Terra.







O tempo que levou, até chegar a este ponto. Com o melhor e o mais verdadeiro dos pretextos: o presente de uma amiga que me é assim como devem ser os amigos. Tanto. Muito. Ela sabe da minha gratidão, por receber coisas que posso transformar em outras coisas. Com todos os vernizes inevitáveis, as pessoas acabam por ser de uma simplicidade incrível. Por isso é que é normal ficarmos muito felizes por recebermos presentes como este que eu recebi há uns dias. Boletus. Muito perfumados. A libertarem o aroma da terra onde foram colhidos. Suculentos. Dessa alegria inicial, surgiram mais duas alegrias. Um creme e um salteado meio avinagrado com espargos verdes. Do salteado não houve registo, que desapareceu sem que eu desse conta. Do creme, sim. Uma cronologia bem especial. 
Para mim, os cremes de cogumelos tinham sempre um problema que se transformava numa espécie de questão inultrapassável. O resultado era sempre pesado, do género de dar náuseas. Depois de algumas más experiências (feitas por mim e em restaurantes), parecia que estava a chegar à conclusão de que cremes de cogumelos não eram a minha "cena":) Mas assim que senti o aroma destes boletus, soube que tinha de me conceder mais uma oportunidade e tentar uma outra vez. No mesmo momento, veio-me à memória a ligeireza do aipo. E logo a seguir, a ideia de que não era lapidar o facto de os cremes de cogumelos terem sempre natas e outras coisas que parecem negar o sabor primeiro a que se quer dar relevo. Neste caso, o tal aroma a terra em dias de Outono. E é assim. Um creme ligeiro de boletus. Este. Sinal da minha gratidão ao carinho de todos os dias de uma bailarina que é assim como este creme de boletus: etérea e muitas outras coisas. Obrigada, Mary:) 

Creme de boletus com aipo e outras coisas

1 tigela de boletus + 1 talo de aipo + 1 courgette + 1 batata + 1 cenoura + 1 chuchu + 1 cebola + água, sal, azeite e pimenta preta q.b. 

Muito simples e muito rápido: primeiro, um refogado breve com todos os legumes (cerca de três minutos). A seguir, cobre-se tudo com água e tempera-se com sal. Deixa-se cozer durante meia hora, reduz-se a creme, acrescenta-se mais água e mais sal, se necessário e retira-se do lume. No momento de servir, um fio aleatório de azeite e uns salpicos de pimenta preta moída na hora. E sim, para os nossos sentidos, é um Outono em estado puro. Um Outono terra. 

A música tem dança dentro. Uma daquelas cadências. Mesmo a pedir: dança. 



14 comentários:

  1. Para mim o aroma da terra está irremediavelmente ligado às primeiras chuvas (isto no tempo, em que as primeiras chuvas anunciavam o início do outono, depois de dias de sol abrasador). E este seu creme de botelus fez-me lembrar esse tempo, de tão aconchegante que é. Mesmo sem o provar, sabe bem.
    Bjs Ana

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    1. Olá Ana,

      Melhor habituarmo-nos a que as coisas já não sejam bem como costumavam ser. Especialmente nisto das estações, que parecem todas trocadas. Estes cogumelos têm esse aroma. Como um dia de chuva depois do calor. Curiosamente, é preciso um dia de sol depois de dias de chuva para que estejam no ponto ideal para serem colhidos. Obrigada por ter gostado dessa maneira aconchegante.

      Beijos para si.

      Mar

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  2. Olá Mar,

    Esta é para tentar reproduzir, de certeza.

    Terei que utilizar cogumelos de outra espécie porque nunca vi boletus por aqui.

    Eu sou daquelas pessoas que não faz sopa nos meses de mais calor.

    Mas, o Outono já se instalou. Confortavelmente.

    Os chás já recomeçaram e o meu marido, quase como uma criança, está farto de pedir canja (virei depois aqui buscar a inspiração, não me esqueci onde vi a referência ao aipo pela primeira vez).

    Far-lhe-ei a vontade e a seguir este creme.

    O aroma chegou até aqui e tem um aspecto tão, mas tão reconfortante!

    É o que eu digo: as emoções também temperam.

    Uma oferta carinhosa deu origem a algo muito bom! Só podia.

    Um beijo do Algarve,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Dá para fazer com outra espécie de cogumelos. Este creme foi feito especificamente com estes porque foram os que a minha amiga me ofereceu. Mas tente com os que encontrar.

      Eu faço sopa todo o ano:) Mas percebo perfeitamente as pessoas que não acham piada, durante os meses quentes.

      Vou ficar bem feliz quando fizer essa canja suavizada pelo aipo. A ver se fica(m) também, aí no Sul:)

      E sim, o melhor dos temperos. Para mim, digo. Comida que seja feita com esse ingrediente. Que emocione. Como a vida. Não vale a pena sem esse fogo temperado. Imagino que vidas dessas devam ser como estar sempre de dieta, a fazer contas.

