"Breve história do tempo".













E está. Foi ontem o dia em que chegou mesmo ao fim. As vidas são feitas de datas. Por mais que queiramos abstrair-nos, elas estão lá. Com o que os números têm de inapelável. E aquilo que as datas que guardamos nos vão ensinando, é que há um tempo certo. Especialmente para dizer, para escrever. Deixar passar em falso é só isso: deixar passar em falso. E eu gosto de guardar datas. De lhes cristalizar os significados. Interiormente. E exteriormente. Mesmo que eu não seja muito de discursos exteriores a propósito da maternidade. Nessas e em outras matérias, o meu princípio é o do sal e do açúcar: cada um sabe de si. 
Sou mãe de um rapaz há dez anos. Amo-o desde o primeiro átomo. E a história destes dez anos podia bem resumir-se a essa frase. Mas houve todas as outras. A minha gravidez muito leve e muito despreocupada. O meu silêncio, face aos léxicos todos que eu não entendia e que não queria dominar minimamente. Só queria saber se ele estava bem na minha barriga. Se o coração dele batia dentro do meu. A seguir, prometia ao meu médico que ia portar-me bem e comer menos batatas:) E, no dia em que ele nasceu, aquele medo. Ele era-me exterior sem o ser. A minha vida, tal como a conhecia, tinha ficado para trás. Eu estava tão cheia de uma felicidade que nunca tinha sentido e, ao mesmo tempo, tinha tanto medo. Sou a mais velha de quatro irmãos e achava que estava tudo controlado. Eu sabia tomar conta de bebés. Tinha cuidado dos meus irmãos, tinha trabalhado imenso com crianças. Estava tudo bem. Claro que sim. Nada disso. Nos detalhes exteriores, até que sim. Mas a maternidade ensinou-me que o único dado definitivo é mesmo o amor. E o amor é tão intuição. Este amor, muito especialmente. A intuição que fez com que eu percebesse que havia três coisas muito importantes a ensinar a um filho. E são assim, as tais três coisas. Pedir desculpa + Perdoar + Não ter medo de dizer que se ama. 
Na altura em que chega ao fim a escola primeira do meu filho, sei que essas três coisas estão lá. E, mesmo que não saiba bem porquê, creio que estará tudo certo. Haja o que houver, gosto de pensar que o meu rapaz crescerá como um homem com a nobreza necessária para pedir desculpa e para perdoar. E que o amor não será algo que tema ou que cale. Diz-me muitas vezes aquele amo-te muito delicioso, mesmo que não me abrace e que não me beije quando vou buscá-lo à escola. Só no carro e já longe dos olhares dos outros. Eu respeito e aceito isso. Há coisas que devemos procurar mudar e há outras que devemos só aceitar. 
Para memória futura, fica hoje uma das comidas de que mais gosta. Não dá para reproduzir a felicidade dele, quando lhe digo que vou fazer lasagna. Creio que é o género de alegria que só se sente realmente quando somos crianças. E aqui, também a minha intuição diz que o mais que puder, de memórias destas. Que eu seja capaz de lhe dar o mais que puder destas e de outras alegrias. 
Fica a receita de uma lasagna muito maternal. E registos dele e das coisas dele, tal como é agora. No tempo que é este. Ele e o pai. Os dois sem rosto. Mas eles. O livro da Agatha Christie que está a ler, oferecido no último dia de aulas. A memória da primeira vez que andou de mota. Não com o pai, que há anos que fechou esse capítulo. Mas com o padrinho. O filme que vê vezes sem conta, por estes dias. O relevo da folha que desenhou e que colou na porta de entrada de casa, para quando eu chegasse. E a cola com gelo e limão que mereceu beber, enquanto se deliciava com uma das comidas que o faz (muito) feliz. Esta. 

Lasagna

6 folhas de lasagna (uso massa fresca) + 800 g de carne de vitela (escolho sempre a peça que quero e peço para picar) + 1 cebola (média) + 3 dentes de alho (picados) + metade de um pimento verde + 1 folha de louro (sem a nervura do meio) + 1 talo de aipo + 1 copo de vinho branco + 1 lata de tomate em pedaços + 2 bolas de queijo mozzarella + água, azeite, sal, tomate-cereja, orégãos e manjericão q.b. 

Para o béchamel
meio litro de leite + 1 colher (de sopa) de manteiga + Maizena (uso Express), sal e pimenta preta q.b. 

