Até ver.


































Nas receitas, até que é fácil. Começa-se qualquer coisa, determina-se os ingredientes, as quantidades e sabe-se quando termina o processo. Nas outras coisas todas, é só difícil. Como agora.
Um processo interior, até este momento. Muito silencioso. Sereno. A decisão estava escrita há algum tempo. E é esta. Este lugar onde tenho existido desde há quatro anos precisa de parar.
Quatro anos feitos de coisas que eram para fazer bem. Ia deixando aqui, quase como se atirasse ao vento. Ou como se fossem aquelas mensagens dentro de garrafas, perdidas no mar. Num momento qualquer, alguém iria ler. Ou mesmo que não, o facto de terem sido aqui deixadas valeria só por isso. Aqui. Coisas que me fizeram feliz. Coisas que pudessem fazer alguém feliz. Podia ser uma mesa. Uma comida qualquer. Um lugar. Um livro. Um gesto. Um dia de sol. Outro de chuva. Nuvens e arco-íris. Todas as enumerações imperceptíveis que vão fazendo parte dos meus dias. Acabavam por estar também aqui. No espaço entre mim e o vento, podia acontecer aquilo. Aquilo de uma pessoa poder ter um dia melhor por causa das cores de uma mesa. Aquilo de alguém se decidir (finalmente) a fazer um risotto. Uma pessoa. Uma pessoa. Escrevi para uma pessoa o tempo todo. E agora também é assim. Para a pessoa que chegar aqui e não encontrar coisas que são para amar. As tais coisas da Mar. Isto a ser escrito. A querer dizer que há um tempo qualquer em que se sabe que é para parar. Suspender. Os termos que houver para isto que é assim como a água que não conseguimos manter nas mãos. Que se nos escapa. 
Ficam as coisas que significam que decidi não continuar. Até ver. Disse-me assim. Para ser até ver. A pessoa com quem tenho aprendido que a única coisa definitiva que deve haver é não haver coisas definitivas. Não sei. Sei que não consigo saber como é que vai ser. Mas que, enquanto não, será até ver. Enquanto não, aquilo que fica aqui em suspenso é um risotto. Uma mousse de chocolate que não podia ser mais de chocolate. Uma mesa que foi como as de tantos outros dias. O meu ballet. E música com um final dentro. Um daqueles que ficamos sem saber. Adivinhamos. Projectamos. Interiorizamos. E depois vêm os créditos finais. Com mais música. A banda sonora que dita que abandonamos uma narrativa. Mas que a levamos dentro de nós. 
Não conseguia deixar de escrever sem mais. Devo isto. Tal como senti que era importante responder a todos os comentários. A todos os emails. Tão grande, isso de alguém parar aqui um bocadinho. Tão grande, isso de alguém escrever aqui um bocadinho. Muito. É muito. O meu respeito e a minha gratidão por cada uma das palavras que prolongou o sentido inicial do que foi aqui ficando. Cada uma das palavras com uma pessoa a respirar. A palavra certa é esta. Obrigada. 

Risotto de abóbora e pimenta preta

1 chávena almoçadeira de risotto (carnaroli) + 1 cebola pequena + abóbora-manteiga q.b. + metade de um pimento italiano vermelho + 1 copo de vinho tinto + 1 colher de sopa de manteiga + 1 litro de caldo de legumes + sal, azeite, pimenta preta e Parmesão q.b. 

Faz-se um refogado com a cebola picada, o pimento e a abóbora cortados em cubos pequenos em azeite. Depois de uns dois minutos, junta-se o risotto e mexe-se com cuidado, envolvendo bem o arroz. Quando começarmos a sentir que o risotto está bem envolvido no azeite, acrescenta-se o copo de vinho tinto e aprecia-se o momento:) Entretanto, continuamos a mexer, harmonizando bem. Quando o vinho evaporar por completo, junta-se metade do caldo de legumes (quente). Continuamos a mexer, até evaporar por completo. Assim que sim, o resto do caldo de legumes e a mesma coisa do momento anterior: mexer com aquela paciência tranquila de fazer risottos. E um pouco de sal. Até evaporar quase tudo. Pouco antes, acrescenta-se a manteiga e o Parmesão. Envolve-se muito bem e desliga-se o lume. Deixa-se "repousar" durante dois minutos, com a tampa do tacho entreaberta. Leva-se à mesa e tempera-se com bastante pimenta preta, já no prato. 
NB: Pode acrescentar-se os legumes verdes que nos apetecer. Se sim, devem ser introduzidos ao mesmo tempo da primeira dose de caldo de legumes (excepto se forem espinafres, que não devem ser demasiado cozidos). 

