aqui. Pela pacificação que há.

    Mar

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  10. Olá Luarte:

    Quero muito corresponder ao que ficou de si. É como escrevi no comentário para a Emília. É aleatório, isto. Acontece ou não. E deve ser difícil lidar com a impossibilidade. Com o facto irredutível de o nosso corpo não cumprir aquilo que desejamos com ilusão.
    Não passei por isso, minha Luarte. Mas passei por outra mágoa. E nessa circunstância, lembro-me de ter pensado que tinha duas hipóteses: transformar aquela mágoa em mais mágoa ou libertá-la sob a forma de coisas boas. Tenho tentado sempre escolher a segunda hipótese. E é sempre libertador escolher o bom, o bem, o belo. O mundo já está tão cheio de coisas que fazem mal, não é?

    Um abraço carinhoso para si. E um obrigada terno. Bom sabê-la aí.

    Mar

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  11. gostei muito de aqui vir hoje. pela especial beleza dos textos para as mães, mães de todas as maneiras, acompanhados de fotografias da tua mesa e um passarinho.
    Nunca fui ao Gambamar, nem sei onde é mas é bom dizeres aqui mais sitios no Porto, destes cheios de umas delicadezas descomplicadas e que resultam tão bem.
    e bem, não posso deixar de ficar muito contente, por teres um gato a aproximar-se de tua casa. Os gatos são muito donos do seu nariz, mas também gostam muito de quem os acolhe (a ver vamos:))

    Um beijinho grande,
    da Pipinha.

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  12. E mais uma vez, vir espreitar o mundo da Mar é esquecermos por momentos esse tal "mundo um bocadinho impiedoso, um bocadinho impositivo" e imaginarmos uma doce realidade onde todas somos "borboletas brancas", voando na brisa suave das suaves palavras d'aMar...

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  13. Mar, as palavras fluem quando fala do seu filho :) Gostaria de um dia poder afagar o meu filho que correu para mim quando o mundo exterior o magoou.
    Acho de uma sensibilidade fora do habitual, lembrar-se neste dia em especial das mães que não o são, mas que o querem muito. Posso não ser mãe, mas é "libertador pensar que sim". Quem sabe um dia.
    Obrigada, muito obrigada por ter tido oportunidade de a ler, especialmente hoje...

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  14. Olá Pipinha:

    Bom teres vindo. E teres gostado das coisas para as mães. Para todas as mães.
    Fica na zona do Campo Alegre, o Gambamar. Mesmo em frente ao Capa Negra. Acho que é um daqueles lugares de que o teu Pedro vai gostar. E tu também.
    E sim, vamos ver se o gatinho branco passa a ser um bocadinho nosso. Nunca possuímos nada. Nem ninguém.

    Um beijo da tua Mar.

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  15. Minha happy single mother,

    É muito bom fazermos coisas para nos protegermos de tudo o que no mundo é impiedoso e impositivo. Não que isso apague ou nos faça estar numa redoma de vidro. Mas é bom lembrar esse exercício de liberdade. Que podemos dizer que não a determinadas coisas. Isto tudo para dizer que gostei muito das tuas formulações. E que gosto ainda mais de significar essas coisas que disseste.
    Um beijo carinhoso para ti e para a tua Leonor.

    Mar

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  16. Olá Sara:

    Tem razão nisso do meu filho. O discurso não encontra barreiras, quando escrevo sobre ele. Parecem água, as palavras que o dizem.
    Espero que sim, que venha a sentir isso de ser mãe. Uma das coisas boas que pode acontecer nas nossas vidas. Mas saber que se não acontecer, essa não será a história toda. Que há muito por onde amar. Muito por onde sermos, por não nos esgotarmos nisso. Para responder à arrogância que também é muito feminina, das mulheres que acham que só o são verdadeiramente se forem mães. Redutoras e medíocres, essas mulheres. E cruéis para todas as mulheres que não podem ser mães.
    Gostei de a ler, Sara. Obrigada por isso. Por se ter dado a ler.