Leva-se ao lume a cebola picada, com os alhos, o aipo, o pimento, o louro e um fio de azeite. Assim que a cebola ficar translúcida, acrescenta-se o vinho e deixa-se evaporar um pouco. A seguir, junta-se a carne picada, o tomate, sal, orégãos e um pouco de água. Mexe-se e deixa-se cozinhar durante dez minutos. Retira-se do lume, prova-se, rectifica-se os temperos se necessário e reserva-se. Entretanto, faz-se o béchamel: todos os ingredientes excepto a Maizena, ao lume. Assim que começar a levantar fervura, reduz-se o lume e vai acrescentando a Maizena, até ficar creme, mexendo sempre. Retira-se do lume e reserva-se. 
Depois, é começar a parte das camadas. A base é com um pouco do refogado da carne e com um bocadinho de béchamel. Este passo é importante, para que a base da lasagna não queime nem fique agarrada ao tabuleiro. Depois, duas folhas de lasagna. Mais carne e mais béchamel e um pouco de mozzarella. Repete-se este processo mais duas vezes, mas de maneira a terminar com o refogado e com o béchamel. Por cima, todo o mozzarella que quisermos. Vai ao forno a 190ºC, durante 20 minutos. Cinco minutos antes de terminar o tempo de forno, retira-se e salpica-se com tomates-cereja cortados em quartos e com folhas de manjericão, rasgadas com as mãos. Vai ao forno outra vez, para apurar tudo. E serve-se. Quentinha e com mais folhas de manjericão. Alegria fácil e de comer:) 

A música só podia ser dos Green Day. A banda preferida do meu filho. A banda do primeiro concerto dele, aos oito anos. A banda dos rapazes vestidos de preto que lhe deram uma memória linda, bem antes desse primeiro concerto. Jesus of Suburbia. A onda punk do meu filho que gosta muito dos Green Day, dos heróis da Marvel Comics, do Stephen Hawking, dos compactos da Teoria do Big Bang e muito, muito, da lasagna feita pela mãe. Há coisas que não dá mesmo para rasurar. 

13 comentários:

  1. Olá Mar,

    Fiquei tão emocionada ao ler as suas palavras que tive que fechar o blogue, fazer outra coisa e voltar para deixar o comentário.

    O seu amor de mãe e a homenagem ao homem em que o seu filho se está a tornar, sente-se em cada ponto, cada vírgula do texto.

    Tocou-me bastante as três coisas que diz querer ensinar-lhe, principalmente o perdoar. Creio que me repito quando digo que é algo que tenho que aprender.

    Mais uma vez, nos últimos dias, tenho chegado a essa conclusão: andar com "pedras" às costas é desperdiçar tempo e energia para nada.

    O seu filho surpreendeu-me mais uma vez. Também eu adoro os livros da Agatha Chistie! E todas as séries baseadas nos livros dela: Poirot, Miss Marple.

    Quanto ao filme já tínhamos falado sobre isso.

    Também gosto muito de lasagna e já não faço há mesmo muito tempo. Concordo plenamente consigo: é com coisas simples, satisfazendo este tipo de pedidos que lhe vai dando felicidade e memórias para o futuro. Acabei de dizer o mesmo à minha irmã.

    Quero fazer o mesmo com os meus sobrinhos/afilhados.

    E achei imensa piada à primeira vez que andou de mota! O meu marido fez ao contrário do seu: comprou mota agora, com 48 anos.

    Imaginei o nosso afilhado, que tem nove anos, assim de capacete e agarrado ao padrinho, para o "baptismo" de mota!

    Um beijo do Algarve, em meio de semana

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Muito obrigada. Ele é um rapaz bom, curioso e tem um sentido de disciplina que interpreto como precioso. Seja o que for, terminou uma fase que é muito importante. Creio que me arrependeria de não a ter escrito.
      Perdoar, pedir perdão, são exercícios libertadores. Creio que acabamos por tornar esses processos mais complicados do que são realmente. Num homem, creio que é ainda mais importante essa dupla capacidade. As mulheres têm um dom ancestral para. Não sei dizer bem, mas é como se não fosse necessária a aprendizagem.
      Ele está a descobrir Agatha Christie. Vai perguntando os significados das palavras. O que é "peremptoriamente". O que é "um olhar grave". E "austero". Coisas que fazem parte das memórias.
      O meu marido teve um acidente grave, há muitos anos. Foi uma decisão inapelável, a dele. Só há fotografias (lindas) dessa fase que encantam o meu filho. Coisas destas, só com o padrinho. Faz parte.

      E sim. Felicidade e boas memórias para os seus sobrinhos. Muito disso.

      Um beijo para si.

      Mar

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  2. Que crescido que ele está ;) E com esta etapa (bem) superada, deduzo. Que bom. Parabéns a todos por tudo isso. Pela vossa relação, pelos valores, pela alegria simples das coisas pequenas nele também.Um beijo. Longe.
    Babette

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    1. Está crescido, sim. Estas datas parecem lembrar-nos isso. Finais de/inícios de. Coisas assim. Correu bem. E ele mereceu. Esse final, a cola fresca do jantar de ontem e comida feita com vontade só de o fazer feliz.
      Obrigada a ti.

