Se não fizesse parte destas páginas, seria como se tivesse sido rasgada. Seria uma espécie de elipse. Não só porque estas páginas têm acolhido a vida. Porque a vida lhes tem servido de suporte e nunca o contrário. Daí o ritmo aleatório. Fragmentário. Daí o escrever por querer muito. Por não poder ser de outra maneira. Ou então não. Não conseguir dizer nada, às vezes. De vez em quando, a sensação de não acrescentar nada ao mundo é mais determinante. E acontece não conseguir escrever. Creio que fará parte. E integro isso como sendo sinal de coisas boas. Essa noção é libertadora. Renova. Desfaz coisas para dar vida nova a outras. Um prelúdio necessário, este. Para me lembrar que existir aqui não é uma coisa de calendário. Agora o resto. A tal página que, a não existir, seria como se tivesse sido rasgada.
Não o conheci. O que significa uma série de coisas muito básicas. Não lhe ouvi a voz. Não lhe senti os passos cadenciados. Não consigo recordar nada do que foi recordado. Nada do que embargou a voz dos muitos que estiveram presentes, ao lembrá-lo. O nome está naquela inscrição. Mas vou dizê-lo inteiro. Alberto Casimiro de Almeida Dias. Nasceu aqui. Na casa onde existo todos os dias. "Uma casa com ADN", como disse um dos seus alunos. Ao lembrar os que aqui nasceram. Gente do teatro. Da ciência. Médicos que foram tanto, que são nomes de hospitais lá no Sul. Diásporas. As pessoas surgem num lugar, numa hora determinada. E depois disseminam-se. Foi farmacêutico. Mas foi, acima de tudo, professor. "O nosso Mestre". Ouvi vezes sem conta essa formulação, no sábado. Isso e as histórias que vieram contar, face aos seus. Todos reunidos. Muitos. Vindos de longe, uns. De perto, outros. Muitas histórias diferentes ali. Pelas profissões. Pelos percursos. Mas a matriz era a mesma. O "homem alto e bom", que dava aulas "sem gritos". Com um sentido de humor à solta, numa altura em que a autoridade dos professores era uma coisa de regime. Um professor que passeava com eles pelos campos, para que aprendessem as plantas assim. A observá-las na terra. Uma declinação com alma dos "conteúdos", dos "programas", das "matérias". Integrar tudo na vida. Fazer com que nada do que acontecesse numa aula fosse distante ou grave. E rir. Muito. Disseram tantas vezes isso, que se riam muito com as coisas que dizia. Reproduziram-lhe as expressões. As formulações. Tantos anos e sabiam fórmulas químicas e tudo.
Por esta altura, os professores parecem peças numa engrenagem. Tudo o que gravita em torno parece demasiado avassalador. Tudo é tão mais importante. O que determina nem sempre é o que é real. Aprender tornou-se um meio para qualquer coisa. Tem de "servir" para qualquer coisa. Mede-se o que se aprende consoante o objectivo. O problema é que parece que os objectivos estão a transformar-se em entidades nebulosas. Há demasiadas nuvens. E negras. Como ouvi dizer há uns dias a directora do FMI. As metáforas são mesmo convenientes. Tinha ideia que o "economês" não era compatível com a metáfora. Devo estar enganada. Devemos estar todos enganados. Pena é as nossas vidas serem determinadas por metáforas apressadas e incipientes. Pena é que tudo pareça tão despido do seu valor real. O que significa que se dá demasiado relevo a coisas que não merecem isso. E que se retira humanidade ao que realmente permanece e é importante. Penso assim. Isto. Que enquanto as supostas "elites" se organizam e olham ao que lhes interessa, milhões de pessoas fazem coisas todos os dias. Muito objectivas. Levantam-se e fazem sapatos numa fábrica. Levantam-se e cansam as pernas e as costas numa cantina de escola, para dar de comer a alunos. Levantam-se e tratam doenças que fragilizam corpos. Levantam-se e trabalham a terra, para que dê alguma coisa. Levantam-se e ensinam o melhor que podem. Será esta sequência suficientemente objectiva? Isto mede-se. É quantificável. É verificável. Estas pessoas existem mesmo. Estas pessoas não são gráficos. Nem dados estatísticos. Estas pessoas têm carne e pele. E choram. E ficam cansadas. E pensam muitas vezes que não dá para aguentar mais. E têm medo. Vê-se, nos olhares que se cruzam com os nossos, o medo. O não conseguir antecipar. Pensar só que de uma hora para a outra, alguém usa a metáfora errada lá longe e isto cai tudo. Assim sem mais. Com uma metáfora. Depois de se dissecar um gráfico ou outro, muito possivelmente. O céu fica negro. Mesmo que até seja Primavera.
Só para lembrar as pessoas. Na pessoa de um professor. Só para lembrar que terá sido poesia tão material, que décadas depois da sua morte, reuniu centenas. Rostos comovidos. Marcados pelo tempo. Mãos apertadas. Abraços longos. Os reencontros são assim. Os pretextos para os reencontros fazem isso. Emocionam. Comovem. São maiores do que nós. E isto: juntam-nos. Num dos discursos, alguém disse que o que nos salva é a emocionalidade. O salvífico será a emoção. E uma outra coisa, que a solução para isto tudo que acontece e que atemoriza, será colectiva. Subscrevo. Aliás, escrevi, no caderno que anda sempre comigo. Registei assim. A escrever. Não conseguia fotografar o que estava a acontecer. Talvez pela noção de filtro. Não queria filtrar nada. Queria absorver. Integrar. Como é que se diz? Viver para contar. Foi assim. Vivi para contar. Para que aqui fique a memória do avô que inunda o olhar do meu marido. A primeira vez que lhe vi lágrimas nos olhos, foi quando falou no avô. No sábado foi assim. Levantou-se depois de o chamarem. Ia preparado com um papel, para evitar perder-se. Mas a emoção salvou-o. Alguém tinha dito antes dele que a emoção salva tudo. Ele foi um rosto para essa noção. E deixou de ser uma noção. Água com sal, nos olhos de todos. Algures, o avô "alto e bom" estaria a repetir a fórmula química para isso. A tocar as lágrimas e a dizer: "Estás a ver como era fácil?"
Aos alunos do Dr. Alberto Dias. A nossa homenagem.