Traço de (des)união.








A mesa não é sempre um lugar de concordância, de união. Dava para escrever bastante a este propósito, mas vou cingir-me ao ponto. Cabidela é um daqueles pratos. Há os que não gostam sem ter provado antes. Há os que não gostam já depois de terem provado. Há os que gostam (mesmo) muito e que se perdem pela hipótese. E há os fundamentalistas. Também há desses. Mas não me apetece gastar adjectivos nem verbos nem o que for com fundamentalismos. 
Durante anos, pertenci ao grupo dos primeiros. Mas, quase logo a seguir a ter casado, percebi que era uma das comidas preferidas do meu marido. Dava para ignorar isso? Eu achei que não, que não ia dar para passar por cima disso. Primeiro, pensei que não havia problema, que fazia só para ele e que não comia. Depois, lembrei-me que tinha de provar e que não dava para servir sem passar por esse filtro. Assim que provei, percebi que passaria a fazer parte dos últimos. Dos que gostam muito. Na altura, só me ocorreu que nem sabia o que tinha andado a perder:) 
Ao longo do tempo, fui aprimorando a técnica e cheguei a esta conclusão que partilho hoje. Primeiro, passei a fazer com peitos de frango do campo, em vez de ter ossos pequenos a atrapalhar o processo de gostar muito de comer isto. Quando há pessoas à mesa que não partilham do culto, sirvo um arroz de frango com o que me apetecer no momento. Neste dia, reforcei com bacon e com bróculos. Duas panelas de ferro fundido a fumegar à mesa. A seguir, a alegria partilhada. De um lado, os felizes por haver cabidela de frango do campo numa versão muito aromática. Do outro lado, os felizes por haver um arroz de frango do campo com os bróculos mais bonitos e mais verdes que havia no momento e pedaços de bom bacon. A unir os dois campos, um vinho tinto que é mesmo de partilhar, de precioso. Tem-me apetecido com uma cadência quase diária. Chega a hora de abrir o vinho e penso logo: Pedra Cancela. O Dão está em força, nestas garrafas. Um traço de união possível, um bom vinho. 

Cabidela de frango à Mar:) 

5 peitos de frango do campo + 1 cebola + 1 tomate + 1 pimento vermelho + 3 dentes de alho + 1 folha de louro + 1 copo de vinho branco + 1 tigela de arroz carolino + 800 ml de água + 1 cenoura + 350 ml de sangue fresco de frango + sal, azeite, coentros, pimenta preta e vinagre q.b. 

Primeiro, parte-se os peitos de frango em pedaços não muito pequenos, para não se desfazerem. A seguir, deita-se o sangue numa caneca e acrescenta-se vinagre ao nosso gosto (para esta quantidade de sangue, umas três colheres de sopa). Depois, num tacho, coloca-se o frango com a cebola, os alhos esmagados, a folha de louro (sem a nervura do meio), o pimento, o tomate e um pouco de sal. Acrescenta-se um fio de azeite e leva-se ao lume, para refogar. Passados cinco minutos, acrescenta-se o vinho branco. Fecha-se o tacho e deixa-se cozinhar durante cerca de vinte minutos. Depois, acrescenta-se água quente e, assim que ferver no tacho, junta-se o arroz carolino (não vale usar arroz agulha, porque este tipo de arroz parece criar uma barreira e evitar que os sabores se integrem). Quando o arroz estiver quase cozido, acrescenta-se a cenoura (previamente passada na mandolina) e envolve-se, acrescentando mais um pouco de sal, se necessário. Logo a seguir, o sangue, envolvendo muito bem o arroz. Retira-se logo do lume, salpica-se com coentros picados e um pouco de pimenta preta moída na hora. 

NB: Para fazer o arroz de frango simples, basta retirar a quantidade de frango que entendermos para uma outra panela, acrescentar a água quente e o arroz. Quase logo a seguir, os bróculos e os pedaços de bacon. Uso deste, que é o mais saboroso de todos os que já usei. Deixa-se cozer o arroz, rectifica-se de sal e serve-se com os mesmos salpicos de coentros e de pimenta preta.  