Mousse de chocolate e mais chocolate

NB: A base desta variação é uma receita da Nigella Lawson. Abdiquei dos 284 g de natas gordas e adaptei a quantidade de manteiga. É extremamente rápida de fazer. Não tem ovos, nem açúcar, nem precisamos de estar horas à espera para que fique pronta:) 

150 de marshmallows + 50 g de manteiga + 250 g do chocolate negro de que mais gostarmos + 60 ml de água quente + 1 pacote de natas

Simples. Tudo no mesmo tacho (excepto as natas), ao lume. Mexe-se, até que o chocolate e os marshmallows derretam. Quando acontecer isso, retira-se do lume e deixa-se arrefecer um pouco, mexendo de vez em quando. Entretanto, bate-se as natas. Depois, é só juntar à mistura de chocolate. Vai ao frio durante uma hora. No momento de servir, podemos acrescentar coisas, se quisermos. Ou então não. E ser só chocolate e mais chocolate.   

E creio que está. Que fica por aqui.

Shuffle.




























Aquilo que me pareceu difícil foi o silêncio. A possibilidade de silêncio em Roma. Não tivesse sido este o percurso. Assim silencioso. Imperceptível. Muito por causa dele. Por causa do amor dele pelas pedras esculpidas de Bernini. E então, um mapa por isso. Uma cartografia a obedecer a essa lógica. Igrejas. Fontes. Museus. Palácios. E foi possível, o tal silêncio que me parecia impossível. Neste lugar, muito especialmente: Chiesa di San Francesco a Ripa, em Trastevere. Vazia. Ninguém. Nem sinal de gente. Havia um êxtase em mármore. Contemplado num silêncio que me pareceu desconhecido. E neste sítio. Chiesa di Santa Maria della Vittoria. O êxtase de Santa Teresa. Mármore feito carne. Como se sentisse mesmo. As mãos. Os rostos. As tensões dos músculos. Tudo como se o mármore fosse habitado por respiração que não acaba. 
Uma outra parte do silêncio aconteceu por causa de um quadro. Na Galleria Borghese. Não é um daqueles que muitos procuram ver. Por isso, não havia ninguém na sala. O amor sagrado e profano. Há muito que queria vê-lo. Poder estar sentada a olhá-lo. As duas mulheres. A criança no meio delas. A água. As flores quase mortas. Silêncio também aqui. 
Silêncio numa mesa do Caffè Greco. Meio recolhida. Lá fora, o mundo parecia um ruído só. Muitas pessoas juntas, a formarem uma massa informe. E a impossibilidade de narrativa, por haver tantas. E tão juntas. Mas também nos caminhos mais caminhados é possível fazer um percurso pontuado por silêncios escolhidos. Os antiquários. Oásis de silêncio. Na Via del Babuíno. Na Via Margutta. Na Via Condotti. Difícil de imaginar. Mas sim. As portas fechavam-se e aquela ausência de perturbação. Só as vozes de quem estava. A explicar. A dizer as peças. A que tempo longínquo tinham sobrevivido. 
Estas coisas escritas são mais para dizer que sim. Que na Roma que parece esmagar, de tão bela, é possível o recolhimento. Pensei muitas vezes que aquela cidade é assim como uma mulher muito bela que não se deixa possuir. Permite a contemplação. Alimenta o desejo. Incendeia o imaginário. Mas não mais do que isso. Por ser estonteante, pode devastar. Estes lugares ficam como memória dos momentos em que há a possibilidade de retomarmos o nosso centro. Lugares em que nos detemos nos pormenores e nos esquecemos um bocadinho do todo. Assim, não ficamos (tão) esmagados. 
Memórias em shuffle. Como quando ouvimos músicas aleatórias, sem obedecer a uma lógica particular. A água das fontes. A mesa de um restaurante. Em suspenso. À espera que alguém a habite e lhe dê sentido. Palavras escritas em algodão. A dizer que o amor é uma revolução. As árvores muito altas, a tentar chegar a um céu mais azul. 
Com as memórias em shuffle, ficam dois livros. Um deles ensina a comida daqueles lugares. Os ingredientes. Os nomes das coisas. Fotografias muito essenciais. E aquela cadência das palavras escritas em italiano. O outro livro aconteceu-me. Eu não andava à procura, mas aconteceu. E parece-me o guia mais emocional. As entradas são tão poéticas quanto isto. O banco de jardim mais elegante para ler um livro. O beco mais romântico para roubar um beijo. O bar de jazz com os sofás mais confortáveis. A melhor fonte para chorar o fim de um amor. E indicações muito pragmáticas, a acompanhar a poesia. A melhor pizza. O restaurante mais antigo. A melhor carbonara. A melhor enoteca. Coisas assim. Há muitos livros sobre Roma. Muitos. Escolhi este. Assim pequenino. Assim breve. De trazer connosco. E seguirmos as coordenadas que entendermos seguir. 
Fica fechado (mais) este capítulo. Com música. Estas.




