Incidente de recusa.




























Com um bocadinho de tempo e as coisas encontrarão lugar. Tem andado tudo muito depressa. O mundo. O mundo é que anda muito depressa. Difícil de acompanhar. Quase não dá para entender muito bem. Imagino as perplexidades todas, antes deste tempo que caminha em passo apressado. Ainda assim, era capaz de ser um bocadinho menos complexo. A sensação é a de adormecermos a saber umas coisas. A contar com outras. E depois não. A sensação é a de ouvirmos uma coisa enquanto almoçamos a caminho do resto do dia, a esperar por favor que à hora de jantar alguma coisa tenha permanecido quieta um bocadinho. Raramente é assim. Aquilo que um tribunal diz ser de uma maneira e não poder ser de outra, afinal não é bem assim. Pode ser passível de um recurso qualquer, de um incidente de recusa obscuro. E um senhor com ar sério pode dizer que não conhece bem o senhor de aspecto sinistro que andou a fazer pela vida. Mas a seguir, o que vem sempre a seguir. Diálogos surdos e em diferido. Comissões que justificam a existência de pessoas que também andarão a fazer pela vida. Audiências. Comentários. Recados. Declarações. E mais palavras que não significam nenhuma das entradas dos dicionários. Plásticas. Moldáveis. Pena não ser como nos tribunais. Pena não poder dar para um ou outro incidente de recusa. Dava jeito.
Um livro deixa isto tudo lá para trás. Um livro faz-nos estar muito quietos no lugar onde escolhermos estar muito quietos. Um livro sobre a morte que nos diz que não é para ter medo na capa. A ver se lá dentro se chega à mesma conclusão. Seja o que for que isso signifique. Talvez signifique coisas diferentes para cada um. Estará certo, isso.
Também ajuda isto. Fazer um bolo salgado para aqueles minutos de antes de jantar. Com um livro por perto. Para nos lembrarmos do que realmente importa. Sermos capazes de fazer comida que nos faz bem e aos outros. E do silêncio que só acontece assim. A ler um livro que interpela sem fazer barulho.

Bolo salgado de aipo e alho francês

2 talos de aipo + 2 alhos franceses + 10 azeitonas pretas + 5 ovos + 200 g de farinha + 100 ml de leite + sal, azeite, pimenta preta e queijo parmesão ralado q.b.

Faz-se um refogado com o aipo, o alho francês e as azeitonas (picadas). Leva-se ao lume em azeite e ligeiramente salpicado com sal e um pouco de pimenta. Basta 10 minutos para esta parte. Reserva-se. Entretanto, bate-se os ovos com a farinha, o leite, um pouco de sal e pimenta. Quando houver bolhinhas, acrescenta-se os legumes e o parmesão ralado. Integra-se com uma colher e leva-se ao forno durante uns vinte minutos.
Assim que estiver pronto, corta-se em quadrados. E a seguir, distribui-se felicidade tangível. Ou de comer. Felicidade que se come cortada aos pedaços.  Sem nada de incidentes de recusa.

10 comentários:

  1. Tem toda a razão Mar, o mundo anda demasiado depressa e não se consegue perceber o que nele se passa e nada é aquilo que parece. Sabe bem alhearmo-nos de vez em quando para tentarmos perceber outras coisas que são importantes para nós.
    Um livro e um bolo salgado são ótimos para fazer com que o tempo passe mais devagar e nos dar sensação de conforto e ideia de que as coisas se vão compor.
    Um beijo
    Graça

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  2. Querida Mar,

    Vi um filme que falava disso mesmo, e que andei a adiar por mais ou menos 1 ano. Ontem foi o dia. 'Melancholia' do realizador que inexplicavelmente gosto acima dos outros. Porque sim.

    Um filme que fala do caos, de mudanças, de morte, de medo.

    No fim, uma certeza. A mesma. O afecto permanece.
    É isso.

