O Verão tem de ser possível ainda assim.


























Por esta altura, lembro-me sempre do carácter esmagador destes dias. Os que começam algures no início de Julho e que se prolongam até ao final de Agosto. São os dias em que é suposto fazer alguma coisa, ir a algum sítio, viver coisas pelas quais se esperou um ano inteiro. E isso pode ser esmagador. Assume muitas configurações. Pode esgotar-se no clássico "onde vais?". E ficar pela réplica. Ou nas versões mais de "competição", pode declinar-se por enumerações sem outro sentido que não o de esmagar o outro que interpela. Fui. Estive. Vivi. Experimentei. Vi. Conheço. Foi tudo maravilhoso. Não se diz nunca que até foi maçador em alguns momentos. Não se assume nunca as divergências que estes dias motivam. Por serem mais evidentes, se calhar. Por estarem mais ali, à frente, de inequívocas. Mas estas coisas não costumam fazer parte dos relatórios omissos.   
Estes dias também têm essa componente que não se verbaliza assim muito. A de ser suposto e pronto. Férias por ser imperativo. O doce do tempo com tempo, sim. Muito. O de se falar com os filhos e escutar-lhes as gradações. O de olharmos para o lado e sentir que com tempo ainda sabe melhor continuar a olhar para o lado. Isso é mais ou menos interior. E não se paga. Não é sujeito a reserva antecipada. Mas há o resto. O outro lado. O que acontece ao dizer que não se vai a lugar nenhum. Que não há por onde nem como antecipar. Que se faz contas à vida para saber se há para o supermercado. Para pouco mais, por este tempo que ainda vai sabendo a Verão. Apesar de tudo, o sol não se paga. Mesmo que alguns dos sítios onde brilha peçam a conta. Faz parte. Mesmo que num universo paralelo, conceba hipóteses em que essa luz é só imensa, por chegar a todos. Chamam a estas coisas de utopias. Uma das primeiras palavras em que tropecei, algures pelos doze anos. De ir ver ao dicionário o significado, na altura. Mas vou sabendo que aquela entrada está sempre a renovar-se. As utopias são cada vez mais prementes. E distantes, de muitas maneiras que nos ultrapassam.
Os registos aqui são pela vertente luminosa das coisas pequenas. As da existência quotidiana e as outras. Do que podem encerrar de significativo, por serem ou terem sido vividas. Mas o tempo todo, lembro-me interiormente de quem não pode. Não com aquela benevolência caridosa que pressupõe distanciamento. Uma profunda humanidade, nos rostos todos que não podem. Por poder ser o meu. Ou o de quem lê isto. A vida vai dando sinais de que arrisca sempre tornar-se ainda mais instável. Ainda mais imprevisível. Ainda mais esmagadora. Convém nunca esquecer isto. Eu sei que não me esqueço.
Por mais que a vocação deste espaço seja positiva. Por mais que queira só dar coisas que façam bem. Por mais que todas as coisas que já enunciei, há esta noção de bastidores. Enquanto escrevia os últimos posts, muito especialmente. Com uns números presentes. Que não páram de aumentar a cada dia. Números que são rostos. Pessoas que trabalhavam e tinham expectativas. Pessoas que cumpriram a parte delas do contrato social e que estão em filas que não acabam. Pessoas da minha idade que não conseguem mais do que uns meses a trabalhar num lugar. Depois vão para outro. E tantas vezes, até que desistem e vão embora. Pessoas que são nós. Todos temos sonhos. Todos temos mágoas e coisas que não fizemos bem. Todos temos direito a dizermos o que somos. É assim mesmo, nas conversas mais elementares. Dizemos o nome e a seguir, a profissão. E não ter isso? Não saber o que dizer nem como nos situarmos na ordem social que parece levar tudo à frente. Ainda assim, há-de ser possível Verão. Onde houver um bocadinho de sol que não se pague. Onde houver a persistência de um sorriso. Ou uma criança feliz por estar a comer um gelado. Mesmo que os pais não possam ir com ela à praia. Verão ainda assim.