E a música é de Years and Years. Take shelter. Dizem que sim, que vai continuar a chover. Todos os abrigos serão necessários, então. Mas com uma cadência feliz, emprestada pelo ritmo desta música:) 



8 comentários:

  1. Ai gosto tanto de cabidela, Mar! Mas como mais gosto é num arroz só com os miúdos do frango... sem carne do mesmo. Sei que é um gosto peculiar, mas é o meu. De qualquer maneira, nunca faço feia figura, porque arroz e frango é combinação que não desdenho nunca, seja qual for a variante...
    O seu arroz de frango com bacon e bróculos parece delicioso. Vou experimentar um dia destes.
    Uma boa semana,
    Marta (de Leça, sim, de pertinho de um farol...)

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    1. Olá Marta de Leça:)

      Compreendo perfeitamente. Tenho uma amiga que adora essa variante e que, volta e meia, me faz referência a um arroz mítico da mãe dela. Em tempos, prometi-lhe que tentaria dar-lhe um arroz desse género, de presente. Lembrei-me agora que é uma das coisas que tem vindo a ser sucessivamente adiada. A ver se arranjo maneira de resolver esse assunto.
      Este arroz de frango com bróculos é comidinha de mãe. Vai saber-lhe bem, se experimentar.
      Uma semana cheia de coisas boas para si. Obrigada.

      Mar

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  2. Eu faço parte do grupo dos últimos. Adoro. Mas ao contrário de ti, nunca faço. Guardo a vontade para quando a minha mãe faz, tal como mais meia dúzia de pratos especiais!
    Mas se um dia precisar, acho que já sei onde vir!
    Um beijo e boa semana!

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    1. Olá Vera,

      Há uma série de coisas que são reduto das nossas mães. Faz parte. Sinto o mesmo. Nesta questão, foi mais o apelo amoroso do meu marido. Ele gosta tanto, que não queria que fosse uma coisa que só pudesse comer em casa da sogra dele:) Resolvi o assunto internamente e acabei por me juntar ao grupo de pessoas que gosta muito desta comida de tacho:)
      A ver se um dia tentas esta versão, então.

      Um beijo para ti. Boa semana, Verinha:)

      Mar

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  3. Este será um traço da nossa (des)união ;) Sou das que "não gostava sem ter provado antes" e das que continua a "não gostar depois de ter provado". Curiosamente, foi pela mão da amizade - da tua amizade - que acedi a provar. Feita por ti ;) O meu homem deliciou-se, como sabes. Eu não desgostei do sabor. Mas não consigo vencer o preconceito... Penso nos ingredientes e cria-se logo uma barreira que não vou insistir em querer derrubar. Ficava de bom grado com o arroz de frango e brócolos e brindávamos com esse tinto pacificador. Tudo bem, então ;)
    Babette

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    1. Pacífico:) Eu sei que sim. Foi uma surpresa, no dia em que vieram cá a casa. Sabia que ele adorava. Tentámos conciliar as coisas todas. Sempre boa, a conciliação. Numa próxima vez, a ver se lhe dou a provar esta versão e faço um arroz do outro para ti e para os meninos:)

      Um beijo.

      Mar

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  4. Tal e qual como a Babette: continuo sem gostar, mesmo depois de ter provado.

    Pode ser que um dia ocorra uma mudança, como aconteceu com as iscas.

    Se sim, já sei onde vir buscar a inspiração.

    Bonito o motivo da mudança: por se tratar do prato favorito do seu marido.

    Um argumento poderoso o amor, que se mostra e dá através de comida. Belo, isto também.

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      As coisas são como são. E, neste e em muitos outros aspectos, devemos saber qual é a nossa verdade. No que diz respeito à comida ainda mais. Há coisas que eu não suporto de todo. Faz parte. Cabidela presta-se mais a isso de as pessoas estarem em campos opostos porque tem sangue, muito provavelmente.
      E sim, bem lindo, o motivo. Ele adora. Não dava para eu não fazer e ver no que dava:)

      Um bom fim-de-semana para si.

      Mar

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