Num dia qualquer.



















Cada mês de cada um dos nossos anos de vida tem dentro um dia um. E eu acho que esse dia um é bem íntimo. Tão íntimo e tão silencioso que pode até acontecer-nos num dia nove ou num dia vinte e sete ou em cada um dos dias das nossas vidas em que temos aquela sensação de respirar fundo, de renovados e limpos de tudo o que fica para trás sem que nos dediquemos muito a pensar no assunto. Não é uma coisa de número ou de calendário e o mais provável é que nos sintamos profundamente sós, nesse momento em que percebemos simultaneamente que somos (sempre) tão livres, afinal. A liberdade pode até ser um dado universal, colectivo, mas começa sempre a sós. Naqueles nossos espaços interiores. No que dizemos, no que calamos. No que queremos muito. No que deixamos cair, por sentirmos que já não dá para mais. Nesses momentos inqualificáveis e inesperados, uma liberdade sem adversativas. 
A cada dia, todos os detalhes, todos os dados infinitesimais disto de existir todos os dias. Sempre tão extraordinário, o ordinário, o comum, o normal. Com todas as imperfeições, com todas as máculas e quebras. Guardo no primeiro post deste ano algumas dessas coisas imperceptíveis, porque os anos passam e o meu amor pelo invisível não se gasta. A começar pelo verde da parede da adega. O lugar frio onde descansam os vinhos que são para deixar estar, tem a parede mais poética da casa. O tempo que foi preciso, até chegar àquele verde de que gosto tanto e em que reparo sempre, quando vou lá fora ao jardim, em busca de limões e de laranjas. A asa quebrada de uma das minhas cerâmicas wabi sabi. A taça meio esfacelada com o sal que dá alma à minha comida. Penso sempre que devia substituí-la, mas gosto das histórias que conta e lamentaria interromper aquela narrativa. E as migalhas do pão que corto para as torradas do pequeno-almoço. Creio que não há dia em que não pense na insignificância desse gesto quotidiano. Cortar o pão e espalhar as migalhas lá fora, para os passarinhos que passam o inverno aqui no frio, em vez de irem para os sítios quentes do sul. Penso todos os dias, quando vou lá fora deixar as minhas migalhas insignificantes. E todos os dias penso que faz uma diferença muito pequenina e que isso não faz mal nenhum. O que importa mesmo, é que a frente da minha casa está sempre cheia de pássaros pequeninos, a debicar migalhas por entre as pedras. Uma diferença que voa, então. E depois, sempre aquele encanto que acontece todos os dias, enquanto faço a comida. Aqueles gestos. Aqueles sons. Aqueles verbos que determinam aquele outro verbo que quero muito conjugar todos os dias. Amar. Muito. Tanto, desse verbo breve. Declinado e registado de muitas maneiras. Algumas não verão outros olhos que não os meus e vão ficando numa gaveta virtual. Outras, deixo-as aqui. Num desses momentos, a ilusão de que o âmbar do copo de água estava cheio de estrelas, por o brilho ser tão bonito. Fica essa água, também. E o creme-milagre que salva as minhas mãos deste frio que seca, por pensar que talvez possa fazer bem a outras mãos. Tudo seria mais fácil se usasse luvas. Mas não. Deve haver uma explicação qualquer para a minha aversão a luvas, suponho:) Acho que são bonitas, gosto de as ver noutras mãos, especialmente quando são mãos ao volante. Mas não passa daí, que eu gosto que as minhas mãos estejam expostas aos elementos, por mais adversos que até sejam. No final das sequências de todos os dias, um livro. Algo estaria profundamente errado, se fosse de outra maneira. Este é de se ler num fôlego. E sim, os livros do Michel Houellebecq implicam sempre algum estômago. Mas nada bate a realidade em brutalidade e em crueza, penso muitas vezes. 
A receita que fica hoje tem dentro a luz de uma pessoa e devo a esta receita e à luz dessa minha amiga, o dado muito lindo de o meu filho ter passado a gostar (mesmo muito) de caril. Fiz uns acrescentos e umas adaptações, mas a receita é dela e, sempre que faço este caril, lembro-me do dia exacto em que ela o fez à minha frente. A comida é assim. E esta faz-se assim. 

