O caminho.















Os nossos hábitos e os nossos rituais têm qualquer coisa de sagrado. E são quase sempre ínfimos, quase insignificantes. Mas deliciosamente bons de cumprir. Um dos meus hábitos mais persistentes é muito simples: caminhar. Sempre pelo mesmo caminho. Saio de casa, desço a calçada até ao rio e sigo sempre junto à água. Uns bons quilómetros disso. Não o faço por ser saudável. Pelo menos, não no sentido imediato e canónico do termo. Quem me lê/conhece bem, sabe que não tenho a mínima paciência para a ditadura light. Essa conversa toda causa-me um tédio enorme e dá-me sempre vontade de comer mais uma fatia de bolo de chocolate ou de beber mais um copo de vinho. Além do mais, nunca achei piada a ditaduras. São sempre tão bem-intencionadas, tão a pensar no nosso bem, tão higiénicas. Gosto de comida boa sem consciência pesada. Bebo sempre vinho ao jantar. E não gosto de excessos. Nunca gostei. Em nada. Porque o excesso transforma o bom em mau. Por isso, não é por regime, nem tem uma utilidade. É porque me faz bem. Não é só uma coisa de corpo. Está para lá desse visível tangível. O que acontece é que a ideia de fazermos um caminho é um sinal da nossa determinação. Ir de um ponto ao outro. E regressar. Enquanto fazemos o caminho, vamos pensando nas coisas. Respiramo-las ao ritmo dos nossos passos. Não se tem a sensação de se estar quieto, inerte, passivo. À espera que o mundo aconteça. Ele está à nossa volta. Nós fazemos parte dele. E isso tem qualquer coisa de avassalador. Como se cada passo fosse um sentido por si só. E, apesar de não ser um caminhar deambulatório, dá para reparar tanto nas coisas. E até para abrandar uns segundos, a pretexto das amoras que ainda há. Dá-me um gozo de criança, ir buscá-las às silvas. Uma das coisas que não me apetece transformar em coisa nenhuma, não obstante o meu gosto por cozinhar. Sabem-me bem é assim. Enquanto houver, umas pausas breves no meu caminho, para as amoras que me fazem feliz como se fosse pequena outra vez e não houvesse mal em nada nem em ninguém. 
O sítio onde vivo é muito lindo. E caminhá-lo dá mais densidade a essa noção. A verdade é que acabamos por passar todos os dias pelos mesmos lugares sem os olharmos verdadeiramente. Uma grande parte das vezes, a ansiar por outras geografias, por outros idiomas, por outros climas. E isso resulta quase sempre numa insatisfação inqualificável. Como se nunca estivéssemos bem no nosso lugar. Sempre à espera do que está para vir, para/por acontecer. Eu gosto muito deste meu lugar. É verde e tem muita água e horizonte. Em Setembro, é quando o caminho tem uma luz ainda mais bonita. É dourada, a luz que cai no mundo. Parece pingos de mel, a escorrer de figos doces. Gosto mais de fazer este caminho de manhã cedo. Nas alturas de trabalho, tem de ser mais ao final da tarde. Mas há uma coisa que umas pessoas (simpáticas) inventaram e que se chama domingo de manhã:) Domingo de manhã, logo a seguir ao café quente, o caminho junto à água. No regresso, comida desta. Previamente temperada, à espera de forno quente. Em menos de meia hora, um assado improvável. Tiras de entremeada no forno. Não grelhadas, que eu não tenho esse talento, como já expliquei neste post. Com tempero generoso e vinte e cinco minutos de fogo. Tenho de fazer sempre uns dois tabuleiros, que são tão boas de comer. E é mesmo isso que se quer, num domingo de manhã, depois de caminhar. Basta acompanhar com arroz de molho inglês, rebentos de bróculos e com o extra de feijão preto, tal como o aprendi no Brasil. Comida simples. Mesmo muito simples. 

NB: O ritual do caminho é muito bom de fazer, mas convém ter alguns cuidados prévios. Estes: escolher bem as sapatilhas e as meias, que devem ser adequadas, para não ficarmos com máculas nos pés (uso sempre estas) e uma garrafa de água, para a hidratação não ficar pelo caminho:) 

Tiras de entremeada no forno
NB: Não especifico quantidades, porque é o tipo de coisa que fica ao critério. 

Tiras de entremeada (sem osso e com equilíbrio entre gordura e carne) + alhos esmagados (com um pouco da casca) + folhas de louro (sem a nervura do meio) + sumo de laranja + vinho branco + sal e azeite q.b. 

Lava-se bem as tiras de entremeada, coloca-se num tabuleiro, bem alinhadas, para que fiquem bem douradas e para que tomem bem o tempero. A seguir, os ingredientes desse tempero. Todos os da sequência, bem distribuídos. Leva-se ao forno assim que se quiser, embora seja sempre melhor deixar estar algum tempo. Uma vez no forno, 210ºC nos primeiros 10 minutos e 150ºC nos 15 minutos a seguir. Nessa transição, hidrata-se a carne com os sucos do tabuleiro e depois mais uma vez, pouco antes de tirar do forno. Serve-se de imediato, que é assim que sabe melhor.  

E música lúcida. Um rock psicadélico, mas lúcido:) 


10 comentários:

  1. Olá Mar,

    Ultimamente não tenho comentado mas, todos os seus posts parecem ser um reflexo dos meus

    pensamentos e acções.

    Este também. Também eu adoro caminhar pelo prazer de o fazer, simplesmente.

    Caminhar na praia é algo absolutamente fantástico. Eu e meu marido também vamos depois do jantar,

    aqui onde moramos, não na praia.

