Submissão.













As coisas interceptam-se, cruzam-se, misturam-se umas com as outras. Os livros com os vinhos mais a comida e a música e uma imagem qualquer que nos fica no olhar. Creio que não dá para ser de outra maneira.
Estava à espera deste livro. Pela escrita sanguínea do Michel Houellebecq, em primeiro lugar. Há qualquer coisa de intravenoso, na (boa) literatura. Alguns escritores ficam-nos, como se fossem seiva. Outros não, não passam da epiderme. A vida é assim mesmo. Impiedosamente (in)justa. Porque aquilo que sinto, face a livros como este, é que nos acrescentam razões para seguir. Página por página, no mais imediato dos sentidos desse "seguir". Mas também no outro mais interior. Que os nossos escritores escrevam mais. Que haja mais livros deles. Uma boa razão para seguir. Acontece-me com o Philip Roth, com o Ian McEwan. A muitos outros, resta revisitar, embora me falte demasiados livros, para chegar a essa fase de andar a reler. Isso é mais para os académicos a sério ou para os que têm a sorte de poder fazer da leitura uma ascese e que podem repousar no mais ilimitado dos paraísos: uma biblioteca.
O livro chama-se Submissão, mas convoca, invectiva, discute, coloca cenários políticos e sociais e religiosos que parecem cada vez mais (estranhamente) possíveis. A possibilidade de submissão de um país inteiro. A ideia de submissão latente no Islamismo. Que começa exactamente no controlo das mulheres. Começa-se por aí, por controlar as mulheres. Sempre. Controlar as mulheres significa dar margem a todas as outras formas de submissão. Por isso, há muito que penso que a chave estaria sempre na insubmissão nua das mulheres muçulmanas. Os homens e todos os inviesamentos teóricos que vão construindo para lutar contra o medo ancestral das mulheres, do poder feito mistério que vive no sexo delas. É de medo, que se trata. Nesta e em outras religiões. O mesmo medo que faz com que seja possível a excisão clitoriana. Praticada por mulheres. Lá está. Seja como for, li este livro de um fôlego, pela madrugada dentro. Com a mesma paixão com que li os volumes de Tolstoi e de Dostoievski, durante o tempo de faculdade. Com a mesma voracidade com que li cada um dos romances duros do Philip Roth. E só assim é que vale a pena ler, que os discursos mais ou menos edificantes, mais ou menos pedantes a propósito da leitura não me interessam minimamente. Melhor passar por cima disso. 
Para um livro magistral, um vinho especial. É branco, o que não deixa de ser curioso, porque gosto mais de vinhos tintos. Ganhou há uns dias o título de melhor vinho branco do mundo. Uma daquelas formulações definitivas. Nesta e em muitas outras coisas, procuro guiar-me pelo meu critério, que é bem simples: gosto ou não gosto. E gosto muito deste branco que parece mesmo pedir a companhia de uma receita como a que fica hoje. Feita na sequência de uma oferta carinhosa de uma amiga alentejana, que se lembrou que eu fico bem feliz com surpresas assim. O meu carinho para ela, aqui nestas imagens-resultado da inspiração desses espargos trazidos da Primavera no Alentejo. 

Tortilla de espargos selvagens e de linguiça de porco preto
NB: Não é fácil arranjar espargos selvagens, por isso, fica a referência necessária de que esta receita fica igualmente bem com espargos verdes, previamente grelhados. Assim: uma sertã quente, sem nada. Os espargos, quebrados com as mãos, na parte em que cede. Oito minutos depois e umas quantas voltas na sertã, retira-se os espargos, salpica-se com flor-de-sal e um fio de azeite. 


5 ovos inteiros + 1 molho de espargos (só as pontas, reservando-se o resto para migas ou para saltear com batatas, por exemplo) + 10 rodelas de uma linguiça de porco preto (costumo usar esta) + 1 fio de azeite + flor-de-sal e pimenta preta q.b. 

Coloca-se os espargos e a linguiça (cortada em pedaços pequenos) numa sertã, com um fio de azeite. Deixa-se saltear levemente (cerca de 3 minutos), mexendo com uma colher de pau. Entretanto, bate-se os ovos, temperados com um pouco de flor-de-sal e com pimenta preta. Acrescenta-se aos espargos e à linguiça, mexe-se, para distribuir bem e deixa-se estar um minuto exacto, em lume médio, no caso de se estar a utilizar uma sertã de ferro fundido ou três minutos, nas outras. No primeiro caso, depois desse minuto, leva-se ao forno, a 180ºc, com o calor a vir só de cima, até ficar pronta (não indico tempo, que isso pode variar consoante a densidade e a qualidade dos ovos). No caso de se estar a usar uma outra sertã, basta esperar os tais três minutos, virar para um prato e voltar a deixar cair na sertã, com o lado que não estava cozinhado virado para baixo. A partir daí, bastarão uns segundos e estará pronta. Pode ser servida quente ou pode ser guardada e ser comida fria. Sabe bem das duas maneiras, que eu sei:) 

Com este livro, com esta comida, com este vinho, a voz poderosa da Janis Joplin, associada à doçura desalinhada da Natalie Portman, num anúncio recente a um perfume que me é muito especial. Uma narrativa de insubmissão, a deste anúncio. Comercial e tudo o mais, mas uma narrativa de insubmissão. Parece-me bem. 