    Beijo,

    Jo

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  3. Já te disse que nem suporto ver as notícias. O poder de desinformação é muito grande. Prefiro ler e bolos salgados!... Tão querida, a tentar dar-me a receita direitinha... Já sabes que me saiu uma versão bolacha mas saborosa. Acho que vou publicar. Há sempre fãs de bolachas, não é?
    Babette

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  4. Olá Graça:

    Creio que será sempre assim que acontece. Quando as coisas andam demasiado à frente do nosso passo. Num momento qualquer, na impossibilidade de as fazer parar um bocadinho, paramos nós. Com os nossos recursos interiores. Sejam eles quais forem. Estes são alguns dos meus recursos. Muito pequenos. Mas fazem um bem grande.

    Um beijo para si. Aí longe.

    Mar

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  5. Olá Jo:

    Ainda não vi esse filme. Está à espera que sim. Também gosto muito desse realizador inexplicável. Embora não possa ver todos os filmes dele. A minha sensibilidade não permite sempre (nem bem) a separação entre o real e o ficcional e não consigo a resistência suficiente à violência na tela. Uma limitação como outra qualquer que já causou reacções que me fizeram suspender filmes. "Breaking the waves". O primeiro filme que vi de Lars Von Trier. Sobre o poder imenso do amor. Sublime. A dizer as coisas que permanecem.

    Obrigada. E afecto que permanece para si.

    Mar

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  6. Olá Babette:

    Sim. A receita direitinha. Com medidas a sério:) Desta vez foi assim. Já te expliquei. Faço comida de uma maneira extremamente intuitiva. Sou avessa a copos medidores e assim. Mas desta vez tentei portar-me bem:)
    E sim, de vez em quando, as coisas dos jornais e da televisão são só ruído. Apetece muito isso de deixar de querer saber.
    Vou gostar de ver a tua versão bolacha:) És capaz de ter inventado uma maneira nova de fazer bolos salgados. Muda-se o nome para bolachas de legumes e o problema fica resolvido. Desculpa não ter dito que o tabuleiro devia ser quadrado:)

    Um beijo.

    Mar

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  7. São sempre uma boa resolução. Os bolos de legumes, do que se encontra no frigorífico.
    Que se faz com tempo, daquele que é raro, mas que podemos escolher ter. Em vez de o usarmos com a televisão de notícias ferozes. Sempre tão apetitosos os teus bolos de começar a refeição !

    Obrigada pela receita certinha, que tem vezes que o meu também fica meio bolacha ;)

    Um beijinho
    da Pipinha

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  8. Duas belíssimas formas de nos protegermos deste mundo maluco em que vivemos. Livros e bolos de legumes. Com um copo de vinho :)

    Beijo,
    Ilídia

    P.S.: Quase, quase a acabar as aulas. Já me arrasto.

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  9. Olá Pipinha:

    Já percebi:) De vez em quando, a minha maneira intuitiva de fazer as coisas, só complica. Nem imaginas quanto. E era mesmo bom que se resumisse a isto das receitas. Mas não dá.
    Hoje fiz outro. Imensos vegetais, que tinha cá em casa. O de há pouco foi feito com rama muito fresca de alho francês, espinafres e cebolinho. Lindo, de tão verde!

    Um beijo para ti. Está quase a ser 6ª feira. Estás quase aqui outra vez:)

    Mar

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  10. Olá Ilídia:

    Depois de falarmos. Muito. Como é sempre. Mesmo que até digamos aos maridos que "é só um bocadinho":) Linda, a ideia de estar a falar com alguém que me é muito. Que (ainda) não vi. E que está a um mar de distância.
    Um livro e um bolo de legumes podem ser isso. Protecção. Formas próximas de evitar o abismo que pode ser não entender.

    Um beijo.

    Mar

    PS: O filme que o Vasco foi ver foi um daqueles que ia fazer com que eu sentisse aquelas coisas que te expliquei ao telefone. Cosmopolis. Disse que era muito bom. Pena a minha limitação:(

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