Densidade.







Julgo que quase que conseguia fazer este pudim de olhos fechados. Não só por ser de uma execução estranhamente fácil, mas porque já o fiz tantas e tantas vezes. É o género de sobremesa que permanece na memória sensorial. Fica-nos irremediavelmente. Todos os que já o provaram dizem assim, que se lembram sempre do meu Pudim Abade de Priscos. E como eu gosto de doces assim. Francos. Densos. Honestos. "À séria". Sim, com açúcar sem truques e sem culpas. Sim, com muitos ovos. Sim, com o toque inesperado da untuosidade de lascas de um bom presunto. 
Na minha perspectiva, é o tipo de coisa que faz com que valha a pena perdermo-nos. A verdade é que declino facilmente doces que não valham a pena. Aquela teoria do "é ou não é" a funcionar, muito provavelmente. Normalmente, o problema dos mecanismos de substituição é exactamente esse: são de substituição, ficam à porta. Por isso, hoje deixo a minha receita do pudim Abade de Priscos. Com anos de sedimentação e com todas as adaptações que esse acumular pressupõe. A versão a partir da qual compus a minha interpretação foi retirada de uma receita do Chefe Silva, numa Teleculinária a que perdi o rasto, num dos meus momentos de reciclagens compulsivas. Mas a receita veio de lá, mesmo que eu não consiga detalhar a referência. Em todo o caso, fica a ideia, que não sou do género de me apropriar do que não me pertence. Eu dei um jeito a essa versão primeira. E o resultado é sempre este. Infalivelmente certo. E com aquela propriedade inqualificável que faz com que as reacções sejam sempre bem silenciosas, de quem está a gostar muito de viver uma coisa qualquer. 

Pudim Abade de Priscos

25 gemas de ovos (na versão original eram 32) + 450 g de açúcar (na versão original eram 650) + 2 dl de água + 2 lascas de presunto (na versão original eram 50 g de toucinho) + 1 cálice de vinho do Porto + 2 chávenas (de chá) de açúcar para fazer o caramelo.

Antes de tudo, faz-se o caramelo. Eu faço-o da maneira mais simples, levando o açúcar ao lume numa sertã. Assim que começa a formar caramelo, mexe-se até ficar no ponto. A seguir, verte-se rapidamente na forma, derramando em primeiro lugar no centro e oscilando devagar, para que fique bem "untada". Este passo é muito importante, caso contrário, o pudim não desenforma como deve ser. Reserva-se.

A seguir, a água, o açúcar e as lascas de presunto (uso sempre duas e com alguns laivos de gordura, que é esse detalhe que faz com que o pudim fique ainda melhor). Leva-se ao lume e, a partir do momento em que começar a ferver, conta-se cinco minutos exactos. Decorrido este tempo, retira-se do lume e elimina-se o presunto. Junta-se depois às gemas, que foram previamente mexidas com o vinho do Porto. Sublinho o "mexidas" e não batidas. No momento de incorporar a calda, mexe-se com um batedor de varas e, logo a seguir, derrama-se para a forma. Leva-se ao forno em banho-maria durante 45/50 minutos, a 180ºc. Quando estiver pronto, retira-se da água e deixa-se arrefecer. Desenforma-se num prato largo e, a partir daí, cada um tem a sua experiência. Com a densidade que pede um doce que é assim desta maneira: denso. 


A música tem uma cadência doce. Bem no espírito, creio. 


8 comentários:

  1. Olá Mar,

    Por norma existe um conhecimento que leva à curiosidade, ao querer provar.

    Mas, quando eu provei este pudim desconhecia em absoluto a origem do nome e a lista de ingredientes.

    Se soubesse provava na mesma? Julgo que a curiosidade levava a melhor, sim.

    Se vou tentar reproduzir em casa? Não creio.

    Porque é que gostei tanto do post? Por me ter visto ao espelho.

    Sem meias verdades, sem substituições, ou é ou não é.

    Ás vezes penso que talvez seja demasiado, mas é como eu sou: sem filtros.

    E, ao entrar na cozinha, permaneço assim. Para cozinhar e para provar. Para o bem e para o mal.

    Um beijo do Algarve, num retorno ao Verão (aliás, parece que agora é que chegou o Verão!)

