Como sempre, a Primavera. Não dá para não assinalar. Para ser indiferente. Mesmo que sim. Que até seja como sempre. Mas nunca é a mesma. Não isso. As flores podem brotar dos mesmos lugares, mas não são as mesmas flores das outras Primaveras que já aconteceram. São as flores da Primavera que está a acontecer agora. Lá fora. Perto. Longe. Por todo o lado. E há uma diferença entre a Primavera dos jardins e a Primavera dos muros, dos caminhos, dos campos. A Primavera dos jardins das pessoas é mais ou menos expectável. Como acontece no meu jardim, que é eu saber o lugar exacto onde (res)surgirão as frésias e os jacintos e os lírios. Ou olhar para as roseiras, para perceber em que dia de Maio ou de Junho é que haverá rosas outra vez. É assim. Sabemos que acontece. Cuidamos e velamos para que aconteça. Mas com as flores dos sítios não velados, há uma propriedade inqualificável de milagre. E, no fundo, é assim que sabemos mesmo que a Primavera está aí. E que ninguém poderá nada contra ela.
Porque, como sempre, o violeta breve de todas as pequenas flores irromperá nos musgos que cobrem os muros dos caminhos. Como sempre, os campos serão um arco-íris onde apetece deitar e olhar o azul infinito. Como sempre, o verde arranjará meio de ser ainda mais verde. Como sempre, a água do rio que determina o caminho que faço tantas e tantas vezes, correrá. Muito limpa. Inacreditavelmente limpa. Não consigo não sentir uma felicidade transbordante, mal vejo esta água. No primeiro dia desta Primavera, estava assim. Brilhava, de límpida. Nuns sítios, a água é calma e os patos movem-se naquele seu ritmo quieto. Mais à frente, ouve-se aquela espécie de música que a água sempre faz, quando segue o seu caminho. É assim. Há uma dimensão que vem de muito longe, nisto das estações do ano. Coisas religiosas. Coisas pagãs. Coisas místicas. Coisas. Muitas. Cruzadas, algumas. Inevitável que não acontecesse. Os calendários religiosos e pagãos interceptam-se. Tanto, que a partir de um certo ponto, não sabemos o que é que pertence a quê. Quem começou. O que determinou. O que precipitou.
O equinócio da Primavera aconteceu no dia 20 de Março. E, nesse dia, foi tal como sempre. Acordei cedo e pronto. Pouco depois, a mesma chávena de café com leite e a mesma torrada com manteiga dos outros dias todos. Seja onde for, o mesmo pequeno-almoço frugal e ansioso por começar o dia. O mesmo caminho a seguir o curso do rio e cada um dos pequenos milagres que o tornam irrepetível a cada passo. A tarde e os scones feitos desde sempre, com manteiga e compota de cerejas pouco doce. Uma vela acesa e os dois copos de vinho juntos, antes de a mesa ser posta para o jantar. Antes de tudo o mais que sempre acontece à mesa, os dois copos e uma vela acesa. Há rituais que são oxigénio. E os livros. Os livros também são ar. O da imagem é um ensaio filosófico. O meu ritmo de leitura tem obedecido a uma lógica que me é nova e tenho intercalado romances com ensaios. E é um dado novo porque sempre fui do género de dizer ao homem de Filosofia que bebe o vinho de um dos tais copos, que só gosto de Filosofia com a carne das personagens dos romances. Que a outra sempre me exasperou um bocadinho, por parecer especulação com fome de realidade. Até certo ponto, creio que sim. Mas não é a história toda. Não era. E então, ele isola filósofos que acha que não me vão encher a paciência e dá-me a ler os livros dele(s). Todos sublinhados, cheios das discussões e concordâncias que mantém a sós com as páginas todas. Nem uma, sem marcas. E como somos diferentes, nisso. Apesar dessa diferença, ele acertou em mais este livro que me deu a ler. Os superficiais, de Nicholas Carr. Um olhar que não é exterior, mesmo que o título pareça indicar isso. É ao contrário. Uma dissertação que flui como água, a tentar perceber os efeitos da internet na nossa atividade cerebral. Na nossa capacidade de memorização, na maneira como procuramos informação, na noção do tempo que (já) não dispensamos a procurar essa informação nas bibliotecas edificadas. Determinismo vs instrumentalismo. Se o meio nos controla ou se é ao contrário. Coisas assim. E mais.
A receita que deixo hoje e que fiz (mais uma vez) no primeiro dia desta Primavera que está a acontecer, é de um acompanhamento que é assim como a Primavera. Vibrante e luminoso, capaz de transformar as coisas. De as tornar mais, de as tornar melhores. Um bocadinho, pelo menos. É que há coisas no mundo que parecem não ter meio de ser melhores. E isso é sempre triste. Seja lá qual for a estação do ano, é sempre de uma tristeza que tem raiva dentro. Por todas as pessoas longe e perto que, de um momento para o outro, deixaram de poder viver mais uma Primavera no mundo.
