Passar a limpo.















Quando corre mal e depois corre bem, é como se pudéssemos passar a vida a limpo. Não a vida inteira, entenda-se. Partes infinitesimais dela, feitas pigmentos de tinta. As rasuras. As hesitações. As translineações feitas no limite, a ver se há mais um bocadinho de linha. Sempre gostei desta expressão. Passar a limpo. Ocorreu-me há uns dias que não a usava há anos. E era tão quotidiana, nos tempos de escola. A folha nova e lisa. Aquele respirar prévio, antes de começar a passar o texto para as linhas direitas de uma folha que nos dava a hipótese de começar tudo a partir de um início já desenhado. Só que um início melhor. Passar a limpo é querer que corra bem, no fundo. Creio que é isso que significa mesmo. 
Como esta receita, que parecia que não tinha meio de acontecer. Eu fazia tudo como fazia com todos os meus outros bolos de iogurte, só que não corria bem. Fiz três bolos errados que não tiveram hipótese de ser salvos. Deixei passar tempo. Fiquei triste e deixei passar tempo. Mas estava-me na ideia. Há uns dias, e sem mais, ocorreu-me o que é que não estaria a funcionar. E foi como se tivesse ali uma folha nova e lisa, onde pudesse passar a limpo o que tinha ficado para trás de desilusão. 
Resultou naquilo que tinha antecipado. Levou tempo e implicou respostas erradas, mas acabou por ser tal como eu o tinha perspectivado. E é tão de conciliar dimensões diferentes, este bolo. Ao acordar, com o primeiro café do dia. E depois do jantar, com doce de ovos e com a frescura de um vinho de gelo que é uma das maneiras gostadas de acompanhar aqueles momentos finais e doces. 


Bolo de iogurte com cenouras e com laranja
NB: Em vez dos 4 ovos inteiros, esta variação tem 5, por causa do acrescento mais substancial das cenouras. Não resulta na minha versão habitual bolo de iogurte de tabuleiro. Só em formas pequenas e nas outras normais de bolos à fatia. 

5 ovos inteiros + 1 iogurte natural + 4 cenouras (médias) + sumo e raspa de 1 laranja + 4 copos (de iogurte) de açúcar + 4 copos (de iogurte) de farinha + 2 copos (de iogurte) de óleo + 1 copo ( de iogurte) de coco. 

Corta-se as cenouras às rodelas e coloca-se num liquidificador, acrescentando depois o óleo e o sumo de laranja. Reduz-se a creme e junta-se depois aos outros ingredientes todos. A partir daí, é só bater tudo junto, durante 5 minutos. Coloca-se numa forma e leva-se ao forno durante 50 minutos, a 180ºc, tendo o cuidado de reduzir o lume para os 160ºc, nos últimos 5 minutos de forno. Se quisermos, podemos reservar uma parte da massa para fazer bolos pequeninos. Nesse caso, basta 20 minutos de forno. 

Para o doce de ovos, é simples: 6 gemas + 6 colheres (de sopa) de água + 6 colheres (de sopa) de açúcar. Leva-se a água e o açúcar ao lume. Assim que começar a ferver, reduz-se o lume e deixa-se estar cinco minutos. Entretanto, mexe-se as gemas. Acrescenta-se depois à calda de açúcar, tendo o cuidado de mexer continuamente, à medida que forem sendo adicionadas em fio. Leva-se ao lume, mexendo continuamente, até ficar com a consistência mais cremosa e menos líquida. Retira-se do lume, passa-se por um coador e deixa-se arrefecer. 

A música é esta. A minha preferida dos Blur. 

11 comentários:

  1. Querida Mar,

    A diferença que um ovo e uma forma podem fazer?!
    A fórmula perfeita levou tempo, observação e empenho, mas o resultado transparece perfeição. Acontece com os bolos e acontece com a vida, muitas vezes.
    Gostei de tudo, sobretudo das palavras perfeitas para chegar aqui.
    Um abraço,
    Guida

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    1. Olá Guida,

      Mesmo assim. E eu demorei tempo, até chegar a esse ponto. E sim, por mais simples que possa parecer, creio que este e outros processos acabam por nos lembrar muitas dimensões das nossas vidas. Com o adquirido de que nem sempre vale a pena, a persistência. Mas nisto dos bolos é mesmo mais simples do que na vida lá de fora. Algo que me ocorre sempre, também.

      Obrigada. Lindo, isso das palavras para chegar até aqui.

      Outro abraço para ti.

      Mar

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  2. Bom dia, Mar.
    Depois de vir há já algum tempo a este lugar, ainda fico surpreendida com a beleza e profundidade dos textos. Admiro a capacidade de reflexão e introspeção que consegue realizar a partir do acto de cozinhar. Realmente, uma cozinha pode muito bem ser uma espécie de laboratório de vida, e como num laboratório, e como na vida, usa-se a estratégia da tentativa e erro, ou vice-versa e pelo meio é conveniente algum exercício de reflexão. E isso a Mar faz de uma forma tão poética e com as palavras certas, sem necessidade de passar a limpo.
    As imagens rivalizam com as palavras.