Caril de frango com lima e com maçãs verdes

800g de peitos de frango (do campo) + 1 lima + 1 talo de aipo + metade de uma malagueta (vermelha) + 1 cebola (pequena e muito bem picada) + 2 dentes de alho (picados) + 1 colher (de sopa) de gengibre fresco (ralado) + 1 colher (de sopa) de caril + 400ml de leite de coco (uso sempre este e encontro-o aqui e aqui) + 200ml de leite meio-gordo + 1 maçã Granny Smith + sal, azeite, Maizena, pimenta preta e rosa q.b.

Primeiro, lava-se as peças de frango, retira-se as gorduras que houver e corta-se em pedaços de tamanho semelhante. Coloca-se numa taça, tempera-se de sal, com sumo de metade da lima e pimenta preta e rosa. Reserva-se durante meia hora, se houver hipótese.
Entretanto, pica-se a cebola, os alhos, o aipo e a malagueta. Coloca-se numa panela, com um fio de azeite e deixa-se refogar ligeiramente. Logo a seguir, acrescenta-se o gengibre ralado e o caril e mexe-se de imediato, acrescentando depois os dois leites. Envolve-se, mexendo com cuidado até que ferva. Quando começar a ferver, acrescenta-se os pedaços de frango, envolve-se bem e reduz-se o lume. Deixa-se estar assim durante uns vinte minutos, enquanto apura. A meio deste tempo, acrescenta-se um pouco de Maizena (uso Express e basta uma colher de sopa mal cheia). Decorridos os vinte minutos, prova-se e rectifica-se os temperos, se necessário. Pouco antes de servir, sumo de metade de uma lima e cubos pequenos de uma maçã bem verde, ainda com a casca, que fica melhor. Envolve-se e serve-se, acrescentando mais cubos de maçã em cada prato. A acompanhar, arroz de molho inglês e uma salada verde. E sim, vai bem com espumante|champanhe| vinho branco. 

A música é esta. Liquid peace, Smartini. Vale por inteiro, mas o último minuto é de electrificar. 



6 comentários:

  1. Doce Mar, que saudades de começar o dia assim. a "ler-te".
    a deixar as tuas palavras inundarem-me e inspirarem-me.
    é engraçado. tenho fascínio com luvas, mas não uso. são-me incómodas e sempre senti algum pesar por isso. ;) mas agora deste-me uma nova luz sobre o assunto.
    Vou colocar Lanzarote no horizonte, parece-me uma boa combinação. Michel Houellebecq, de quem me ensinaste a gostar, e a árida mas saudosa ilha de Lanzarote.

    Um ano cheio de luz para ti, doce Mar, e para todas as tuas pessoas-luz.
    Beijinho

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    1. Que linda, Mafalda. Tão bom que alguém, num lugar qualquer, tenha saudades nossas. Sinto o mesmo pesar em relação a isso das luvas. Mas não há problema em termos (só) uma perspectiva contemplativa:)
      Ele fala do carácter desolador da paisagem, mas não é a história toda. A ver se gostas, então. Li há dias uma crítica lamentável e preguiçosa, centrada no óbvio do sexo. É como naquela frase: não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos.

      Um ano cheio dessa mesma luz, querida Mafalda. Obrigada pelos bons desejos!

      Um beijinho *

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  2. Tudo tão bonito. Amar os pequenos detalhes, todos os dias. Importante não nos esquecermos disso. Muito bonita a tua parede verde. Principalmente com as outras cores à frente.

    Já tinha saudades de te ler :)

    Um beijo grande,

    Ilídia

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    1. Obrigada por gostares. E pelas tuas saudades tão bonitas. Contava que Janeiro fosse a abrir, mas não estava à espera que fosse tanto :) A ver se volto ao meu ritmo, aqui.

      Um beijo para ti, minha querida.

      Mar

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  3. "A liberdade pode até ser um dado universal, colectivo, mas começa sempre a sós. Naqueles nossos espaços interiores. No que dizemos, no que calamos. No que queremos muito. No que deixamos cair, por sentirmos que já não dá para mais. Nesses momentos inqualificáveis e inesperados, uma liberdade sem adversativas."
    E com as tuas maravilhosas palavras não há nada mais a dizer. Só ler e sorrir por dentro. (é tão isso!)
    Obrigada. *

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