Devagar.








Entre aquilo que queremos que aconteça e aquilo que realmente acontece, há uma distância inqualificável. A separar. A fazer parar. A dar que pensar. Creio que não consegui identificar as causas para o que aconteceu por estes dias. Sabia só que o que quer que fosse, teria de ser bebido até ao fim. Mesmo que esse fim não fosse inteligível ou categorizável. De vez em quando, dava jeito que o nosso interior pudesse ter gavetas ou armários. Assim, as coisas poderiam ser arrumadas. Organizadas. Mas não. Não a uma série de coisas. Não a uma mesa. Não a comida feita com alma. Só deu para manutenção. Ir fazendo. Talvez voltasse tudo. Aquilo de ficar bem só por fazer comida. Aquilo de numa mesa ir colocando bocadinhos de coisas que sozinhas parecem não ter grande significado. Mas que ganham sentido por acontecerem juntas, depois de colocadas numa mesa.
O reverso do meu encantamento é passar por este processo. O reverso é acontecer pensar "para quê". E isso aplicado a muitas dimensões. Quando é assim, é preciso deixar sedimentar. É preciso dar tempo. Até que volte a acontecer. Não pode assentar em supostos ou em calendários. Faltaria aquilo. Irremediavelmente. Aquilo de ser verdade. Era isso.
Ontem aconteceu como eu achava que teria de acontecer. Sem mais. Sem marcar antecipadamente. Sem planear. De uma hora para a outra, literalmente. Seria eu a fazer o almoço. Seria eu a pôr a mesa. Queria que fosse assim. E aconteceu assim. A mesa cá fora. A acontecer em mim daquela maneira que nunca é a mesma. Comida com a minha alma dentro. Coisas assim.
Prolongou-se, o almoço que aconteceu de improviso. Estendeu-se, preguiçoso, até às seis da tarde. À medida que a conversa ia seguindo caminhos mais ou menos erráticos e aleatórios. Bom que assim seja. Conversa à solta. Num contexto azul e lento. A coincidir com o caracol no centro da mesa. Símbolo da lentidão. Do tempo demorado, com densidade. Devagar. É assim que nós sabemos que as coisas estão a acontecer mesmo. A perdurar. Devagar.
E fica a música que fez com que a mesa fosse assim e não de outra maneira. Por ser muito devagar, nos primeiros minutos. E depois, não. Como as coisas que precisam de acontecer com tempo, no fundo. E que depois surgem sem mais. Esta mesa, este almoço, esta música. Tudo sem mais. Tudo devagar.

10 comentários:

  1. Querida Mar,

    Já tinha sentido a sua ausência. Imaginei-a longe. Numa cidade com história. Afinal estava próximo. O seu texto deixar-me-ia preocupada caso não estivesse associado a estas fotografias. Intensas na cor e no simbolismo. São azuis fortes, que se vão impor seja lá em que situação for.

    Um beijo

    Fa

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  2. Há alturas em que é mesmo necessário o silêncio, o nosso único refúgio. E não se encontra explicação para isso, só se sabe que a energia falta e a tristeza apodera-se. Mas passado algum tempo recupera-se energias e já se consegue pôr luz naquilo que se gosta de fazer, e aproveitar cada momento.
    A sua mesa está linda e gostei muito do pormenor do caracol!
    Que saibamos aproveitar bem os bons momentos da nossa curta vida!
    Um beijo com carinho
    Graça

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  3. Aconteceu assim. Como querias. Com os nossos guardanapos presentes num almoço com tempo. Sem um relógio a ditar regras. Por agora já começaram os teus (e os meus) dias com horas certas. Aqueles cheios. Nesses dias, um segundo para pensar na beleza de uma mesa como esta vale muito. Respira tranquilidade. E tem qualquer coisa de um retorno. Ainda que te possa parecer que vem devagar.

