Estremoz.













A alma do Alentejo é uma parede caiada. Perceber-lhe as irregularidades. Os sedimentos. O despojamento de uma parede caiada ensina muito sobre aquela massa de terra. Sobre as pessoas que a habitam. 
Muito inteiro, o Alentejo. Muito coerente. Parece haver ali uma harmonia que se entende sem fazer perguntas. É assim que sinto aquela terra. Um dos chãos onde mais gosto de pisar. E é inevitável. A comida. Pensar (n)o Alentejo é sentir o sabor da comida. Imediato, certeiro. Os odores que adivinhamos, enquanto pisamos a terra, são os mesmos que sentimos depois à mesa. Os poejos, os coentros, os orégãos. Os espargos bravos. Ninguém esquece como é comer espargos do campo. Eu sei que não me esqueço. 
Por isso, volto muitas e muitas vezes ao Alentejo. De passagem, de propósito, com pretextos, sem pretextos de nenhuma espécie. A Estremoz, muito especialmente. Pela comida do São Rosas. As traves de madeira e as paredes caiadas abrigam a alma da comida alentejana. E, muito importante, os anos passam e a comida está na mesma: muito boa. 
Há doze anos que vou a este restaurante. Há doze anos que sei que posso comer uma sopa de tomate alentejana o ano inteiro, porque a abundância do Verão é conservada e guardada para o Inverno, como sempre se fez. Há doze anos que sei que a minha sopa alentejana preferida é servida com um ovo escalfado e com enchidos passados por azeite, para ficarem estaladiços. Há doze anos que sei que há ovos mexidos com espargos ou com cogumelos do campo. Há doze anos que sei que, assim que entro, estou numa espécie de casa. E que, quando nos sentamos à mesa, sempre aquele saco de linho com pão dentro, que é aberto pelas mãos experientes do Sr. Manuel. Dar as boas-vindas a alguém pode passar por um gesto destes: abrir um saco de pão. 
Olhar à volta é sentirmos que a ideia não é deslumbrar, nem esmagar. Quase não há factores de distracção. As paredes são brancas, as cadeiras e as mesas são daquela madeira sem brilhos, sem vernizes. A loiça alentejana. As velas. Os nichos perto das mesas, para guardar os vinhos. Claro que sim, que gosto muito deste sítio. Claro que sim, que há muito que devia fazer parte destas coisas que aqui vão ficando. Com a minha liberdade dentro, por saber que quando um lugar se transforma numa destas páginas, é porque foi/é mesmo de gostar. De amar. 
Tal como a Pousada da Rainha Santa Isabel. Um silêncio bem especial, o deste lugar. A primeira vez que dormi lá, a impressão mais vívida era essa: a do silêncio. Com água a cair numa fonte, num dos pátios interiores. Por isso, uma vez mais, subi as escadas vermelhas, acendi a luz do quarto e contei uma história ao meu filho, enroscado em mim, numa noite que, lá fora, era muito fria. Adormecemos os dois antes de chegar ao final da história. Mas contei-lhe o suficiente para me lembrar da minha leitura primeira daquela mesma história, quando era pequena. Contei-lhe o suficiente, para me lembrar que, de vez em quando, muita gente devia ler "Uma canção de Natal", de Charles Dickens. Talvez a esquizofrenia do mundo fosse temperada. É que, de vez em quando, o impossível acontece. Como hoje, em Paris. Amanhã, o mundo devia acordar cheio de caricaturas. Amanhã, o mundo devia ser uma caricatura só. Massiva. Ruidosa. Ostensiva. Declarativa, na afirmação da liberdade que não morre ao ritmo de rajadas automáticas de fogo. É que a liberdade arranja sempre maneira. 

E Warpaint. Majesty. Numa daquelas sessões rough de que gosto muito. 


14 comentários:

  1. Bom dia, Mar. Que belo texto. Que belas imagens. Que bela descrição de um sítio. Quanta ternura. Obrigada pela sua bondade. Obrigada por partilhar os seus estados de alma e o seu infinito amor aos sítios/chãos e às pessoas. Sim, faz muita falta mães/pais lerem aos filhos "Uma canção de Natal". Faz muita falta "Uma canção de Natal" .
    Bjs
    Ana

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    1. Boa noite, Ana

      Só consigo escrever aqui à noite. E nunca lhe digo "bom dia". A separação necessária, entre dimensões. E a calma da noite, para poder responder com o silêncio e com o tempo que merece.

      E obrigada a si. Por esse tempo carinhoso que tira, para deixar aqui um rasto. Nada a agradecer. O espírito é o mesmo desde que este lugar nasceu. Nas receitas, nos lugares, no que for de dizer. Fica aqui, este lugar que já devia ter sido dito. Muito, muito especial.

      E sim, faz falta, a leitura deste livro. Charles Dickens foi/é fundador, em mim. Tinha uns onze anos, quando li Oliver Twist. O meu filho há-de lê-lo. Quando quiser, que os livros implicam liberdade. Quis este, foi este. Marcou uma noite fria em Estremoz.

      Beijos para si.

      Mar

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  2. Uma ode ao Alentejo que amo tanto. Quero regressar lá em breve, como já te disse. Dei-me conta que há muito tempo que lá não vou. Faz-me bem aquele silêncio todo. As planícies a perder de vista. Nos tempos que correm, refúgios de silêncio e paz são cada vez mais necessários. Ontem o mundo foi outra vez atingido. Que barbárie...Sem palavras...
    Babette

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    1. O Alentejo é-nos muito. O Vasco viveu lá um ano. Move-se naquela geografia com intuição. Sem pensar muito. Creio que gosto ainda mais deste sul por causa disso. Pela maneira como ele o sulca.
      E é mesmo desse silêncio que se trata. Não se ouve um ruído. E o céu está sempre inteiro, acima de nós.