Cenouras caramelizadas com tomilho
Quatro cenouras (médias) + 6 dentes de alho (inteiros e com a casca) + 3 colheres (de sopa) de vinho de arroz + 2 colheres (de sopa) de vinagre de arroz + sal, azeite e tomilho q.b.
Parte-se as cenouras em palitos e coloca-se numa assadeira. Por cima, os dentes de alho, o sal, o vinho, o vinagre e o azeite. Leva-se ao forno durante 20 a 25 minutos (a 200ºc nos primeiros 5 minutos e a 170ºc nos minutos seguintes). A meio do tempo, convém virar as cenouras, para que todas possam ficar ligeiramente tostadas. Se houver necessidade, uns salpicos de água. Retira-se, salpica-se com tomilho fresco e serve-se. Fica bem com carnes e com peixes e com o que quisermos.
A música tem a voz especial do Charles Bradley. E muita alma, como só a música soul.
Da outra vez, num desses muitos artigos que ensinam a ser-se mais produtivo, mais feliz, mais tonificado, mais inteligente, mais tudo, mas que no fundo só nos fazem perder o tempo de leitura que lhes estamos a dedicar. li que logo pela manhã antes de fazer qualquer coisa realmente produtiva devemos dedicar tempo a coisas que nos inspiram. Não resisto a estes artigos, como se aquelas listas de 1 a 10 me fossem tornar mais disciplinada ou aliviar-me a turbulência mental. Claro que esse ponto decidi levar a sério, já o seguinte 'estar focada durante 40 min' é coisa que ignorei convenientemente. Mas adiante, levei esse ponto a sério porque na realidade sempre o fiz inconscientemente e resulta. Esse é o principal motivo por que passo aqui logo pela manhã. És fascinante e inspiradora e é isso que este lugar transmite Fascínio e Inspiração.
ResponderEliminarPercebo o que dizes com "Não consigo não sentir uma felicidade transbordante" quando vês a constância desse curso de água. Acontece-me o mesmo quando observo os pequenos milagres da primavera. É como uma energia que sacode o corpo materializada pelas coisas mais simples, como uma abelha que pousa num narciso. Essa energia, essa felicidade transbordante nunca a consegui explicar e já desisti porque só se percebe quando é reconhecida pelo outro e aí são escusas as explicações.
Um abraço de alma pelo bem que lhe fazes sempre que viajo até aqui.
Linda Mafalda,
EliminarDevolvo-te as palavras. O fascínio e a inspiração também aqui deste lado, porque sinto o mesmo em relação a ti, ao teu lugar cheio de lugares. Uma maneira muito particular de tocar e de ler o mundo, a tua. E obrigada, que fico muito feliz.
Estamos sempre a ser confrontados com listas mais ou menos impossíveis. A mim, dão-me sempre a sensação de estar permanentemente a falhar. Fico-me pelas listas de supermercado e pelas de trabalho. Aí sim, sou pela disciplina. Exactamente porque me dá liberdade. Orientar e organizar coisas concretas liberta-me a alma. Mas percebo o carácter irresistível desses artigos. É como leres o horóscopo just in case:)
Que bom que entendes isso da água e da felicidade que parece não ter maneira de ser contida. Neste dia, a manhã estava particularmente luminosa. Os meus quilómetros de caminho foram ainda mais cheios da tal felicidade, porque parecia que havia coisas a acontecer a todo o momento. À tarde, a dádiva de chuva e de scones quentinhos com chá. Poder ter vivido isso é extraordinário. Uma energia boa, sim. A energia das coisas breves, efémeras, pequenas. O que quisermos.
Um abraço de alma para ti também pelo bem todo. Aqui e lá.
Mar
Assim é a primavera. Das coisas pequenas que nos fazem bem, e que não se sabe bem explicar como e o porquê. Aqui tão bem ditas pela minha amiga. Do mar e do rio. Um beijo muito grande,
ResponderEliminarligo logo, para saber quando havemos de nos encontrar. Fiz cookies hoje de manha bem cedo, para o A.)
da Pipinha
A Primavera voltou outra vez:) Cheia de todas as coisas pequenas que nos fazem bem. Obrigada, minha linda.
EliminarA ver se sim. Havemos de arranjar maneira. Quando gostamos, arranjamos tempo seja como for. Ainda não disse ao meu filho que vai receber cookies de presente, que depois não pára de falar nisso. Como adora essas tuas bolachas deliciosas:)
Um beijo.
