"Stop and smell the roses."



















A Primavera é assim como uma música que toma conta de nós. Aquilo que não nos pede para pensar, para elaborar muito. Aquilo que em nós não hesita nem quer deixar para depois. É a estação mais etérea de todas. Aquela que mais me lembra que isto tudo é um instante e pronto. A começar pelo tempo escasso das flores. Num dia, olho e há lírios por todo o lado. Uns dias depois, são já uma memória. Num dia, as cerejeiras estão em flor e a cada brisa, aquela magia de as flores se soltarem das árvores e haver pétalas como se fossem flocos de neve a cair no mundo e nos meus cabelos. Num dia, o perfume inebriante de um determinado arbusto, quando passo naquele exacto momento de um dia de sol. Mais as cores e os aromas das rosas e das flores de laranjeira misturados. E isso tudo ser uma alegria tão natural como levantar-se o vento.
O que eu quero mesmo dizer é que os acontecimentos imperceptíveis das outras estações parecem prolongar-se mais. Na Primavera, não é assim. São muitas, muitas coisas imperceptíveis a acontecer a cada momento e é muito importante dar conta que elas estão a acontecer. Porque só na Primavera seguinte. Se a pudermos viver, claro. Como nunca caio no erro de ter as estações como garantidas, é sempre tudo muito urgente. Sempre tudo muito intenso. Mesmo com os reversos todos e com os maus encontros e equívocos que a vida entendeu reservar-me. Porque há/houve isso tudo, como há nas vidas de todos os que vão a jogo. Todos os que escolhem gostar e amar e cair e chorar e rir e dançar até cansar de feliz e ir e deambular e sim: falhar muito, falhar cada vez melhor
Para quem gosta de comida e (principalmente) de fazer comida, a Primavera é um tempo em que todos os dias há qualquer coisa nova que pede para ser celebrada. E então, as ervilhas de quebrar não são coisa que se deixe à espera. São colhidas, chegam à cozinha ainda com o orvalho da manhã e devem ser homenageadas. Isso significa que não podem ser recozidas até ficarem amarelas e deixarem de ser de quebrar. Colocadas em água que já esteja a ferver. Contar 4 minutos. Retirar para água com umas pedras de gelo e isso ser respeito. Respeito pelo tempo que elas levaram, até acontecerem. Respeito pelo verde lindo e franco que elas são. E espargos selvagens. E bróculos pequenos, com folhas muito tenras. E as cebolas novas num ramo. E fazer pão de azeite e de orégãos e servi-lo quente, a abrir um jantar de Primavera quase a ser Verão. E a gremolata que é o tempero último de um prato lindo e delicioso que junta alguns dos pequenos/grandes acontecimentos destes dias de sol que já passaram e que, por isso, nos pertencem. Ninguém pode vir e dizer que não. O mesmo princípio se aplica à primeira cereja do ano. Já aconteceu. E ninguém pode vir e dizer que não. Somos mais passado do que outra coisa qualquer.   
Pelo meio disso tudo, encontrar peónias no mercadinho de agricultores, no sábado de manhã. E o carinho da senhora que mas guarda como segredo ou coisa preciosa. E são. Muito. Lindas, aparentemente frágeis. Mas só aparentemente, porque elas resistem dias e dias. E o perfume delas é assim uma coisa que suspende o andamento normal do mundo. Nunca me são indiferentes. Elas estão na jarra. Silenciosas e lindas. Eu estou a passar ou a fazer coisas e não dá para resistir e sentir o aroma e tudo o que acontece em nós, sempre que nos concedemos a alegria das coisas imperceptíveis. Stop and smell the roses, diz uma daquelas frases que também faz parar. Claro que sim. As vezes que quisermos conceder-nos a magia etérea de reparar na beleza das flores da Primavera a acontecer agora. 
Nesta página, um livro daqueles que nos fazem estar entre duas vontades paradoxais: a vontade de não chegar à última página e a vontade de chegar à última página. Também foi um daqueles momentos de parar e de voltar para trás. Vi o livro e aquele grafismo de tempo anterior. Reparei no título, mas mais do que isso, no subtítulo. Uma vida sem luxos pode ser o maior dos luxos. Tanta verdade, nesta formulação. É um livro que invoca outros livros. Passagens, personagens, referências da literatura russa que parecem ser pressuposto para se entrar bem nesta narrativa. Os ensaios de Montaigne que li há anos e que reconheci como se não tivesse havido intervalo de anos. Há muito que não tinha tanta estima e tanta curiosidade por uma personagem. O Conde Alexandr Ilitch Rostov. Quando se diz a palavra "aristocrata", pensa-se muitas coisas erradas e apressadas. Esta personagem resgata a palavra e o imaginário cheio das tais palavras erradas. Mas muitas outras coisas. A começar e a acabar na narração da história recente de um país que me é muito. Mesmo muito. As estepes geladas, a viagem nocturna de comboio entre São Petersburgo e Moscovo. E isto: a palavra samovar. 
E nesta Primavera, o Philip Roth morreu. Ponto final. E um parágrafo impreenchível, num dos meus diários erráticos. Uma página em branco. Só aquela frase e a data. Não vou dizer coisas sobre o Philip Roth. Li tudo, dele. Daí o silêncio. Daí a página em branco. 


Creme de beterraba e caril

1 cebola (grande) + 3 batatas (médias) + 3 cenouras (médias) + 3 beterrabas (médias) + 1 colher (de chá) de caril + azeite, água e sal q,b. 

Descasca-se e corta-se todos os legumes e coloca-se numa panela. Um pouco de sal, um fio de azeite, a colher de caril e uns segundos ao lume, mexendo com uma colher de pau. A seguir, água até cobrir os legumes. Fecha-se a panela, deixa-se ferver e reduz-se o lume. Deixa-se estar meia hora. É importante que os legumes não cozam demais, para que a cor desta sopa seja o rosa vibrante da imagem e não um vermelho baço e indiferente. Depois, é só reduzir a creme com a varinha mágica, provar e rectificar os temperos, se necessário. E está. Uma sopa que ninguém esquece. Uma sopa que é uma daquelas memórias. 

E a música dos The Vaccines. Porque gosto (mesmo) muito:) 

  

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