    Sandra Martins

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    1. Olá Sandra:

      Verão como se ainda não tivesse havido, sim. O sol faz-nos um bem enorme. Especialmente quando nos falta prolongadamente, como foi o caso.

      Eu achei que seria redundante estar a falar da origem. Creio que nos tempos que correm e dada a disponibilidade imediata de informação, é só inútil estar a ir buscar referências. A juntar a isso, não tenho pretensões de nenhuma espécie. Mas sim, causa estranheza o facto de ter toucinho/presunto e tudo o mais. É um dado pacífico.

      Mas é uma daquelas experiências, comer um destes pudins. Quando é bem feito. Quando não, apetece-nos dizer mal da vida:) Há uns anos tive uma experiência terrível, num restaurante que gozava de fama intocável e que entretanto fechou. Um Abade de Priscos mal feito roça o pecado. Como é óbvio, não comi esse pudim e não voltei a esse lugar.

      Gosto sempre do espírito declarativo. Mais fácil, resolve uma série de equívocos e antecipa questões.

      Um beijo para si. Boa semana aí a Sul.

      Mar

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  2. Este é "o" pudim. Das coisas mais maravilhosas que já comi. Mas este mesmo. O teu ;) É muito franca, a tua cozinha. E isso está nas tuas palavras, nas tuas acções, nas 25 gemas ;)...
    Sabes que o Zé é absolutamente fã! E sim, é recorrente nas nossas conversas pantagruélicas falarmos do teu pudim abade de priscos. Não tem comparação ;)
    Beijo
    Babette

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    1. Tão generosa, Babette:) Grata e feliz. Gosto muito que vos tenha sabido bem. É-me importante, isso.
      Este pudim foi a sobremesa da primeira refeição que fiz aqui em casa, umas semanas antes do meu casamento. Muito especial e muito íntima, essa memória. Ainda estava a terminar a faculdade e fui tentar ver como é que se fazia o tal Abade de Priscos:) Lá me orientei, agora que penso nisso.
      A minha maneira de fazer comida não é lá muito sofisticada nem isso. É num registo by heart. E a tentar fazer o melhor que puder. Tentar é sempre bom.

      Um beijo de boa semana.

      Mar

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  3. Mar,

    É uma honra conhecer, ainda que virtualmente, alguém que consiga fazer Pudim Abade de Priscos 'à séria' (no limite da doçura).
    Sou do Sul e quem é do Sul vê esse Pudim como uma espécie de lenda culinária, pois só quem tinha avós 'lá de cima' e ainda assim muito eruditas na matéria, é que o alcançavam.
    E embora eu tenha tido uma avó muito querida e grande cozinheira 'lá de cima' (de Viseu), nunca provei.
    Pois bem. Está decidido.
    Um dia destes, seguirei as suas indicações e tentarei. Apesar de sentir que é coisa para demorar tempo até 'ter mão' para ele (se chegar a ter).
    Não é?

    :-) Obrigada, beijinho

    Jo

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    1. Olá Jo,

      Que linda:) Uma receita do Norte, mesmo. Percebo esse ponto. Eu faço este e aprendi a fazer um outro dentro do género com a sogra da minha cunhada, no Douro. Uma daquelas receitas de família.
      Tente. Vai correr bem:) Não vai demorar nada a ter mão para o fazer. A única coisa que carece de vigilância é o tempo de forno, na primeira vez que o fizer. Os fornos são diferentes, por vezes. Daí eu ter dado o intervalo entre 45/50 minutos.

      Obrigada, Jo. Um beijo para si.

      Mar

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  4. O meu pudim preferido! Denso e intenso, como eu gosto. Basta-me um bocadinho...mas parece que a experiência de o provar e o sabor "param o tempo"!
    E é verdade, também tive más experiências em restaurantes, e desisti de pedir!
    Nunca o fiz por o achar difícil (e as 25 gemas também!!). Mas agora a Mar faz-me parecer tão fácil... Um dia destes vou experimentar!!
    Beijinhos da Maria Jorge

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    1. Olá Maria Jorge,

      A mim também me basta só um bocadinho. E creio que é por aí. Tal como disse. O tempo ganha uma intensidade diferente.
      E não é nada difícil. Mesmo. Há coisas que parecem transformar-se em mitos. Se experimentar, que faça com que o tempo fique em suspenso um bocadinho:)

      Um beijo grande.

      Mar

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