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  4. Olá Fa:

    Transitória. Sempre. De vez em quando, acontece-me aquilo que acontece a cada uma de nós. Queria ser capaz de fazer as mesmas coisas de sempre. Com o encantamento de sempre. E não acontecia nada. Esta mesa significa muito. Dou-lhe significados interiores que me fazem bem só por si. Uma mesa em tons fortes, no jardim de uma casa que é assim como essa cidade de que falou.

    Um beijo.

    Mar

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  5. Olá Graça:

    Absolutamente necessário, esse tempo silencioso. E este universo pode tornar-se ruído, se não houver essa reserva. Olharmos para as coisas. Para nós. Pensarmos o que acontece. O que queríamos que acontecesse.
    Terei sempre um carinho especial por esta mesa. Fico ainda mais feliz por ter gostado da mesa posta com a luz que me faltava. A tal luz que faz com que saiba que o tempo disponível é precioso.

    Um beijo. E a minha gratidão.

    Mar

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  6. Olá Babette:

    De que maneira, os dias com horas certas:) Conciliados com aspectos que querem prolongar uma certa ideia de Verão. Coisas para contar. Amanhã sim. Dei-me conta de ser tarde. Curto, o tempo.
    Este almoço foi tão de guardar. Passámos a tarde ali. O retorno, sim. Ia passando tempo e não me apetecia este exercício, tu sabes. Achava que isto e uma série de outras coisas nunca adiantam nada, afinal. Faz parte.

    Um beijo.

    Mar

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  7. Linda, a mesa que marca o fim do teu silêncio. Às vezes acontece, simplesmente não apetece. Fico feliz por ter passado, pois sentimos a tua falta.
    Já li o teu e-mail. Amanhã respondo-te, depois de falar com a nossa amiga :)
    Um beijo da tua amiga,
    Ilídia

    P.S.: Ia jurar que já tinha comentado este post. Às vezes o blogger prega-me partidas. Deve tê-lo comido :)

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  8. Olá Ilídia:

    Claro que sim. Necessário, o silêncio. Só não gostava da parte de não me apetecer pôr mesas nem fazer comida. Mas o silêncio é muito importante. Para nos perspectivarmos melhor, talvez. E sabes, passei o mês de Agosto a deixar aqui comida. As pessoas também precisavam de férias...de mim:)

    Um beijo para ti.

    Mar

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  9. No mês de agosto, pelo menos durante quase todo o mês, também estive assim: em silêncio. O meu cantinho esteve parado. Eu e o meu marido, também professor, fizemos parte da equipa de horários da escola e o trabalho foi tão intenso que quando chegávamos a casa só apetecia o silêncio dos fins-de-tarde. A cozinha esteve a meio-gaz.As visitas aos meus blogs favoritos foram quase inexistentes.
    Foi um mês que passou devagar. Com os filhos de férias com os avós na ilha do Pico, os dias tornaram-se ainda mais silenciosos. A casa andou muito organizada, porque parada, sem a vida que lhe costumava percorrer os corredores e deixar os brinquedos esquecidos e fora de lugar.
    Por outro lado, toda a atmosfera se propiciou à reflexão e é importante que todos nós tenhamos um tempo para nós de vez enquando para arrumarmos toda a informação que flutua na nossa cabeça, sem que existam gavetas para a catalogar e arquivar.
    Gostei muito deste post e da mesa que faz lembrar o mar das praias de areia branca. Uma mesa que traz esperança portanto, porque repleta de substância no conteúdo.
    Um abraço desta amiga ainda virtual.
    Patrícia

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  10. Olá Patrícia:

    Agosto é mesmo assim. Devagar. Faz parte desses dias, essa cadência lenta e morna. Mais ainda quando os filhos estão à distância e as casas ficam silenciosas. Tudo tem sentido mais ou menos silenciosos.
    Obrigada pela maneira como gostou desta mesa.

    O mesmo abraço para si.

    Mar

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