    As fotografias são lindas! A recordação que tenho de São Pedro do Sul, da única vez que lá estive, é

    mesmo essa: muito verde e água. Muito bonito. Tenho que voltar para conhecer melhor.

    Esta receita parece-me excelente e será certamente para experimentar.

    Um beijo do Algarve, quase na mudança de estação e em época de retoma de rotinas (pois é, acabaram as férias),

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      A vida é assim mesmo: feita de intervalos e de silêncios. Percebi pelo seu email que tem havido essa convergência.

      É um hábito bom, caminhar. Vale por si. É curioso porque implica movimento, implica ir de um lugar a outro lugar, mas pode ser absolutamente sem propósito. No meu caso, também é um ritual partilhado.

      Obrigada por gostar das fotografias, apesar de ter feito o registo com telemóvel e um bocadinho à pressa. E sim, este meu sítio é muito bonito. Sinto-me grata por viver num lugar tão verde e tão perto da água.

      A ver se experimenta a receita, então. É demasiado simples para um blog, receio. Mas percebi pela reacção das pessoas que vieram cá a casa e a quem servi isto, que talvez pudesse ser uma daquelas coisas boas para quotidianos reais. E o dono do meu talho também ficou curioso, ficou à espera da receita aqui:)

      Bom regresso às suas rotinas de dias de trabalho. Um beijo para si.

      Mar

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  2. no post anterior a este iniciei um comentário que por uma circunstância que já não me recordo acabei por não terminar. falava algo entre a vontade que me deu de correr até à cozinha e um dos motivos por que este é o blog mais fascinante da minha lista: o prazer sem culpa.
    o prazer sem culpa espelhado naquelas maravilhosas fatias de bacon.
    o prazer sem culpa espelhado neste enorme tédio de que falas e que percebo tão bem porque o sinto amiúde.
    e agora um outro motivo pelo qual este é o cantinho mais fascinante da minha lista: esta rara combinação de escrever coisas certeiras com o tom mais doce.

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    1. Acabei de te escrever. Para agradecer lá, antes de agradecer aqui. E como eu fico feliz por essa vontade de ir a correr até à cozinha. É tão por aí, o espírito. Tão por aí.

      Isso da culpa é um dado tão característico dos nossos tempos. A começar pela comida. Os ingredientes malditos a que se declara guerra. A questão está sempre no excesso. E como os nossos tempos são excessivos e vertiginosos, a culpa acaba por ser um bom refúgio ou pretexto para fundamentalismos mais ou menos paternalistas. Creio eu que é muito isso. A culpa pode ser um lugar estranhamente confortável. Seja como for, passo essa parte.

      E sim, essas fatias de bacon são maravilhosas. Tenho de ter sempre, que o meu filho adora que eu as integre na comida. Eu faço-lhe a vontade, sem nenhuma espécie de culpa:)

      Obrigada. Mais uma vez.

      Mar

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  3. Muito lindas, as imagens das tuas caminhadas. Verde e água é uma combinação que só pode resultar em passeios que fazem bem à cabeça. Quanto à comida, concordo contigo. A mania do saudável parece abafar a boa comida. E há alimentos quase interditos hoje em dia. Tenho pensado nisso a propósito das natas. Há pessoas que simplesmente as baniram da alimentação. Como se contivessem veneno ou algo parecido. Os alimentos sem glúten também estão na moda. Tenho uma amiga celíaca que diz não perceber a mania que as pessoas têm de não comerem glúten mesmo sem terem a doença. Ela bem que gostaria! Tem muito bom aspeto, a tua entremeada. Nunca fiz no forno, mas fiquei com vontade :)

    Um beijo,

    Ilídia

    PS: Gosto muito de Tame Impala :)

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    1. Obrigada por gostares. E sim, caminhar toma conta da alma. Do corpo também, mas mais da alma.
      E sabes, a boa comida prevalece sobre essas ondas. Equilíbrio, sensatez e comida boa feita por nós.
      Essa cena do glúten é a que me faz mais confusão. Conheço o drama dessa intolerância de perto, por causa do filho de uma amiga. Sei o sofrimento que implica e acho só uma estupidez esta coisa de se andar a escolher coisas sem glúten quando não há necessidade.
      Esta entremeada é comidinha daquela, sabes?:) A ver se experimentas.
      Muito, de Tame Impala. Vi-os há uns dois anos e adorei. As músicas novas são ainda mais bonitas.

      Um beijo.

      Mar

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  4. Que imagens e que blogue bonito ! Muitos Parabéns ;)

    beijinho

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    1. Obrigada, Cláudia:) Muito. Um beijo para ti também.

      Mar

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  5. Que lindo caminho! Cores de nós fazer felizes. Também gosto muito de água e quase todos os fins de semana passeamos com o nosso cãozinho ao longo de um rio. É um passeio que trás sempre muita serenidade.
    O prato que nos trás liga bem com estes dias. Também detesto a ditadura light ;-)
    Um fim de semana feliz é um grande abraço,

    Ana

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  6. Olá Ana,

    Adoro o caminho que me leva ao longo do rio que passa em frente à minha casa. Muito especialmente agora, que o sol é mais clemente.
    E sim, é comida que dá aquele conforto, aquela alegria. Faço-a muitas vezes e as consequências são sempre boas. As ditaduras são sempre detestáveis. Mesmo que estejam cobertas de boas intenções:)

    Um fim-de-semana feliz para si também. E um abraço desses: grande. Obrigada pelo seu comentário.

    Mar

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