Pretérito (im)perfeito.




















Este lugar. Há anos que não entrava ali. Há anos que queria guardá-lo noutro espaço que não o da minha memória. Os claustros silenciosos e em ruínas. O som cadenciado da água no lago pequeno. As escadas largas de pedra. O ranger da madeira do chão, aos meus passos. As janelas fechadas que abri uma a uma ao sol de Abril. Os rostos graves e cristalizados dos retratos de gente que já não está há muito. Gente que respirou ali e no mundo. Os cristais e as luzes. As ervas invasoras e as plantas que há muito passaram a ser selvagens. Como se tudo tomasse conta de um território alheio. Os livros e as loiças e os cristais. Tudo coberto de um pó persistente e silencioso. Um jogo de xadrez deixado a meio indefinidamente. Tudo ali parece ter ficado em suspenso desde não se sabe quando. E isso ser triste e belo ao mesmo tempo.
É sem contexto que este sítio aqui fica. Sem coordenadas, sem narrativas. O tempo já fez acontecer muita coisa a este lugar. Muitos invernos atravessaram estas paredes. E, por mais que até estejam marcadas, estão lá. Elas estão sempre lá. E ter consciência da finitude passa por isto. Por amar o passado como se fosse uma entidade viva. O único adquirido que temos, no fundo. O passado. Individual, colectivo. Inacabado até ao oxigénio último. Fundador, estrutura muito frágil dos nossos sonhos, marcado por cada um dos nossos pretéritos. Imperfeitos, sempre. E o maravilhoso que é. O imperfeito, o quebrado, o que duvida, o que não sabe como vai ser (e que diz que não sabe como vai ser), o que contempla serenamente o andamento frenético do mundo que vive na angústia do dia mais incerto de todos: o dia seguinte. O passado é um lugar de profunda rebelião. Entendê-lo, integrá-lo, retirar dele o que houver para retirar, deixar ir e deixar cair, limpar o pó e abrir as janelas todas. Respirar. 
Não consigo dizer bem o que senti, enquanto existi neste sítio em silêncio. Creio que é por não querer. Talvez um dia esse momento seja parte de uma narrativa maior. Tão literário, tão de cinema, esse silêncio. Enquanto não, a memória desse pretérito nas imagens soltas que ficam. Um palácio sempre fechado, onde abri as janelas e pus mesas para um jantar especial e espalhei velas e luzes pequeninas. À noite, as vozes e os risos e os silêncios que cada um traz dentro de si, por mais que os negue ou lhes queira fugir. Eles estão sempre lá, como quartos onde há muito as janelas não são abertas. Mas é certo que sim, que um dia sim. Tão certo quanto o passado, esse momento revelador. E isso pode ser maravilhoso. Ou terrível. À noite, um vestido preto e o cabelo preso num nó desalinhado e tranças pequeninas feitas à pressa, antes de subir as escadas com luzes. Lá está: imperfeita. Mas concentrada no momento, a transformá-lo devagar num passado bem respirado, bem resolvido, com fundações bem resistentes, como as deste palácio. Já viu e passou por muita coisa e no entanto, resiste. 
Com este lugar, este livro. Neste caso, aconteceu ao contrário. Vi o filme e procurei o livro. E sim, gostei muito do filme. O primeiro realizado pelo Tom Ford. Com a beleza densa de passado da Julianne Moore e o charme muito britânico do Colin Firth. Uma fotografia e uma luz inesquecíveis. E, claro, os ambientes. E as camisas brancas e as gravatas sóbrias e o bom corte dos fatos e os sapatos impecavelmente escuros. Curioso como o imaginário do filme e o do livro estão de acordo. Como se interceptam tão naturalmente. Nem sempre é assim: uma coisa parece perturbar a outra e nunca se consegue perceber muito bem o que é melhor, quando os livros são adaptados ao cinema: se é melhor ler o livro primeiro e ver o filme depois, se o contrário. O que for, que não gosto muito (ou quase nada) de teorizar sobre nenhuma forma de arte. Só de gostar. Ou então não. 
Mais um lugar que eu quero que fique nesta página: este blog. Perco-me aqui. Às vezes, penso que vou só ver uma coisa, mas não. Ando para trás, nas páginas. Distraio-me com as imagens, com os textos, de umas coisas vou às outras. Seja quem for que se dedique a este sítio, faz um trabalho de recolha meritório. Só os néscios é que pensam que o passado não importa para nada ou que não define o presente, o futuro. Ao contrário. Tão ao contrário. 

A música é dos Deftones. Dois minutos e quarenta e três de calma. E a seguir, aquele som quase épico. A uns dias do concerto aqui


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