    Um beijo de bom dia para si.

    Mar

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  17. Querida Mar,
    há uns meses que aqui venho, todos os dias, em silêncio. É um daqueles espaços que já se tornou um ritual. Um daqueles rituais que nos fazem lembrar quem somos e o que que nos faz ser mais e melhor. Porque lê-la é também isso. Lembrar-me a cada palavra do que sou, também assim. Tão perfeitamente escrito por si. Tão belo. Tão simples. A complexidade de algumas coisas e de alguns sentires, tão simples nas suas palavras.
    E este texto, há dias a ressoar na minha alma. Porque ainda não sou mãe. Porque não sei se serei um dia. Mas porque sou já, sem o ser ainda. Porque trago os meus filhos, que ainda não o são, no meu coração, a cada instante da minha vida. Porque se eles não puderem ser, tenho tanto amor para dar a outros meninos e a outras pessoas. Tantas formas que o amor pode ter. E sim, é verdade. Essa crueldade que nos faz tantas vezes sentir menos, menores. Essa crueldade que dá tantas vezes vontade de gritar que não é por não sermos mães que o deixamos de ser. Porque há muitas mães que o são mais sem o poder ser.
    E hoje, só porque sim, apeteceu-me deixar palavras. Sem nexo ou sem sentido, mas com muita admiração e ternura. Porque sem a conhecer, a sinto também um bocadinho minha.
    Obrigada pela luz que traz aos meus dias, em forma de palavras belas.
    Um abraço do tamanho do mundo,
    Mafalda

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  18. Olá Mafalda:

    Só porque sim, escreveu. Ainda bem que aconteceu assim. Depois do silêncio de meses. A verdade é que parto sempre do princípio que sou lida essencialmente por pessoas que me conhecem. Ou no limite, aleatoriamente. Mas de vez em quando, acontecem pessoas como a Mafalda. Que estiveram em silêncio aqui. Uma das coisas belas deste registo virtual, que nos permite esta forma de proximidade.
    Agradeço muito o que escreveu a propósito do que escrevo. Coisas carinhosas e generosas que sinto que não mereço inteiramente. Mas gosto muito da gratuitidade do seu gesto. Porque trata-se realmente de uma coisa livre e gratuita. O registo que mais prezo. E que me faz querer escrever.
    Eu sou mãe. De uma maneira que é difícil de dizer. Embora tente dizê-lo de muitas maneiras. Com a noção de que nunca se consegue. Mas nada disso me distancia da ideia de que podia não o ser. De que podia não ter acontecido assim. Por mais que eu quisesse. E penso que acabaria por ter a atitude de que falou. Que iria tentar dar todo o amor de que sou capaz. Sob outras formas. Porque uma mãe que quer ser mãe já o é. Já há maternidade nessa vontade.
    E sabe, há muitas circunstâncias em que nos sentimos menores, menos. Aqueles momentos em que não conseguimos. Em que não somos capazes. E com tudo o que há de bom no mundo, também surgem muitas vezes formas algo despóticas de afirmação. Parece uma afirmação para algumas mulheres, isto de ser mãe. Do amor. De se ter a ilusão de ter um marido. Ter a ilusão de se ter seja o que for. A mim, essas afirmações parecem-me sempre vazias. Vê-se muito nas capas das revistas. Pessoas com palavras demasiado cheias, demasiado definitivas. Logo depois, cai tudo. Desmorona-se tudo. Com direito a assistência.
    Mas há coisas assim. Como as suas palavras que aconteceram hoje. Um bocadinho sua. É bom sentir isso. A ternura, a luz. Tudo o que é belo.

    Um abraço para si. Do tamanho do mundo. Um mundo inventado. Onde não existam pessoas que querem esmagar as outras por serem mães.

    E obrigada pela luz que acrescentou.

    Mar

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