Less is more.



Num dia luminoso como o de hoje, apetece reparar nos pormenores das coisas pequenas. As que estão sempre debaixo do nosso olhar. Sempre e tanto, que nem damos por elas. Depois do pequeno-almoço, o sol que havia cá fora. No jardim. Demorar-me a olhar as minhas árvores. Só para ver se estão bem. As folhas caídas das magnólias e das camélias. As flores que me dizem que está quase. Quase os dias de sol. Quase o perfume persistente das flores. A invadir tudo. A tomar conta de tudo. Como a música. Que desencadeou a mesa. Intro, The XX.
Tinha que ser cá fora, a mesa de hoje. Quis que fosse branca. A loiça, a toalha, as cadeiras. Uma em especial, por ser tão escultórica. Her, de Fabio Novembre. Inspirada nas outras de que gosto muito, as Verner Panton. Muito branca, a mesa de Domingo. Quase diáfana, de tão branca. Uma mesa branca cercada de verde. E um almoço leve. Massa, vegetais de tamanho reduzido e queijo cheddar. Uma massa emoldurada em pratos brancos e largos. Como é que diz aquele princípio minimalista? Less is more.

Receita para uma massa less is more:

Massa penne rigate + 4 fatias de bacon + 8 cenouras baby cortadas às rodelas + 1 pimento doce (laranja) + 20 espargos em miniatura + 1 cebola vermelha + azeite, sal, vinagre balsâmico e molho inglês a gosto + o que quisermos de queijo cheddar.

Antes, coze-se a massa em água, sal e um fio de azeite (durante 11 minutos). Entretanto, dedicamo-nos pacientemente a cortar os vegetais (excepto os espargos). Faz-se um salteado simples. Primeiro, só com o azeite. Depois, um pouco de sal, o vinagre balsâmico e o molho inglês. Envolve-se bem os vegetais e deixa-se saltear (não muito). Quando a massa estiver pronta, passa-se por água fria e deixa-se em repouso num escorredor, até retirar o excesso. Junta-se depois aos vegetais e envolve-se tudo com cuidado, acrescentando mais sal, azeite e vinagre balsâmico. Serve-se em pratos fundos, com lascas de queijo cheddar por cima.
Muito simples, de tão minimalista, a massa less is more. Como a música limpa dos The XX. E a mesa branca posta cá fora, no meio das árvores e das pedras.

Sábado cristalizado.


Uma homenagem muito fragmentária à Mafalda. Pelo almoço de sábado. Pela mesa de sábado. Com loiças de que gosto muito. Delicadas, com flores. Pelo sorriso que acolhe sempre. Na casa da Boavista. Com janelas largas por onde entra muita luz. E o ruído surdo da cidade. Filtrado.
É bom abrir as portas de casa. Receber. Ela sabe muito bem isso. Sabe receber, acolher. Encaminhar quem chega, até à mesa prévia, a que vem antes da mesa grande. Sempre com inícios auspiciosos. Sempre com vinho branco. Depois, os lugares à mesa. Marcados pela sensibilidade maternal da Mafalda. Com que aprendo sempre. A ser mais sensível. A ser mais acolhedora. A ser mais.
Cristalizações de um dia de celebração alargada da vida. Uma chávena de café. O retrato de alguém que existiu antes. Um retrato em que me demoro sempre. Por querer tentar imaginar a história que conta. O olhar, as jóias, o vestido. A pose cristalizada. Um momento lá atrás. Impossível de ser dito. Mas passível de ser imaginado. De todas as vezes, uma história diferente, atribuída à mulher que existiu antes. Um antepassado. Muito vago, isso de se ser um antepassado. Fica aqui a imagem da mulher a quem vou atribuindo contextos. E o carinho da minha cunhada. Que se declinou num almoço muito bonito. Num sábado com sol. A entrar pelas janelas largas da casa onde me sinto um bocadinho em casa.

Any given friday.