Entre o dia de ontem e o de hoje, andei a ler um blog que dá rosto aos números. Um rosto e uma história por dia. Até chegar a outro número. 365. Todos os dias, mais um rosto. Em vez de um número.

http://blogues.publico.pt/odesempregotemrosto/

Com isto, a noção de que o trabalho de fundo dos jornais é o que vai fazendo a diferença no mundo que é assim como um barco num mar tempestuoso. Por nos atirar de um lado para o outro, a ver se não conseguimos parar em momento nenhum. Os jornais fazem isso. Ajudam-nos a parar. Precisam de tempo. Nosso e dos que o fazem. E com tempo, o pensamento é mais livre. Fica à solta. Não fica só pelo que lhe é atirado pelas vozes frenéticas e esquizofrénicas da televisão. Os jornais de todos os dias, com páginas a sério, escritas por gente a sério, também são coisas d' amar.

10 comentários:

  1. A tua lucidez. Sim, tem de ser possível. Apesar da nossa aparente dessincronia de hoje (coincidência!...) sei que partilhamos esta opinião. Porque as duas valorizamos muito as coisas pequenas que cabem nos dias e que não são nada tangíveis ou materiais. O sol na cara, uma brisa à beira-mar, um dia sossegado, crianças a brincar. O Sol quando nasce é para todos, dizem. Devia ser assim. Mas reconheço também a incapacidade de conseguir atender a estes pequenos nadas quando se luta pela sobrevivência. Quando se contam todos os passos para saber se sim. Se vai chegar ao final do mês. Se na mesa vai haver comida. Não antecipar como serão os dias que se seguem. Ainda assim tem de haver momentos em que sim. Em que será possível um rasgo de Verão. De felicidade e gratidão por se estar vivo. E o "ser suposto" nestas coisas não interessa nada. Ser suposto o quê? Esbanjar, só porque se tem? Dizer que férias em casa não são férias? Coleccionar fugas e destinos, que muitas vezes são apenas fugas de nós próprios? Podes crer que férias assim são mais vazias. Pobres em muitas acepções.
    Um beijo concordante ;)
    Babette

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  2. Parecia uma coisa que não era. Mais por aí. Quando vi o teu post de ontem, logo a seguir a ter publicado o meu. Parecia uma espécie de réplica pelo contraste. Não gosto nada desse tipo de ambiguidades. Neste e em outros capítulos, acho que sou bem resolvida. Aquelas coisas de que falamos algumas vezes. Gosto de ver mulheres bonitas, bem vestidas. Isso acrescenta-nos. Não é ameaça nem diminui. Gosto de determinadas representações associadas a universos que também permitem interpretações nem sempre justas. Nem sempre certas. Em todo o caso, sim. A lucidez ajuda muito. A consciência. De si. E do outro. Consciência. As coisas com esse traço. Que permite que nos situemos.
    Náusea. Só isso. Aquilo das "fugas". Das "escapadelas românticas", como dizem as pessoas nas revistas. Escapar a quê, exactamente?
    O exercício da contenção e da frugalidade é fundamental. Neste nosso contexto. E em todos os outros. A cozinha também ensina essa virtude, de resto. A juntar a muitas outras.
    Quanto aos "coleccionadores", escuto a maior parte das vezes. Guardo silêncio. Enquanto posso. Quando não, aquela Mar que leva tudo à frente, aparece:) Para voltar à serenidade. Tal como o mar.

    A mesma concordância:) Um beijo.

    Mar

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  3. Ao ler o teu texto, lembrei-me das muitas pessoas da minha ilha que nunca saíram de cá. Pessoas para quem comprar uma passagem de avião não é uma possibilidade. No entanto, conseguem ser felizes com o que temos cá: o sol, o verde, o azul do mar, as festas populares... Se calhar mais felizes do que muitos dos que fazem as tais "escapadelas".
    Gostei muito do teu teu texto, minha querida. Como sempre, uma reflexão certeira acerca da nossa atualidade. Vou espreitar o blogue de que falas.
    Um beijo da tua amiga dos Açores :)
    Ilídia

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  4. Olá à minha amiga dos Açores:)

    As coisas vão surgindo. A realidade é o que é. E sabes bem como a realidade nos chega bem antes de chegar aos jornais. Na escola. A escola é um espelho. E sei que para o ano será ainda pior. A minha natureza é optimista e onírica, mas com uma ligação muito forte ao real.
    Vale o que vale, o texto. Fica aqui. Bom que te tenha dito coisas. Obrigada. E sabes, vou aprendendo que a vida tem muitas possibilidades. Que a realidade é diversa. Ainda bem que sim.

