Nunca como agora.

















Nunca como agora, a urgência de tudo o que é bom e belo e grato e doce. Nunca como agora, penso muitas vezes. O mundo ficou (ainda) mais estranho, desde a última vez em que escrevi aqui. A sensação de que a qualquer momento, o inconcebível acontece mesmo e torna-se parte dos dias como se fosse coisa normal ou expectável. Os códigos mudaram. Há muito que isso tudo colapsou. Ninguém deu conta ou toda a gente fingiu que estava tudo na mesma. O ponto é que algumas das coisas inconcebíveis que aconteceram (e que estão para acontecer), são consequência da desesperança, do medo, da inércia e da omissão. Ouvi isto no início de Outubro, nesta conferência de Mario Vargas Llosa e outras coisas que fizeram/fazem cada vez mais sentido. Os moderados de esquerda e de direita há muito que não fazem a parte que lhes compete, para a qual são (ou costumavam ser) eleitos e os discursos radicais deixaram a humidade maldosa e conspiradora das subcaves e querem a luz do dia e o poder. Querem poder. E, para mim, não importa se o radicalismo é de esquerda ou de direita. É sempre mau. É sempre perigoso. É sempre erva daninha que deve ser arrancada da terra e atirada para lugar onde não volte a criar raízes.
É em alturas destas que cá em baixo, longe dos holofotes, se tem de fazer o caminho contrário aos sinais que vêm lá de cima. Por isso, se sempre foi importante tomar nas nossas mãos os nossos destinos e os destinos de tudo o que nos é próximo, em tempos perigosos como estes, esse dado é ainda mais importante. Tudo o que conseguirmos fazer de bem. Tudo o que conseguirmos ser de melhor. É isso. Como se arremessássemos flores em vez de pedras. Tal e qual como na peça de Bansky que eu quis ver gravada numa das minhas tábuas de madeira. Resposta linda a coisas feias, o meu Flower Thrower que atira flores em vez de pedras roubadas ao chão. Uma figura pronta a arremessar um ramo de flores a um inimigo olhado de frente, que é assim que se deve olhar para as coisas feias e más: de frente e com flores nas mãos. Metafóricas ou não.
Mas o Outono não passa em falso. As cores mudam de dia para dia, até que se soltam definitivamente das árvores. Depois chega o Inverno. E só depois o Natal. Até lá, um advento silencioso e intransmissível. Até lá, as árvores fazem o seu caminho no mundo e no meu jardim. Vou assistindo a tudo como se nunca tivesse visto antes nada disto, que as estações encantam-me sempre como se fossem um dado novo e parece-me que já não há nada a fazer quanto a isso. A mesa dos almoços e dos jantares de Verão, agora coberta de folhas soltas e de água. Em espera, que vai estar. À espera dos dias de sol. Mas sem nostalgia, que o presente é tanto. Isto que está a acontecer. As tardes doces e lentas dos domingos frios e de chuva. Faz tudo sentido. Na natureza, está tudo certo e tranquilo. Nós é que somos uns complicados. Certo, o tempo lá fora, nos meses de calor. Certo, o tempo cá dentro, nos meses frios. Scones + chocolate quente + tempo. O tempo que me tem feito tanta falta, ultimamente. Quando é assim, os fins-de-semana são sagrados como lugares prometidos e são ainda mais doces se houver chuva lá fora. Castanhas assadas, Grand Marnier depois de jantar e este livro. Novembro será sempre o livro da Guida. Digo sempre o livro da Guida, formulação ligeira e carinhosa. A este propósito, deixo este texto e a minha alegria, por ver nas livrarias o resultado da dedicação dela à comida, às histórias e à história da comida. E aqui, o livro da Guida ocupa já o seu lugar numa das minhas estantes com coisas misturadas, naquele que é para mim o mais maravilhoso dos lugares. Também isso está certo. 
E o homem que escreveu isto já não está cá. Novembro foi também isso. O nome de um homem que viu numa mulher uma entidade sagrada que usa trapos e penas e que o leva pela mão para junto de um rio, na mesma página de um homem que pensa que as mulheres são trapos. O inconcebível foi também essa primeira página de um jornal que quis guardar. O olhar francês sobre o inconcebível que pode bem acontecer-lhes para o ano, só que na versão feminina. Que a poesia e que a beleza prevaleçam. Flower thrower. Flower thrower. Flower thrower. 
A receita que fica hoje é em tons de verde, que o verde é a cor que dá (ainda mais) vontade de esperar por coisas boas. 

