Educação Sentimental.







Digo de memória. Uma e outra vez. As palavras todas. Umas a seguir às outras. Cada uma a significar. Cada uma para não me esquecer. (...) sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. Uma educação sentimental subversiva aparentemente inofensiva. Coisa mínima nº 1: fazer uma sopa. Coisa mínima nº 2: antecipar o sabor final enquanto se cumpre o ritual de a fazer. Coisa mínima nº 3: saber que está a chover e que aquele pedaço de tempo é irrepetível, irreproduzível. Coisa mínima nº 4: enquanto a cadência acontece, a melancolia electrónica de música minimal. Coisa mínima nº 5: a sopa é servida. Quente, em pratos fundos e elementares. Coisa mínima nº 6: aquele silêncio antes das palavras. Coisa mínima nº 7: as palavras por causa de uma sopa e aquilo que se sente. Quase imperceptível, esta sequência. Não fosse aquilo. Aquilo de querer sentir as coisas mínimas extraordinária e desmedidamente. Não fosse isso e sim. Seria imperceptível, insignificante, pequeno. Mas não.
A Educação Sentimental de Bernardo Soares. Aplicada a uma sopa que pede Inverno. Como se fosse uma espécie de invocação. Mais chuva. Mais nuvens cinzentas. Mais vento. Mais frio. Só para saber ainda mais. Só para saber ainda melhor.
Creme de feijão manteiga e alho
1 cebola média + 2 dentes de alho + 1 courgette + 8 colheres de sopa de feijão manteiga previamente cozido + 3 cenouras + 6 cubos de abóbora + azeite, sal, coentros e lascas de um queijo de pasta dura (Parmesão, Ilha, Manchego,...)
Numa panela, leva-se ao lume a cebola e os dois dentes de alho em azeite. Faz-se um refogado leve e adiciona-se um pouco de água. Entretanto, junta-se os pedaços de courgette (sem a casca), o feijão, as cenouras e a abóbora. Cobre-se com água, junta-se um pouco de sal e fecha-se com a tampa. Quando começar a ferver, reduz-se o lume e deixa-se estar a cozer durante meia hora. A seguir, passa-se tudo até ser creme. Rectifica-se os temperos (mais sal e azeite, se necessário) e serve-se. Antes de ir para a mesa, isto: lascas do queijo curado que nos apetecer, coentros picados e um fio de azeite.
E o grande de tudo o que acontece. Uma música. Um livro. Um lugar. Uma pessoa. Uma sopa. Grande, a vida. Cheia de tantas coisas mínimas. Dizem que no fim da estrada, são essas coisas mínimas que tornam as nossas vidas extraordinárias. Não há como saber antes. Mas dá para isto de dizer trechos como se fossem orações, ouvir música que é como arquitectura despojada e fazer uma sopa.

10 comentários:

  1. Sim. Extraordinária e desmedida essa capacidade de sentir as coisas "mínimas" da vida. Uma vida que se tece e se respira de pequenos mas grandiosos gestos. Expressão de humanidade, construção de felicidade!
    Quando à mesa a minha filha me pergunta de que é feita a sopa,eu respondo-lhe que é feita de amor!
    Obrigada pela proposta de leitura.

    Com carinho,
    Isabel

    ResponderEliminar
  2. A Mar está de parabéns. Hoje por três motivos: pelo lindo texto que escreveu, enaltecendo a felicidade das pequenas coisas. Depois por ter sido concedido um importante prémio a Ana Teresa Pereira, autora de que ela gosta muito e que amplamente divulgou neste espaço. Por último, lendo o editorial de uma nova e interessante revista portuguesa, URBANA, assim se chama, fala do restaurante que muito encantou a Mar na rua do Alecrim. Bom gosto e simplicidade.
    Não é mesmo especial, a nossa Mar?
    Beijinhos.

