Exercício de celebração.













Fazer comida tem qualquer coisa de celebração. É silenciosa, do género de não fazer barulho. Em primeiro lugar, celebrar os ingredientes. Isso, em primeiro lugar. O que não deixa de ser curioso é que esse exercício tem quase sempre uma simplicidade dentro que contraria aqueles discursos que procuram torná-lo um domínio inacessível, científico, hermético. Humanizando as coisas um bocadinho, é como aquele contraste desconcertante entre a beleza esforçada, trabalhada, sujeita a horas de preparação e, no lado oposto a isso tudo, a beleza de cara lavada, que solta os cabelos, veste umas calças justas e calça umas sapatilhas.
É essa a imagem que me ocorre, sempre que faço peixes no forno. Penso que a intervenção deve ser mínima. Garantida a base de celebração, o resto acontecerá por si e estará bem. Assim, ao peixe que mais me apetecer no momento e que estiver disponível, basta juntar umas pedras de sal, umas gotas de limão, aipo e azeite. Tão pouco que resulta em tanto. Vai ao forno inteiro, para ir à mesa inteiro. Depois, é só fazer como vejo tantas vezes, nos restaurantes onde esta matéria é respeitada. Retiro a pele com cuidado e vou servindo pedaços que dão valor à ordem natural da fisiologia dos peixes. Lascas generosas, colocadas no prato com cuidado. Por cima, os sucos deliciosos que estarão no tabuleiro. O sabor dos peixes bem harmonizado com a espécie de magia que acontece, silenciosa, no forno. 
Com (mais) uma receita essencial, uma mesa que também não precisou de grande intervenção. O azul vibrante da toalha, o azul clássico da minha loiça de sempre, os talheres polidos e os cristais cinzelados de família e a primeira hidrângea do ano. Uma celebração por si só, a primeira hidrângea de cada ano, ali no jardim. E os frutos, em toda a sua beleza transitória. É o tempo das cerejas. Outra vez, o tempo das cerejas. E também elas carecem tão pouco de intervenção. Basta água fresca e uma taça de vidro, para que não se perca nada da beleza que acontece em pleno, por esta altura do ano. 

Pargo no forno 
NB: O peixe destas imagens é pargo, mas faço esta mesma receita com garoupa e com corvina e o resultado é sempre o mesmo: muito bom:)

1 pargo legítimo (com cerca de 1,200 kg) + 1 talo de aipo + sumo de metade de um limão + 10 tomates-cereja + meio copo de água + sal, azeite e coentros q.b. 

Na peixaria, pede-se para que o peixe seja arranjado para assar, sem nenhum golpe. Este detalhe é importante, porque esses golpes secam o interior do peixe e não acrescentam nada, ao contrário do que se pensa. Antes de temperar, passa-se por água bem fria. Coloca-se num tabuleiro de ir ao forno e que possa depois ir à mesa. A seguir, umas pedras de sal, o sumo de limão e um fio de azeite. Junto do peixe, um talo de aipo, dividido ao meio e depois cortado em pedaços. Vai ao forno durante 45 minutos, a 180ºC. Meia hora depois de estar no forno, retira-se, hidrata-se com água, salpica-se com coentros picados e coloca-se à volta os tomates-cereja, abertos ao meio e com o interior virado para cima, para assarem melhor. Volta ao forno durante os 15 minutos restantes, a 160ºC. 
Fica maravilhoso com um puré de batata, maçã e aipo de que deixarei receita por estes dias. 

A música é dos Tame Impala. Let it happen. Uma resignação com qualquer coisa de acidez de que gosto muito. 

9 comentários:

  1. Querida Mar,

    Não sei do que gosto mais neste post. Se do texto, que é um elogio à simplicidade e autenticidade da comida, se do aspeto suculento do teu pargo, se da fusão do azul do teu prato e da tua toalha. Tudo tão bonito!
    Também gosto muito da simplicidade dos pratos de peixe. Muitas vezes, faço-os ao sal, com lascas assim parecidas com essas.
    As minhas hidrângeas (chamo-lhes hortênsias, como sabes :) também estão em flor. Tão bonitos os jardins nesta altura. Este fim de semana andei a fotografar flores. A minha estrelícia gigante, depois de anos de esterilidade, deu a primeira flor. Mesmo de celebrar. Só falta a magnólia deixar-se contagiar ;)