Ervilhas na sertã com mostarda e com hortelã

1 cebola (pequena e bem picada) + 1 dente de alho (picado) + 200 g de ervilhas congeladas + 2 colheres (de chá) de mostarda em pó + sal, azeite e folhas de hortelã q.b. 

Leva-se ao lume uma sertã, com um pouco de azeite. Acrescenta-se a cebola e o alho picados e deixa-se estar, até que a cebola fique translúcida. Polvilha-se com a mostarda, mistura-se bem e acrescenta-se as ervilhas. Tempera-se de sal, mexe-se, acrescenta-se um pouco de água, se necessário e deixa-se estar durante 3/4 minutos. É muito importante que não se deixe ficar indefinidamente ao lume, caso contrário, o verde lindo das ervilhas vira uma cor lastimável. Leva-se à mesa ainda na sertã, para acabar de apurar. E não faz mal nenhum levar uma sertã à mesa:)  

A música é esta. Uma homenagem em Junho. 1500 vozes a dizer a poesia de Leonard Cohen. Muito lindo. Fica aqui.


8 comentários:

  1. Assusta-me pensar no mundo que os nossos pequenos vão herdar...
    Cohen, aligeira sempre este tipo de pensamento.
    Um beijo até ao abraço prometido ��

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    1. Por isso mesmo é que temos de emendar o mundo um bocadinho. Ou muito. Sim, a poesia e a beleza toda que pudermos/conseguirmos. Isso salva.

      Até ao nosso abraço que é já para a semana, linda Vera :)

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  2. Ao chegar aqui fico encantada com as imagens, as palavras, os sublinhados que nos levam a outros lugares. Ainda que as ilustrações nos deixem embevecidas, as palavras deixam-nos a reflectir, muito muito obrigada por partilhar!

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    1. E eu cheguei ao final do meu dia e fiquei encantada com a generosidade das suas palavras, Ana. Muito, muito obrigada a si.

      Um abraço quentinho de boa noite.

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  3. Custa acreditar que o ódio seja tanto que leve um país a escolher um homem assim para o dirigir. E o pior é que há muita gente a pensar assim. Em França, os nossos colegas polacos falaram-nos do que se está a viver também na Polónia. Já tinha lido sobre o assunto, mas ouvir os relatos, pela boca de um de nós, que lida diariamente com um regime ultraconservador, tem um peso muito grande. Vamos ver o rumo de França. Esperemos que os franceses tenham juízo e que o mundo não fique ainda mais feio.
    Resta-nos olhar para as coisas belas e tentar tornar o nosso mundo, e o daqueles que nos rodeiam, o mais bonito possível. Por falar em coisas bonitas, também ando a ler o livro da Guida :)

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Creio que não foi/é só uma questão de ódio. Mas a verdade é que o nosso tempo parece andar a acordar monstros que julgávamos adormecidos. A Polónia é uma geografia complicada. Um solo fértil para o mal. Ficou para a História por isso mesmo, lamentavelmente.
      Claro que sim. Tomar conta das coisas boas do mundo. E fazer acontecer mais. Isso faz uma diferença ínfima. Mas é qualquer coisa para lá de lamentar e de ter medo.

      Um beijo grande! Bom termos falado ontem, que tinha saudades:)

      Mar

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  4. Sempre tão cheias de poesia e tão acertadas as tuas palavras. É sempre um prazer ler-te.
    E sim, com tanto ódio, com tanta competitividade e individualismo deixemos falar o amor. E o fascínio pelas coisas puras. Talvez uma solução seja voltar à inocência. Conscientemente.
    Um beijinho grande querida Mar (este já do outro lado do Atlântico).

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    1. Que bom que sim, querida Ana. Fico feliz por gostares. Voltar à inocência conscientemente parece-me uma boa hipótese.

      Um beijo muito grande para ti também, aí tão longe. Que bom:) Vou adorar ver as tuas fotografias desses sítios todos.

      Mar

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