    ResponderEliminar
  3. Uma sopa é tanto e tantas vezes também tão simples. As coisas mínimas são realmente o que podemos agarrar com as mãos. Cabe a felicidade na palma de uma mão, assim. Sem combinar, vejo que a Lusitana se referiu ao mesmo prémio à Ana Teresa Pereira. Coincidência!
    Descansa. Precisas.
    Babette

    ResponderEliminar
  4. Olá Isabel:

    O valor das coisas acaba por estar em nós. Isso é irremediável, creio. E vai nos dois sentidos, o que significa que esta ética (ou o nome que houver para isto) pressupõe que as coisas boas e belas, ainda que pequenas, nos fazem um bem sem medida. E há o outro lado. Que é ser-se alvo fácil para o que magoa. E aí, também as repercussões são sem medida. Por mais imperceptível que seja o que fere.
    Muito obrigada por esse trecho breve. Muito. Sim, as sopas são feitas de amor. Creio que é a parte da refeição que mais alegria me dá. De fazer. E no depois.

    Carinho também para si.

    Mar

    PS: Cheguei demasiado tarde a casa. Mais uma vez. Tentei ligar-lhe, mas não deu sinal. Amanhã é outro dia:)

    ResponderEliminar
  5. Olá Lusitana:

    Muito merecido, o prémio para a Ana Teresa Pereira. Tem uma voz muito própria. Muito depurada e essencial. Os livros dela chegaram-me pelo Vasco. Há anos. Ele ofereceu-me porque uma das personagens tinha o meu nome e parecia ser assim como eu era aos vinte anos. Depois disso, li todos. Sempre. Assim que havia mais um livro, eu comprava sem pensar. E gosto da liberdade dela enquanto escritora. Da aura de mistério e de silêncio da expressão dela.
    Este espaço é pequeno, minha Lusitana. Dificilmente divulgará algo com amplitude. Agradeço a generosidade, mas é assim que penso esta existência virtual.
    A sua Mar não se sente assim muito especial. Mas gostou muito de ler alguém a escrever isso. Obrigada a si. Especial é a Lusitana, que é de gostar logo:) Foi assim que aconteceu.

    Um beijo para si. E a minha gratidão outra vez.

    Mar

    ResponderEliminar
  6. Olá Babette:

    A sopa é um exemplo clássico do que é pequeno e aparentemente imperceptível. As crianças normalmente não acham piada. Os adultos comem muitas vezes porque sim. Mas uma sopa encerra tanto. Conforta logo. Apazigua. Nutrição literal e emocional, a que dá.
    Reparei logo nessa coincidência. E sabes, um cenário reiterado nos livros dela é Londres:) Outra coincidência a juntar, vês?
    Vou descansar, sim. É imprescindível, neste momento. Ainda assim, continuo a fazer sopas de Inverno:)

    Um beijo.

    Mar

    ResponderEliminar
  7. Olá, minha querida. Tenho andado ausente, doente. Esta semana foi muito difícil. A sensação foi a de que me andei a arrastar. Só hoje vim aqui ver o teu texto, a tua sopa, a tua ode às pequenas coisas, aos simples prazeres associados à comida.
    Vou tentar ler a tua escritora. E parabéns :)
    Um beijo e um bom fim de semana.
    Ilídia

    ResponderEliminar
  8. Na minha opinião a vida só faz sentido se dermos valor às pequenas coisas, o que nem sempre é fácil. É necessário haver pequenas coisas que nos dêem prazer e nos confortem para minimizar o que nos faz mal.
    Uma sopa quente e reconfortante é simples e ideal para tornar o dia melhor!
    Um beijo,
    Graça

    ResponderEliminar
  9. Olá Ilídia:

    Já li que sim. E já escrevi a propósito. Espero que estejas recuperada, já. Com aquela energia:) Com alguma sorte, a literatura muito sensorial da Ana Teresa Pereira pode ajudar.

    Um beijo de boa semana.

    Mar

    ResponderEliminar
  10. Olá Graça:

    É mesmo por aí, o espírito. O espírito das coisas pequenas que são grandes. Nós é que passamos a vida à espera do que está para acontecer e que há-de ser muito e mais e seja o que for. Como não se sabe, dá para uma coisa pequena como esta: fazer uma sopa. E tudo fica melhor:)

    Um beijo para si.

    Mar

    ResponderEliminar

AddThis