Como no cinema.





























É assim como se as pessoas fossem personagens. Nos hotéis. É como se fosse um filme. Ou um palco transitório. Habitado com reserva prévia. Ou então, não. Chega-se sem rede. Sem reservas. Se somos todos pequenas narrativas. Se somos todos feitos de tragédias mais ou menos (in)significantes. Se somos todas as pessoas que habitam em nós. Somos mais isso nos tais lugares onde chegamos, sabendo antecipadamente que iremos. Mas há o intervalo de tempo. O que acontece entre chegarmos e irmos.
A memória de uma cidade é, para mim, impossível de separar do lugar onde os nossos olhos se fecham até ao dia seguinte. Roma será sempre o Majestic. Roma será sempre a Via Veneto. As árvores no Inverno. As luzes dos carros. O céu, visto de uma daquelas janelas altas. E a sensação de ser um lugar do género de baralhar as cartas. Ou as premissas. O primeiro andar faz com que pareça que o tempo retrocedeu. As madeiras respiram, austeras. Os espelhos dizem que há muito que muitos rostos tentam decifrar-se neles. E depois o resto. Os outros lugares deste lugar. Habitados pelas pessoas que me parecem personagens. Tento adivinhar as narrativas. Desde pequena. Ler os sinais. Se parecem estar felizes. Creio que procuro sempre perceber as maneiras diferentes de se ser feliz, nos rostos cruzados. Porque fui aprendendo que se é feliz de muitas maneiras diferentes. E infeliz também. Ler essa parte é o mais complicado. Aquilo das pequenas tragédias. Mas uma humanidade partilhada, comum. Guardados, os rostos. As narrativas transitórias. E o lugar. Com esta música. Com estas imagens. Aconteceram ali. E há qualquer coisa de dádiva, na música que acontece sem sabermos que ela iria acontecer. Sem escolhermos. Como no cinema.

Babette, Via Margutta 1.


























Os caminhos que nos levam aos lugares que nos fazem bem, são difíceis de reconstituir. Ainda assim, há algumas coordenadas. Uma antecipação prévia de uma viagem. Num dia de muita chuva, algures em Outubro. Um nome que não é só um nome. E a certeza de que teria de ser. Iria lá. Ao tal lugar que era uma homenagem ao filme A Festa de Babette. Como o blog dela.
Fui muito feliz aqui. E com reiteração, porque não quis que se resumisse a uma vez. Por isso, é como se este lugar fosse todas as refeições em Roma. Houve outros lugares, outras coordenadas. Mas se alguém me perguntasse por um sítio onde se pudesse estar mesmo bem, diria este. Babette. Na Via Margutta. O primeiro número da Via Margutta. Mesmo em frente à loja dos vestidos lindos. Da loja que só tem vestidos. Uma coordenada emocional, para não me esquecer nunca do caminho até este lugar. A juntar à coordenada inicial. A do meu afecto. Por ela. Pela Babette. Que é uma pessoa assim como a personagem do filme. Melhor. Muito melhor. Porque existe mesmo. E é minha amiga.
Ficam fragmentos do lugar. Uma imagem do Bolo Babette. Delicioso, de tão indecifrável. E a música que é este sítio na minha memória de fechar os olhos.

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