      Um beijo.

      Mar

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  3. 'Amo-o desde o primeiro átomo'. Que frase tão bela. E tão verdadeira, como as mães sabem. Um abraço carinhoso.

    Ana Vasconcelos (temos falado no Facebook)

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    1. Olá Ana,

      O meu filho adorou essa frase, quando leu o texto, antes de eu o deixar aqui. Valeu-me um beijo-abraço. E agora estas suas palavras. Obrigada. Por elas. E pelas outras todas que tem deixado no Facebook.

      Um abraço cheio de carinho para si.

      Mar

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  4. Olá, Mar.

    O teu menino já acabou a primária :) E já lê Agatha Christie e aprecia filmes de gente crescida :) Parabéns ao António e a vocês, que lhe passaram o mais importante de tudo. Ainda ontem, em conversa com o Paulo, a propósito dos 7 anos do Manel, dizíamos que o mais importante é que ele seja boa pessoa. E acho que sim. Que os nossos meninos se estão a tornar em homens bons :)
    Parabéns ao António e a ti, pelo texto lindo e cheio de ternura a propósito desta etapa tão importante do teu filho.

    Um beijo,

    Ilídia

    PS: A primeira foto é linda. Diz tudo :)

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    1. Sim. Tivemos a nossa última conversa com a professora dele na terça-feira. Foi um bocadinho comovente. E ela fez um trabalho fabuloso com os alunos. Muita gratidão. Nossa. E dele.
      Está a começar com a Agatha Christie. E a gostar:) Acertámos no presente de final de escola primária, pelos vistos.
      Ser um homem bom. Nem mais. O excepcional, o raro parece ser isso. Tantos homens vulgarmente maus. Até a maldade carece de sofisticação.
      Ele é, acima de tudo, um miúdo feliz e muito amado. Sou um bocadinho implacável com ele em algumas coisas, mas ele percebe o sentido. E mesmo nesses momentos, há sempre comidinha da mãe:)
      Também gosto muito dessa fotografia. Ele e o Vasco. Tão parecidos um com o outro. Tão juntos, daquela maneira só deles.

      Obrigada, Ilídia. Um beijo.

      Mar

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  5. Bom dia, Mar.
    Hoje, não consigo comentar este texto. Estou comovida. A beleza das palavras deixam adivinhar a imensidão do amor e da admiração que nutre pelo seu filho.
    Como eu gostei de ler a dedicatória do livro (também costumo fazer assim) e de ver a referência a "escola primária".
    A lasanha tem óptimo aspecto, mas hoje a atenção vai inteirinha para as palavras e para as imagens.
    Parabéns para o António e para os pais.
    Bjs
    Ana

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    1. Olá Ana,

      Amo-o como as mães amam os filhos. E sim, admiro-o. Curioso, que nunca tinha pensado nesses termos. Admirar uma criança parece-me bem. Admirar o meu filho. Trata-se disso. Fez uma escola primária muito bonita e muito plena. E sim, "escola primária". Quisemos e gostamos assim.
      Todos os nossos livros têm o lugar e a data. As datas especiais têm mais coordenadas. Esta em especial.

      Obrigada, Ana. O seu comentário é muito lindo. Agradecemos os três.

      Mar

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  6. Mar,

    Muito comovente e sentido este seu texto sobre amar o seu filho.
    Também um filho e reconheço tanto do que escreveu sobre o que se sente.
    Independentemente dos caminhos, mais ou menos duros e tortuosos, no fim de cada um deles o amor. Sempre o amor. Isso foi o que quis ensinar ao meu, o amor e a liberdade de ser. Creio que o perdão e a noção do outro estão dentro dessas premissas de ser amado e livre.
    Hoje tem 18 anos, é músico e está a estudar em Londres. Estuda e trabalha. Está cheio de bem e de sonhos. Por isso lutei e luto pelo mundo. Pela vida.

    Fico sempre muito feliz quando sinto (e nesta sua casa sinto sempre), que não estou só. Obrigada.
    Um beijinho,

    Jo


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    1. Olá Jo,

      Só hoje vi o seu comentário. E tão lindo, que é. A dizer a ideia maior, nisto dos filhos. A do amor. É esse o meu entendimento, também. Exactamente por sentir que o amor dá a margem necessária, a tal liberdade de ser de que falou. A minha base é muito intuitiva. De vez em quando, tenho receio de estar a fazer tudo ao contrário. As mães todas devem sentir isso, creio.
      Obrigada a si. Por isso de sentir que não está só, aqui. Também sinto isso, quando a leio. Que há uma noção partilhada do mundo e das suas perplexidades e exaltações.

      Um beijo para si.

      Mar

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  7. 'também tenho um filho', corrijo :-)

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