12 comentários:

  1. Boa tarde, Mar.
    Vim de manhã, mas saí sem fazer barulho. Fui remoer o texto. Quando as coisas/palavras nos tocam, precisamos de silêncio para as meditar. Ontem, durante o dia não me saíam da cabeça dois poemas: "Urgentemente" e "Estatutos do Homem" (tenho a mania, quando estou sozinha, de declamar/dizer poemas) e hoje deparei com as suas palavras. E voltaram-me as palavras dos dois poetas. E a voz da Janis Joplin levou-me para a minha juventude, quando eu acreditava, piamente, que ia ajudar a mudar o mundo e tinha, na parede do meu quarto, um póster com os Estatutos do Homem.
    Naquela altura, não gostava de comer. Hoje, não mudei o mundo, mas mudei a minha relação com a comida. Esta tortilha está com um óptimo aspecto. Como adoro tortilhas, vou experimentar a receita, com espargos verdes.
    Continuação de boa semana.
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Sair sem fazer barulho. Remoer o texto. Duas formulações bem lindas. Gosto desses dois poemas. Muito provavelmente, pelas mesmas razões que a Ana. A questão é que eu acho que há uma linguagem que não passa, que parece ser redutível ao estatuto de léxico idealista ou utópico. Teve uma sorte enorme, por ter respirado essa ideia de ajudar a mudar o mundo. Os nossos tempos não parecem permitir esses e outros propósitos. Ainda assim, mesmo que eu ache que em termos macro, tudo pareça estar na mesma, não deixo nunca de pensar que à nossa escala, no que ela tem de mais ínfimo, há tanto a/para fazer. E gosto da voz dos cínicos, dos que não contam histórias, dos que dizem ao que vêm. São tónicos.
      E ainda bem que (lhe) aconteceu essa mudança. Conheci em tempos uma pessoa que me disse isso. Comia porque tinha de ser. Na altura, fiquei em silêncio. Estávamos à mesa e eu tinha feito o jantar. As pessoas são diferentes umas das outras. São assim como as árvores. E eu gosto de paisagens diversas.

      Um beijo. Boa semana para si também.

      Mar

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  2. Que post tão bonito :)
    Livros, vinho e comida. Há lá trio melhor ;)
    Curiosamente ontem acabei de, pela primeira vez, reler um livro. Partilho disso que dizes... Há tanto para ler! Uma vida não é suficiente. Mas há um tempo que pensava recorrentemente num livro que marcou o início da minha adolescência. Um dos primeiros livros à séria de que me lembro. Chama-se A voz dos Deuses, de João Aguiar. E reli-o por estes dias. Fez-me bem. Mesmo. E continuo a gostar muito dele ;) Ler e cozinhar são dos meus maiores prazeres ;)
    Beijo grande e dias bons por aqui ;)
    Babette

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    1. Muito disso de livros. E medida, nas outras duas variáveis. Achei curiosa essa tua referência. O João Aguiar era primo do Vasco. Morreu há uns anos. Mas deixou esse e outros livros.
      O Vasco diz muitas vezes isso. Que uma só vida não é suficiente. E como ele lê. No aniversário do António, os miúdos perguntaram-me imensas vezes se já tínhamos mesmo lido aqueles livros todos. Eu disse-lhes que a mim me faltavam uns poucos, mas que ao pai do António, não. Devias ter visto as carinhas deles. Logo a seguir, perguntavam se eu podia fazer mais pizza:) Adoro o discurso random das crianças. Saltitam entre as coisas.

      Um beijo. E coisas boas para aí:)

      Mar

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  3. Está linda a foto de capa ;) flores no teu braço parece-me mesmo bem...
    Babette

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    1. São as flores de Lagos, no Mercado da Reforma Agrária. Faz-me bem mantê-las por perto. Outro beijo.