      Eu tenho muitas palavras, a propósito do inconcebível de ontem. Muitas. Apesar disso, estanquei hoje aquilo que podia resultar numa discussão imprevisível. Não valia a pena. Quando é assim, melhor mantermos o nosso ponto e deixarmos cair. Tenho aprendido esse exercício de deixar estar, quando percebo que não vale a pena.

      Um beijo. E sim, volta ao Alentejo:) Ontem à noite fiz migas, de homenagem.

      Mar

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  3. Brutal, este início de um novo Ano. Cortante e absurdo. Não há palavras que descrevam o horror do que aconteceu em Paris. E sim, perante o que se passa no mundo, apetece um lugar que nos acolha e nos rodeie de silêncio. Também eu amo o Alentejo: a paisagem, a comida, as pessoas. Há algo de tão sóbrio e tão digno naquelas paragens, tão essencial... Inteiro e justo, como diria a Sophia... Gostei imenso do seu texto. Já não vou a Estremoz há algum tempo, mas a descrição que fez da pousada fez-me recordar uma ida à de Santa Maria de Bouro (Minho), também na época natalícia. Aí também o mundo ficou esquecido, por detrás daquelas paredes graníticas, aparentemente impenetráveis...
    Um abraço,
    Marta (de Leça)

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    1. Olá Marta de Leça:

      Como diz o meu marido: "tudo de terrível que possas conceber, alguém fez, está a fazer ou está a pensar em fazer". Face a coisas destas, lembro-me sempre dessa sequência. Faz sentido. E, apesar de tudo, faz ainda mais sentido a afirmação absoluta das civilizações assentes na liberdade. Não uma liberdade enquanto abstracção. Liberdade plena, vivida todos os dias.

      Concordo consigo. Uma dignidade muito particular, a do Alentejo. Talvez por isso a cal me recorde esse sentido de dignidade. A casa mais humilde resplandece, de branca.

      A Pousada de Santa Maria do Bouro é um dos lugares que já deveria estar aqui. Gostei tanto, quando estive lá. Especialmente da sala dos pequenos-almoços, na cozinha do mosteiro. E também desse silêncio, dessa sensação de nos fecharmos, recolhidos.

      Um abraço para si. Obrigada por gostar de ler.

      Mar

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  4. Linda homenagem ao Alentejo. Lugares especiais que tu, como sempre, tão bem descreves. Não posso ir assim tantas vezes, mas sim, é daquelas terras a que, se pudesse, voltaria muitas e muitas vezes.
    Quanto a Paris, um horror! Ontem andei pela ilha, com a minha sobrinha, a fotografar. Quando regressei ao carro, depois de um pequeno trilho, recebi a notícia. Este mundo está assustador.

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Lembrei-me também de ti. De como foste feliz no Alentejo, neste Verão. Estes dois lugares são, realmente, especiais. Daí ficarem aqui. Já calei aqui muitas vezes lugares tidos como especiais. Não tinha sido feliz, nesses lugares. Não conseguia dizê-los. Nem tenho de os dizer, que não sou crítica gastronómica. Mas fico furiosa, quando não gosto de restaurantes que me foram descritos como muito bons. Sair de casa para comer mal irrita-me solenemente.

      Este é dos bons:) Comida alentejana no seu melhor. E é uma mulher, a alma deste sítio. Como ela se descreve: uma cozinheira. Não chef. Cozinheira. Gosto desse espírito.

      O mundo é também assim: assustador. Felizmente, essa não é a história toda.

      Um beijo para ti.

      Mar

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  5. Olá Mar,

    Já tive oportunidade de dizer aqui que não conheço bem o Alentejo mas, por acaso conheço Estremoz.

    Também concordo que a Mar descreve o Alentejo com as palavras certas.

    Para além disso tudo, gostei de um post a falar de calma, liberdade, simplicidade, harmonia e amor num dia em que parece que, depois da acalmia do Natal e fim do ano, o Mundo enlouqueceu.

    E sim, felizmente esse é o principio da história. Ainda há muito para contar relativamente a esse episódio e a muitos outros.

    Eu acredito que se recebe de volta o Mal que se faz, a dor que se provoca. Apesar da ingenuidade deste pensamento, há um fundo de verdade. Ontem verifiquei isso, não a uma escala mundial mas, ainda assim, vi acontecer.

    Um beijo do Algarve,

    Sandra Martins

    PS - Amanhã é fim - de - semana, depois da retoma da rotina. Que seja muito bom o seu!

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    1. Olá Sandra,

      O mundo nunca deixa completamente de ser louco. Nós é que nos vamos esquecendo. Episódios destes lembram-nos essa demência (in)constante.
      E creio que o mal que se faz não retorna assim tanto. Creio até que, normalmente, é ao contrário. Fazer-se bem e sermos atingidos pela crueldade. Seja como for, é tão assustadoramente fácil fazer mal a alguém.

      Obrigada por gostar e por dizer dessa maneira.

      Um beijo para si.

      Mar

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  6. Olá Mar:

    a viver há um ano em Estremoz, já adoptei esta cidade como a minha segunda cidade; por isso mesmo, identifiquei-me muito com o texto!.

    Subscrevo, igualmente e com tristeza, os dois últimos parágrafos.
    Pelos nossos filhos, não embarco já numa visão pessimista do mundo.

    Um abraço,
    Ana

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    1. Olá Ana,

      Que bom que este olhar sobre Estremoz seja confirmado por quem lá vive. Mesmo bom que assim seja. Obrigada por isso.

      Face a episódios destes, a vida deve afirmar-se ainda mais. Encontrar mais caminhos. É isso. Tal como nas nossas biografias irrepetíveis, no fundo.

      Um abraço para Estremoz.

      Mar

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