Isa
Identifico-me com tudo, quase que lhe podia chamar meu, tão lindo, grata por partilhar, tenha uma doce e suave Páscoa
ResponderEliminarOlá Ana,
EliminarGrata eu. Pelas palavras generosas. Pelo carinho. Obrigada. A mesma Páscoa doce e suave para si.
Bom dia, Mar.
ResponderEliminarComo são lindas as imagens e as suas palavras. Como são belos os seus caminhos. Encontro sempre beleza e tranquilidade, neste seu cantinho. Obrigada.
Votos de uma Páscoa feliz e de uma boa e tranquila Primavera.
Bjs
Ana
Bom dia, Mar.
ResponderEliminarComo são lindas as imagens e as suas palavras. Como são belos os seus caminhos. Encontro sempre beleza e tranquilidade, neste seu cantinho. Obrigada.
Votos de uma Páscoa feliz e de uma boa e tranquila Primavera.
Bjs
Ana
Olá Ana,
EliminarMuito carinho para si. Obrigada pela sua maneira irrepetível de gostar. Também encontro sempre beleza e tranquilidade nestes seus lastros. Sim, muito bonitos, estes meus caminhos. E as imagens não conseguem dizê-lo. Bom assim.
Uma Páscoa e uma Primavera cheias de luz.
Um beijo.
Mar
Tão bonita a Primavera que sempre nos faz sonhar como crianças ao ver as primeiras flores. E volta sempre, como tudo o que é bonito na vida e nos volta a surpreender como na primeira vez.
ResponderEliminarObrigada pelas tuas palavras maravilhosas. :)
Um beijinho grande!*
Mesmo isso. Ela volta sempre. O nosso olhar até pode ir mudando em relação a tantas e tantas coisas. Mas creio que o encantamento da Primavera é um património sagrado com qualquer coisa de primeira vez.
EliminarObrigada a ti, querida Ana.
Um beijo grande e flores de Primavera para ti.
Mar
Obrigada por mais um texto maravilhoso e inspirador. Aqui venho sempre buscar a tranquilidade e a paz que tanto falta num mundo sempre a correr... E a serenidade que transmite é tão doce e revigorante como o renascer das flores em cada primavera. Neste recanto encontro sempre inspiração para imprimir a calma e doçura aos meus dias, quando quase não há tempo para reflectir na pressa de cada dia... Obrigada pela partilha.
ResponderEliminarObrigada, querida L. Muito. É tão bonito o que escreveu. E sinto-me afortunada por ser lida e entendida de uma maneira tão grata e tão luminosa. Por isso, mesmo que o dia seja de chuva, estas palavras são uma espécie de sol. Que possa continuar a merecer esse carinho. Será sinal de que este lugar continuará a existir e que a minha alma estará aqui, intacta.
EliminarDias bons para si.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarGostei deste post. A Primavera volta sempre. Mas, nisso como em tudo na vida, não devemos dar como garantido e deixar que nos passe ao lado.
Como sempre, as suas palavras são uma lição.
Da receita também gostei. Como já tinha dito em relação ao puré de ervilhas (que fiz ontem outra vez), acabo por nunca variar muito ou nada no acompanhamento.
Só tenho uma dúvida: desconheço em absoluto o vinho de arroz. Posso substituir por vinho branco ou é relativamente fácil de encontrar?
Um beijo do Algarve,
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarAinda bem que gostou. E obrigada por isso. Volta sempre, a Primavera. E, mesmo que sim, não é bom tê-la por certa. Nada, de resto. Corre mal e estraga a magia toda disto de andar por aqui, creio.
Encontra vinho de arroz no Apolónia aí perto de si. No Jumbo, no El Corte Inglès. O vinho branco, nesta receita, não garante aquela coisa deliciosa do efeito levemente caramelizado e que faz com que este acompanhamento tenha uma luz assim especial. E viver coisas especiais é uma espécie de direito nosso com a parte da escolha à mistura:)
Um beijo para si.
Mar
O comentário da L. diz tudo aquilo que, ao fim de 6 dias deste post, eu ainda lhe gostaria de dizer.
ResponderEliminar"... Aqui venho sempre buscar a tranquilidade e a paz que tanto (me) falta ... E a serenidade que transmite é tão doce e revigorante como o renascer das flores em cada primavera. Neste recanto encontro sempre inspiração para imprimir a calma e doçura aos meus dias ... Obrigada pela partilha."
Infelizmente, sempre encontrei nas palavras dos outros aquilo que eu gostaria ser capaz de dizer, e é por isso que são mesmo aquelas palavras que eu lhe diria, hoje que leio este post pela 3ª ou 4ª vez. Não me importo nunca de repetir os seus textos, é um sítio de paz e doçura, este.
