"Devagar, o tempo (...)"













"Devagar, o tempo transforma tudo em tempo." É assim que abre um daqueles poemas que lê/diz a vida da maneira que só alguns poemas. Esta formulação é de José Luís Peixoto. E é assim mesmo. O tempo a passar. E tudo aquilo que, lentamente, é transformado em tempo. Creio que a questão mais difícil é mesmo a de sermos capazes de levar cada um dos dias. Medidas inexoráveis (e às vezes difíceis) desse tempo que tudo transforma em tempo. 
Com o tempo, vou também percebendo onde me situo. No que é que me revejo. No que é que repudio. Quando é que devo afastar-me. Onde é que devo permanecer. Quando dizer. Quando calar. Do que é que gosto muito. E gosto do tempo, nas coisas. Da maneira como as imperfeições se vão sublimando até serem belas. De devolver a vida que parecia perdida no tempo. De introduzir o que é de agora. Juntar o velho e o novo. O imperfeito de uma peça de madeira que estava condenada ao esquecimento e o imaculado de uma toalha branca sem vincos. E assim, sei que uma caixa de madeira e um pedaço de veludo que deixaram de cumprir as suas funções primeiras, podem guardar os talheres prementes. E assim, sei que as laranjas irregulares do meu jardim podem ser colocadas num pedestal humilde de madeira e serem só lindas, como se fossem um quadro. E assim, sei que as velas que acendo todos os dias, vão ganhando formas ditadas pelas noites de cada um desses dias. E que, ao lado dessas formas imprevisíveis, um castiçal muito antigo em prata ergue uma vela branca. E assim, sei que assim, as coisas têm sentido. 
Andamos por muitos lugares diferentes, até encontrarmos o lugar que somos. Mas o tempo vai ajudando no processo. A mim, há muito que me ensinou que sou pelas matérias que permanecem, que lidam bem com os embates inevitáveis do tempo. Como se fossem uma mulher que fica cada vez mais bonita, não obstante o tempo no corpo. Chama-se a isso "envelhecer bem". Como estas matérias. O ferro fundido, o cobre, a madeira sem tratamentos prévios, a prata que existe há mais tempo do que eu e do que todos os que conheço, terracotta provençal junto de porcelanas Limoges bem antigas, o linho e o algodão. O cristal contemporâneo e o cristal cinzelado dos avós dos avós. Palcos possíveis para a comida efémera feita com o fogo que lhe dá alma. A comida que todos os dias é assim como o tempo: acontece. 
E os livros. Sempre os livros. Estes, que me dão tanto. Que me conduzem aos tais lugares que sou. Fica um nome que é um sítio onde encontrar beleza com tempo. Axel Vervoordt

E parte do poema que abriu o post. Chama-se Explicação da Eternidade

Devagar, o tempo transforma tudo em tempo. 
o ódio transforma-se em tempo, o amor 
transforma-se em tempo, a dor transforma-se 
em tempo.


Os assuntos que julgámos mais profundos, 
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, 
transformam-se devagar em tempo.

(...)

Nesta página, esta música. Por fazer sentido. E por andar a (gostar muito de ) ouvir TV ON THE RADIO. 



10 comentários:

  1. Tão cheio, este post. Tenho pensado muito nisto do Tempo, ultimamente. Nas suas mais diversas vertentes. De como é precioso, acima de tudo. E de como lhe devemos ter respeito, não o desperdiçando com coisas que nos fazem mal. Muito lindas as tuas imagens das tuas coisas de casa. Desde as tulipas e laranjas às pratas. Desde as mais às menos efémeras.

    Uma boa semana, cheia de momentos bons.

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Olá Ilídia,

      Creio que falhamos uma e outra vez, quando pensamos que há muito tempo para uma série de coisas. Ou, por outro lado, quando andamos às voltas com uma série de balizas ou de prisões, tomando o tempo como adquirido. Por isso, muito de vida, de alegria com densidade, longe do que nos fizer mal, se pudermos fugir.
      Lindo que gostes. Que esse olhar seja terno. Obrigada.

      Uma boa semana para ti também. Com coisas que te façam bem.

      Um beijo.

      Mar

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  2. Que lindo minha linda Mar <3
    O tempo...fechei o ano de 2014 com este poema...e como tu sabes!
    Beijinhos da Mary...atolambada ;)

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    1. Minha Mary:)

      Sei sim. Nunca mais repeti interiormente estas palavras sem me lembrar de ti e da coreografia linda que fizeste, a partir deste poema. Tenho muita sorte, porque posso ver a tua arte que dança. Mesmo que esteja bem quietinha a ver:)

      Muitos beijos para ti, Mary atolambada:)

      Mar

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  3. Que mesa tão bonita! E que coisas certas, todas misturadas. O pedestal de madeira acolhe tão bem a fruta do teu jardim. Gosto tanto da permanência de algumas coisas. Físicas ou apenas em nós, convivem tão bem com as outras de agora, umas que também ficam e outras que são também de passagem em nós....
    Um beijo doce
    Boa semana!
    Babette

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    1. Que linda. Uma mesa tão frugal. Obrigada. Tal como essa peça que acolhe bem as laranjas perfumadas ali do jardim. Gosto muito dela.
      Creio que é tudo de passagem. Nós, muito especialmente. Muitas destes objectos de que gosto tanto permanecerão, resistirão à minha passagem. Importa pensar nisso. Sempre que olho para os selos de garantia das minhas peças em ferro fundido, a dizer que vão durar sempre. É um exercício estranho, mas necessário. Eu hei-de desaparecer e elas ficam. Enquanto não, hão-de fazer muita comida:)

      Um beijo para ti. E uma semana linda.

      Mar

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  4. Bom dia, Mar.
    Quanta beleza, nas imagens, nas coisas, nas palavras, nos pensamentos. Podemos guardar tanta coisa (e eu guardo), podemos dar nova vida a objectos que deixaram de cumprir a sua função (e eu dou), mas não podemos viver o tempo que desperdiçamos ou adiamos.
    Que dia de hoje seja pleno.
    Bjs
    Ana

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    1. Olá Ana,

      Muito obrigada por essa beleza que leu aqui. A vida é tão tecida de fragmentos. Fico feliz por esses dois verbos em si: guardar e dar. O tempo que desperdiçamos. Guardei isso. Creio que uma boa parte da minha vida tem sido passada nesse exercício. Mas sem a noção de desperdício, por achar que é pelo melhor. Não tem corrido bem, essa parte.

      Foi vivido por inteiro. Difícil, mas estive em mim o tempo todo. Um bocadinho cansada, só. Amanhã haverá mais luz.

      Beijos para si. Obrigada.

      Mar

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  5. As coisas que te são queridas. A vida que lhes dás. As coisas que nos dáo tanto. Que nos dão o certo dos nossos dias. Vou guardar o poema.
    Um beijo contente pela tarde de ontem, que passámos as três, juntas.
    da Pipinha

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    1. Guarda sim, linda. Hoje de manhã tive um abraço forte, de uma amiga que também o guardou, depois de aqui vir. Soube bem, esse abraço. E ontem também, nós as três juntas. No lugar quieto e seguro da nossa amizade que tudo acolhe.

      Outro para ti.

      Isa

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