    Um beijo grande,

    Ilídia

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    1. Que bom ler-te outra vez, a meio do intervalo que concedeste ao teu lugar. A primeira coisa a dizer é essa. E a seguir, é dizer obrigada. Uma alegria enorme, ser lida dessa maneira franca. No espírito da comida de que gostamos. Sem histórias.
      E os pratos de peixe têm mesmo essa alma. Quase não precisam de nós. Basta que sejam frescos, de mar. Hoje fiz garoupa para o jantar. Assim simples, também.
      Alegria por essa estrelícia, então. Às vezes é assim. Há flores que precisam de mais persistência do que outras. E vais ver que sim, que a magnólia vai entrar nesse espírito:)

      Obrigada outra vez. Um beijo grande para ti. Dias lindos com flores e tudo o mais que te fizer bem.

      Mar

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  2. Boa tarde, Mar.
    Venho aqui todos os dias. Com a desculpa de vir à procura de receitas novas, venho à procura da beleza das palavras e das imagens que aqui habitam. Tão verdadeiras e tão bonitas as suas palavras! dão alma a pensamentos tão bonitos e apaziguadores. São palavras e imagens de celebração. Celebração da vida.
    Com as receitas da Mar, descobri o gosto do/pelo aipo, por isso levo a simplicidade da receita. E levo, também, a beleza e quietude desta mesa, dos seu azuis, da brancura da primeira hidrângea e o vermelho carregado das cerejas. Obrigada.
    Continuação de uma boa semana.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Tão lindo, isso de dizer que aqui vem com essa cadência. Agradeço uma e outra vez. E possa eu merecer sempre o carinho dessas suas visitas. Este lugar é para deixar coisas de que se possa gostar. É para/por isso. E sim, sempre com essa verdade de que falou. Uma lógica solar, a da verdade.
      Eu uso aipo em (quase) tudo:) É um facto. Mas também é um facto que fica bem em (quase) tudo. Gosto de saber que descobriu esse gosto neste lugar. Foi uma mesa tranquila, de celebração prolongada. A vida assim o pedia. Obrigada a si.

      Uma semana linda.

      Mar

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  3. Boa tarde, Mar.
    Venho aqui todos os dias. Com a desculpa de vir à procura de receitas novas, venho à procura da beleza das palavras e das imagens que aqui habitam. Tão verdadeiras e tão bonitas as suas palavras! dão alma a pensamentos tão bonitos e apaziguadores. São palavras e imagens de celebração. Celebração da vida.
    Com as receitas da Mar, descobri o gosto do/pelo aipo, por isso levo a simplicidade da receita. E levo, também, a beleza e quietude desta mesa, dos seu azuis, da brancura da primeira hidrângea e o vermelho carregado das cerejas. Obrigada.
    Continuação de uma boa semana.
    Bjs
    Ana

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  4. Partilho as palavras da Ilidia...
    Lindos os azuis, a Hortênsia branca, as palavras. O peixe suculento suculento e tão simples e o acompanhamento que é muito original. A celebração da vida através das tuas mãos. E o silêncio que é preciso...
    Um beijo
    Babette

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    1. Obrigada. Há coisas que parecem fazer sentido, creio. A servirem de palco para o mais importante: a comida. Assim com essa simplicidade suculenta. Mérito do mar, dos peixes. Este puré é uma delícia aveludada. Tanto, que parece valer por si. A vida e as suas celebrações. A vida e os seus silêncios necessários.

      Um beijo.

      Mar

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  5. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o azul da toalha e da louça que tanto gosto. A seguir, a simplicidade como cozinha o peixe. Também gosto de o cozinhar de forma simples. Nunca coloquei aipo mas será uma experiência futura.
    Aprecio muito a sua forma de celebrar a vida!
    Graça

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    1. Olá Graça,

      Esta toalha teve esse efeito, quando a vi pela primeira vez. O "efeito azul", tal como com esta loiça que parece ficar bem com tudo.
      Creio que o peixe não pede grandes elaborações. Basta ser muito fresco, que o resto lá se orienta. O aipo é um tempero mágico. Imperceptível, tal como acontece com a magia que nos encanta.
      Celebro, sim. Muito. Sou grata. Com tudo o que a vida tem de difícil, adoro-a:)

      Obrigada.

      Mar

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