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  4. Esse livro está à minha espera, no fundo de uma pilha de lombadas grossas. São os que deixo para quando há mais tempo, para tardes ou noites longas que permitem um mergulho de horas. Sem haver concessões para mais nada. Momentos absolutos. Leio muito, a minha profissão a isso obriga, mas sempre em função de uma aula, de um artigo, de um seminário... não que o prazer não surja nesses períodos, porque sem isso não seria feliz no que faço. Mas entregar-me à leitura incondicionalmente, só porque sim, vai sendo cada vez mais difícil. O último romance que me ficou literalmente debaixo da pele foi O Menino de Kabul na versão inglesa, lida vertiginosamente em dois dias de praia. Não consegui largá-lo. Acredito que A Submissão seja sanguíneo, envolvente e que nos provoque um abanão, como descreve. A entrevista que li com o autor despertou em mim a vontade, por isso o comprei. Não, uma vida não nos chega. Mas ler multiplica-nos, faz-nos ser tanta gente! E só isso já me preenche tanto.

    Adoro tortilhas. Em todas as suas variáveis. Obrigada por esta receita, com os espargos de que gosto tanto! Costumo aliar espargos a cogumelos, mas esta versão não me vai escapar.

    Um abraço,
    Marta


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    1. Olá Marta,

      Este livro assumiu uma dimensão de que ninguém estava à espera, por causa dos atentados em Paris. Já era esperado e objecto de polémicas várias, mas assim, tornou-se ainda mais urgente. Mais necessário. A hipótese que levanta não é, de todo, improvável. Os cenários políticos são cada vez mais improváveis, de resto.
      Li-o no tempo que é, para mim, o tempo das leituras sem nenhum tipo de constrangimento: a noite. É a altura do dia em que estou mesmo quieta e silenciosa. Acabo sempre por adormecer já muito tarde. Ainda bem que o meu ritmo é assim de não precisar de muitas horas de sono. Dá para ler mais e mais. Exactamente porque uma vida não chega.
      Não li esse livro de que falou. Mas hei-de ler, que leituras vertiginosas são tão de procurar viver.

      Por aqui também, nisso das tortilhas. O meu marido, muito especialmente. Almoços ligeiros de Verão. No Inverno, como entrada. E assim dessa maneira de que falou, também com cogumelos. A ver se gosta desta hipótese com espargos, então. Nada a agradecer:)

      Um abraço para si.

      Mar

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  5. Olá Mar,

    Mais uma vez, nem de propósito o título deste post. Por aqui, tem havido muitos (demasiados) conflitos interiores por causa da submissão/insubmissão às circunstâncias, pessoas, sentimentos, emoções.

    Daí andar um bocado escondida na minha concha protectora e não me mostrar muito por aqui.

    Nem tenho lido nada de jeito. E gosto tanto!

    Mas, vou tratar disso. E recomeçar as minhas caminhadas.

    Não conheço o autor que refere. Vou pesquisar.

    E a junção de ovos com espargos parece-me bem. Com um bom vinho ainda melhor!

    É pena já ter comido a chouriça de porco preto que trouxe do Alentejo mas, devo encontrar por aqui.

    E a seguir um bom livro.

    Não é preciso muito. Acho que eu é que exijo muito. Ou então pouco.

    Um beijo do Algarve, hoje com um espírito um pouco cinzento. Como o tempo.

    Sandra Martins

    PS - Também reparei na mudança da fotografia, com as flores. Gostei. E não cheguei a dizer que o frango com mostarda e legumes correu bem pois não?

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    1. Olá Sandra,

      Pois, não temos filtros protectores. Aquilo que eu aprendi há uns bons anos, depois de uma pequena tragédia íntima, é que nunca mais iria sacrificar nenhuma das possibilidades de alegria ou de beleza ou de felicidade, por causa de pessoas más. E isto: estando vivos e inteiros, é andar para a frente. Parece muito elementar, mas é difícil, quando nos sentimos feridos. A ver se fica tudo bem consigo, Sandra.
      E sim, encontra-se facilmente. O Alentejo disseminou-se um bocadinho pelo país e isso é muito bom:) Costumo encontrar enchidos desta marca no Pingo Doce.

      Fico feliz por saber que o frango com mostarda correu bem, aí no sul. Obrigada por dizer.

      Flores, (boa) comida e (bons) livros, para contrariar esse espírito cinza. Fique bem. E boas caminhadas.

      Um beijo.

      Mar

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  6. A vida é perfeita assim. Livros, bom vinho, comida de conforto, música e o poder da imagem.
    Coisas simples incrementadas com o bom gosto. És uma mulher cheia de elegâncias. ;)
    Vou anotar o livro!

    Beijinho beijinho

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    1. Muito perto da perfeição, a vida com estas coordenadas. Há muitas outras, mas estas têm dentro aquela ideia de estarem ao alcance. Obrigada. Por isso tudo e pela parte das elegâncias:) O livro é do género de não se conseguir esquecer.

      Beijos para ti:)

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