    Fiz a massa de bacalhau com ervilhas de quebrar e ovos escalfados. Divinal. Obrigada.
    Continuação de uma boa semana.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Se soubesse como gostei de a ler. Não é por narcisismo nem nada que se pareça, que não sou mesmo dada a coisas dessas. Além do mais, depois de um episódio complicado que ainda não arranjei meio de ultrapassar, tenho uma relação muito difícil com as coisas que escrevo. Não falo nisso, porque me faz mal. Mas é para dar o contexto possível. Para que saiba, aí desse lado, que estes seus comentários me permitem um bocadinho de margem para não ser tão inclemente, face ao que escrevo. E para dizer obrigada.
      A cozinha é um espaço muito maior do que se pensa. Creio que é dado a leituras apressadas, tal como acontece com muitas outras coisas. Mas é um lugar maior. De reflexão, sim. Gosto de estar a sós, enquanto faço a minha comida. Há música, há as coisas e é inevitável pensá-las.
      E como eu gosto de saber que essa massa foi divinal para si. Obrigada também por isso.

      Uma boa semana para si também. Um beijo.

      Mar

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  3. Bom dia, Mar.
    Depois de vir há já algum tempo a este lugar, ainda fico surpreendida com a beleza e profundidade dos textos. Admiro a capacidade de reflexão e introspeção que consegue realizar a partir do acto de cozinhar. Realmente, uma cozinha pode muito bem ser uma espécie de laboratório de vida, e como num laboratório, e como na vida, usa-se a estratégia da tentativa e erro, ou vice-versa e pelo meio é conveniente algum exercício de reflexão. E isso a Mar faz de uma forma tão poética e com as palavras certas, sem necessidade de passar a limpo.
    As imagens rivalizam com as palavras.

    Fiz a massa de bacalhau com ervilhas de quebrar e ovos escalfados. Divinal. Obrigada.
    Continuação de uma boa semana.
    Bjs
    Ana

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  4. Mais uma receita que levo daqui. És generosa. Partilhas quando atinges o tal ponto certo. Passado a limpo. Usava Tanto essa expressão. E praticava - a tanto ;)
    Mais beleza no que fazes fazes e no que dizes. E um bolo de cenoura com laranja ;)
    Babette

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    1. Que bom que sim:) E obrigada. Sentido de honestidade, creio. Já viste o que seria, caso tivesse partilhado uma das experiências más? Nem dormia bem.
      Passar a limpo é expressão de escola primária. Estranhamente, na faculdade, gostava dos meus apontamentos esparsos, cheios de anotações-satélite. Mantinha-os tal como aconteciam nas aulas.
      Este bolo é precioso. Valeu a pena a persistência:)

      Um beijo.

      Mar

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  5. Olá Mar,

    Já sabe o que penso dos seus textos e da sua comida mas, achei este post particularmente bonito.

    "Passar a limpo" pressupõe novas possibilidades, poder errar, voltar atrás, emendar.

    Na cozinha e noutras dimensões da nossa vida. Conceitos que eu tenho que interiorizar porque considero um erro uma "porta fechada". E, se pensarmos bem, é ao contrário.

    Aqui está o resultado disso: errar, aprender e, por fim, triunfar!

    Acho que este bolo será para experimentar (também).

    A sequência de fotografias está muito bonita. Gostei do pormenor das flores pequeninas. E das tacinhas em prata. Como sempre a Mar mistura e remistura e fica sempre bem!

    Um beijo do Algarve, quase de fim - de - semana,

    Sandra Martins

    PS - Espero que não se importe com a pergunta mas, tem sabido da Ilídia? Está tudo bem com ela?

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    1. Olá Sandra,

      Obrigada. Sim. Tem essas coisas dentro, a expressão. Isso das portas é mais complicado, creio. Umas fecham-se por si, sem darmos conta. Outras são-nos fechadas. Esse imaginário dava para umas quantas elaborações mentais:)
      Errei bastante, por causa deste bolo. E lamentei muito. Ainda bem que o resultado acabou por ser assim.
      As flores pequeninas são de laranjeira. Só se sente esse aroma, agora. Fui buscar umas quantas lá fora, que faziam sentido. Com este bolo. Com uma das mesas destes dias. Uma das mesas com essas misturas todas de que falou:)

      Não tenho falado com a Ilídia. Mas da última vez que sim, as coisas estavam a desenhar-se bem.

      Um beijo para si.

      Mar

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  6. Tão lindas ! Tenho te visto tão a correr, estes últimos tempos, sem vagar para te escrever, e dizer sempre como são acolhedoras as tuas fotografias e os teus textos. Sobre as coisas mais simples. As mais bonitas. A tua massa de bacalhau e ovos escalfados. Os teus bolos. As flores pequeninas e intensamente cheirosas.
    Deixo-te um beijo grande ! já de maio.
    Pipinha

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    1. Obrigada:) As vidas são muito assim. Sem vagar. Mas há sempre um lugar qualquer que nos acolhe.
      O menos pode ser mais. Partilhamos esse espírito. O elementar é tão inteiro, tão bonito. Como essa massa. Também me lembrei de ti, que acho que gostavas dessa comida feita pela minha mãe.

      Outro beijo grande para ti. Já de Maio.

      Isa

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