Encontro tantas e tantas vezes nas palavras dos outros as palavras que nunca cheguei a dizer, que gostava de ter dito ou que nunca chegarei a dizer. E não há mal nenhum nisso. Como eu, que encontrei tanto, nestas palavras. Muito obrigada. Especialmente por essa referência à paz. A minha serenidade já foi muito posta à prova, continuará a ser posta à prova. Faz parte. Fui construindo uma espécie de blindagem. Acima de tudo, uma paixão ilimitada pela vida.
EliminarObrigada outra vez.
Mar
Olá Mar,
ResponderEliminarVim para dizer que já fiz estas receita. E esta fica com história para contar.
Estava a ponto de desistir, por não conseguir encontrar o vinho de arroz.
Afinal de contas, graças ás ligações do meu marido à cultura chinesa, tinha uma garrafa em casa, há quase 20 anos e sem saber o que era.
Depois de tanta insistência, quando apresentei a travessa ao "provador" de serviço, ele olhou para mim com uma cara que dizia: " tanto trabalho para me apresentares uma travessa cheia de cenouras?". Mas depois provou. E adorou! Fica muito bom de facto.
E agora que vi, cheirei e provei o vinho de arroz, percebo o que me disse acerca da diferença entre o vinho branco e o vinho de arroz.
Portanto, para além de ter provado algo fantástico, que se faz usando um ingrediente tão básico como as cenouras, também aprendi algo.
Obrigada então por tudo: pelas suas palavras (sempre) e pela partilha.
Um beijo do Algarve,
Sandra Martins
Olá Sandra,
EliminarLamento por essa dificuldade. Procuro não deixar receitas com ingredientes que não possam ser encontrados no supermercado mais próximo, até porque a minha comida obedece a esse preceito. Mas neste caso, só este vinho delicado é que resulta bem. Acredite que isolei as outras hipóteses com vinhos mais ou menos doces. Mas fico feliz por saber que a história acabou bem e que o seu provador adorou a tal travessa:) Toda a gente reage assim, quando as sirvo. Excepto o meu filho, que só gosta das cenouras cruas e que não as suporta cozinhadas. Nem nesta versão especial:(
Nada a agradecer. Obrigada a si.
Um beijo.
Mar
Adorei o texto Mar,
ResponderEliminarInfelizmente, há muito que não temos como melhorar... O Mundo cada vez nos entristece mais, a realidade é dura, muito dura e triste... Como referiste, como as vidas que deixam de poder viver, mais primaveras...
E se a Primavera nos encanta. No fundo, é a vida, os ciclos, a natureza, tudo a renascer. Como a tua foto tão bonita, da água límpida que corre. Era bom que ela levasse ou lavasse, tornasse bom, limpo, o que vai tão de mal, no nosso Mundo...
Por aqui, a Primavera anda muito tímida, mas recentemente estive em Portugal e vim de alma cheia, quase que veio entranhado em mim, o cheiro a flores. Tão bom...
Um beijinho grande e cheio de doçura, de pensamentos bons para ti, doce Mar :)
Obrigada, querida Cláudia. Tanto carinho, sempre. E sim, era bom que houvesse uma água limpa qualquer que levasse e que lavasse tantas coisas. Mas não há essa metáfora. Por isso é que, na nossa circunstância, mesmo que seja ínfima, temos de arranjar meio de limpar e de lavar o mais que pudermos. E manter a alma e o coração limpos.
EliminarA Primavera anda meio confusa:) Hoje esteve chuva e sol e granizo e muito vento. Seja o que for. É bom estar aqui. Ainda. Por enquanto.
Um beijo grande. Muitos pensamentos e muitas coisas boas para ti. Obrigada outra vez.
Mar
E Obrigada, esqueci-me desta palavra. Pela serenidade, pelo sorriso, com que saio daqui.
ResponderEliminarObrigada a ti:) Fico bem feliz.
EliminarA Primavera, sempre. Gosto do voltar das estações. E de rituais. A primeira refeição do dia. O copo de vinho na mesa da cozinha à luz quente de uma vela, antes do jantar, é sempre especial.
ResponderEliminarHá uns tempos também tenho dado por mim a intercalar leituras de natureza diferente de forma natural. Não sei que significa, mas sabe-me bem :-). Uma Primavera linda.
Olá Ana,
EliminarSim, sempre a Primavera. Um daqueles dados certos, no meio de tanta coisa incerta. As estações são um eterno retorno. Haja o que houver, sempre esses regressos.
Os nossos rituais são oxigénio. São um oxigénio irrepetível. Creio que não é preciso adivinhar sentidos e significados. Que nos saiba bem, O sentido deve ser esse, talvez.
Uma Primavera linda para si também. Obrigada.
Mar