      Um beijo para si.

      Mar

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  3. Minha Linda Mar!!!

    Sabes que não sou de escrever, aliás não o sei fazer, mas creio que mesmo com muitas incertezas nestas palavras, sei que elas serão a expressão escrita da inundação de lágrimas, com a qual os meus olhos ficaram ao ler tão linda e intensa publicação.
    Os "Boletus" são mesmo assim intensos, com um cheiro que invade a casa e deixa a Terra dentro dela....tão intensos quanto a minha dança, a minha impulsividade, o meu sorriso e a minha AMIZADE por ti, princesa!!!
    Mais cozinhados farás com este sabor, pois ainda hoje o Rui apanhou mais alguns e muito bons!!!!

    Beijinhos atolambados :)

    Mary

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    1. Gosto mesmo de ti:) E sim, o aroma é tão intenso, que o meu filho veio logo ver o que é que eu andava a fazer. Tu sabes como é o jeito dele.

      Fiquei bem feliz e estava ansiosa por chegar a casa e começar a fazer coisas com eles. Nós somos semelhantes em muitas coisas. Nessas que escreveste, muito especialmente. Embora a minha dança seja em circuito fechado. A tua não. Acontece e faz acontecer coisas bem lindas. A ver o que é que vais fazer com a música deste post. Estou para ver:)

      Um beijo para ti e para o teu Rui.

      Mar

      PS: Amanhã é dia de almoçarmos só as duas e de eu te dizer sempre que gosto de ti na mesma, apesar de não temperares a tua salada:)

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  4. Gostei muito deste teu creme de outono. Nunca provei esta espécie de cogumelos. Não é fácil arranjar cogumelos por cá. Só mesmo os mais comuns ou as versões desidratadas. Curiosa esta dificuldade numa terra tão húmida. Adorei a fotografia da concha, mesmo a deixar ver a textura cremosa desse creme.

    Um beijo,

    Ilídia

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    1. Bem estranho, realmente. Dir-se-ia que as vossas ilhas teriam espécies de cogumelos com fartura. Mas talvez se possa dar um jeito a isso, que acabei de ter uma ideia:)

      Engraçado, que a fotografia da concha foi um mero acaso. Tinha servido todos à mesa e deixei-a pousada na bancada. Mas olhei e pensei o mesmo, que era uma imagem bonita. A dar a ideia real deste creme. Tinha de ser partilhada:)

      Um beijo.

      Mar

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  5. Que belas palavras sobre a amizade... Bem especial, a vossa. Cheia de cumplicidades e complementaridades ;) E o bem que se percebe nas entrelinhas.
    Sou assim com os cremes de castanha e o de cogumelos. Nem lhes toco, a maior parte das vezes. Muito densos, pesados, cheios de natas ou de sabores que me atordoam. Já resolvi o problema do creme de castanhas e hei-de certamente resolver este de cogumelos ;)
    Babette

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    1. As amizades são mesmo assim dessa maneira, quando verdadeiras. Apesar de todas as diferenças e/ou divergências. A Mary é, em muitos aspectos, a pessoa que eu gostaria de ser, um dia. Preciso de admirar as pessoas por quem tenho afecto.

      E a amizade também serve para resolver problemas com sopas. O meu creme de castanhas que te resolveu essa questão. E a ver se sim, se esta hipótese com cogumelos também.

      Um beijo.

      Mar

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  6. Querida Mar,
    leio o teu texto, vejo as tuas imagens e sou imediatamente transportada para os outonos da minha infância. Muito marcados pelos míscaros, sobretudo o arroz de míscaros. Lembrarei sempre o aroma. Mas sabes, agora sou uma "medrosa" nisto de cogumelos selvagens. Muitos dramas aqui por perto com a inexperiência e a falta de sorte de alguns. Mas fica a possibilidade de tentar o creme com outra espécie.
    Um abraço de boa semana,
    Guida

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    1. Olá Guida,

      Percebo perfeitamente. Adoro míscaros. Uma daquelas comidas "à séria". Também tenho os mesmos receios, daí só confiar nas ofertas de gente que entende muito disto. Como o marido da minha amiga, por exemplo.
      Bom que tenhas viajado um bocadinho até quando eras pequenina e era Outono:) Fico feliz.

      Um abraço de boa semana.

      Mar

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  7. Olá Mar,

    Fiz ontem este creme, com cogumelos brancos que foi o que consegui encontrar.

    E correspondeu plenamente ás expectativas: aromático, denso, absolutamente reconfortante.

    Para inaugurar a temporada das sopas num dia (noite) de Outono pleno: chuva, vento e frio.

    Um beijo do Algarve e votos de boa semana,

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra,

      Que bom. Mesmo lindo. E obrigada por dizer. Por dar sequência à ideia franca de partilha. E sim, ontem foi mesmo dessa maneira: chuva, vento e frio. Ainda bem que sim. É tempo dessa franqueza metereológica.

      Um beijo aí para o Algarve.

      Mar

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