    Um beijo. Que haja sol na tua ilha. Depois das tempestades.

    Mar

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  5. Na noite em que estivemos a ver o post falámos no assunto e em mais. Para além. Das nossas recordações de verão também. Muito certo o teu texto que só hoje leio, cheio de lucidez como diz a Babette. Muito que muda e muito que se mantém como se nunca o dia fosse outro, um dia lá atrás. Um gosto ler-te. Cada vez mais. Um beijo do nosso verão.

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  6. Mar,

    Nunca me esqueço do que significa 'frágil', 'vulnerável', apesar da suposta maturidade, da suposta sabedoria, da suposta estabilidade, é bom que nunca nos esqueçamos.
    Não é preciso sofrer, mas é preciso sentir que não sabemos de facto, o que é que é 'para sempre' e 'o que não'.
    Por isso, ser capaz de dar valor à vida e ser compassivo ao mesmo tempo, é trabalho 'de casa' para toda a vida. Para sempre, digamos.

    Há anos e anos, desde sempre, creio, que passo férias na Meia Praia em Lagos, mas este ano, por motivos vários, passei férias no meu sofá, na minha casa de todos os dias, com as 'minhas coisas'.

    Parar , pensar, sentir, acreditar. Ir outra vez. Voltar.

    Um beijo.

    Jo

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  7. Olá Pipinha:

    O muito que muda e que se mantém. Independentemente da nossa vontade. Das coisas que pensamos. Enorme, a nossa amizade. Desde pequenas. Por tudo o que partilhamos. Por cada uma das nossas divergências. Obrigada a ti, que és minha amiga:)

    Um beijo feito do Verão que fomos tornando nosso.

    Mar

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  8. Olá Jo:

    Muito certa, essa ideia de um trabalho de casa para sempre. Plena, pela lucidez. Pela densidade.
    E isso da fragilidade. De como tudo parece sujeito a revisão. E com isso, nós. Nós a sentirmo-nos parte integrante dessa fragilidade. Dessa vulnerabilidade. Tenho aprendido muito com os momentos em que declino essas e outras palavras.
    Lagos também faz parte de si. Faz sempre parte de nós, aquele mar. Onde quer que estejamos, a memória daquela água e daquela luz, está em nós. Guardado, tudo. Até ao regresso a haver.

    Um beijo com o meu carinho. E a minha gratidão.

    Mar

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  9. Já li este post várias vezes e nunca fui capaz de comentar por não saber por onde começar.
    É verdade que quem tem emprego é um felizardo, embora não se saiba até quando. Nada é garantido!
    Só comecei a passar férias fora da ilha depois de começar a trabalhar e não me ausento todas as vezes. Mas nem por isso deixo de aproveitar o verão, enquanto posso. Mas muitas vezes penso o que seria da minha vida se ficasse desempregada!
    É necessário dar valor às pequenas coisas para se ter ânimo para enfrentar os problemas!
    Um beijo,
    Graça

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  10. Olá Graça:

    Próxima desse não saber por onde começar, eu. A realidade é como é. Mas penso persistentemente que mesmo que assim seja, isso não significa que possa ser ignorada. As viagens, os lugares, as coisas belas que nos vão acontecendo. Tudo isso deve acrescentar-nos, acho. E com isso, relativizar.
    Nada de adquiridos. Nada disso. A devastação é sempre possível e vertiginosa. Procuro não me esquecer desse princípio. E de um outro: é imenso, isto de se estar vivo. Poder viver mais um Verão. Mais um Outono. Estar aqui. Tudo o mais, vai acontecendo.
    O meu carinho para si, Graça. Onde quer que esteja.

    Mar

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