Nos dias frios, gosto que a sexta-feira me prenda docemente em casa. Quente e confortável, a antecipar o tempo prolongado do fim-de-semana. Que me peça repetidamente para ficar. Mas não esta semana. Não esta sexta-feira. Um dos meus escritores iria estar no Clube de Viseu, num evento quase secreto. Ele iria estar lá. O Pedro Paixão de Nos teus braços morreríamos. De Porto Kyoto. De Viver todos os dias cansa. O Pedro Paixão de todos os livros que li apaixonada e indisplinadamente. 
Antes, o encontro com amigos de há muito, no Irish Bar. Depois, o jantar. Num restaurante que é uma espécie de instituição. O Cortiço. Que bem que se está ali. Naquela mesa. Depois, uma casa grande no centro da cidade. Com magnólias em flor à entrada, a dar as boas-vindas. Subir as escadas. Olhar demoradamente as escadas de pedra e as paredes de mármore. E as salas. Cortinas pesadas. Tectos altos. Lustres suspensos, de tão etéreos. Um sítio secreto, fora de contexto.
Foi numa sala com portas de vidro. E havia um piano. Estava a tocar piano, o meu escritor. E sorriu para a entrada, a acolher. Depois, foram palavras. As dele. Que contam histórias de amores que queimam. De ausências que são insuportáveis. Histórias que dizem a impossibilidade do amor. O amor que, dito por ele, não é morno. Não é chuva miudinha. É devastador e avassalador e corrosivo. Ficaram fragmentos no meu caderno verde, registados a meia luz. Estes: Durante muitos anos tentei ser professor (...) ensinar literatura retirava-me a capacidade de escrever (...) elegia uma aluna para quem falava em exclusivo (...) Se a eleita se atrasava. Se ela faltasse...(...) Não ter qualquer contacto com aquela minha inspiradora musa. (...) A Eva foi a culpada. Única e misteriosa, como deve ser qualquer musa. E a sua beleza era indomável. (...) Depois dela, as musas deixaram de existir. (...) É provável que coisas improváveis aconteçam. (...) A pele dela cheirava a Primavera. Era uma deusa do mar. Não pertencia a lugar nenhum. (...)
as palavras, no fundo. A surgirem ao ritmo dos cigarros que fumou, sentado numa poltrona. E a música persistente que trazia na ideia. O adagietto da 5ª sinfonia de Mahler. A melodia persistente de A Morte em Veneza, de Luchino Visconti, que diz em imagens a obsessão pela beleza. Pelo sublime que há na beleza. No final, um pedido imperativo. Depois de escrever Mar no caderno verde. Para escrever.

Coisas pequenas.



Hoje foi o dia de lembrar a vida da mãe do meu marido. Que é minha mãe também. Um pedacinho maternal guardado para a sua Mar. Um aniversário em dia de trabalho. Um dia muito intenso de trabalho. Que findou quando faltavam vinte minutos para as oito da noite. Depois de (muitas) aulas. De sessões de preparação para exames. De reuniões assertivas cheias de papéis pouco poéticos, apesar de importantes. Por isso, só pude dar coisas pequenas à mãe Né. Um presente e um almoço cronometrado. Mas com direito a parabéns e a uma vela numa fatia de bolo de chocolate, no restaurante de todos os dias. Onde partilhamos muitas refeições de todos os dias. Os nossos almoços muito cúmplices. Pelo menos uma vez por semana. Que se iniciam sempre com o sorriso carinhoso dirigido aos saltos muito altos da Mar, no caminho da porta de entrada até à mesa. À mesa da Né. Quase cativa. Por ser a mesa dela ao almoço. Muito metódica, racional e disciplinada. Mas como eu: indisciplinada nos afectos. Nas coisas pequenas que podemos ser para os outros.
Mas a vida é para celebrar. Quotidianamente. E mais ainda quando se lembra o dia em que se iniciou uma vida. Então, era circunstância para mais um pedido à Cristina, da Casa dos Vouguinhas. Muito paciente, sempre. Desta vez, um bolo com uma camélia. Uma das flores preferidas da minha aniversariante. E ficou tão bonito. Mais uma vez, um presente em forma de bolo. Muito delicado. Massa de nozes e amêndoas e ovos moles. À mesa, mais flores. Orquídeas em copos de cognac. Velas com aroma a chocolate. E uma toalha bordada pela mãe da mãe Né. Para que também se assinalasse neste dia. Por lhe ter dado vida. Um dia que é memória de um arroz de polvo e gambas, porque ela gosta. Antecipado ontem, porque se antecipava a falta de tempo de hoje. E mais parabéns. Mais velas. Mais olhos brilhantes. E obrigada. Pelo dia das coisas pequenas. Um dia feliz. Que brilhou muito. Mais um dia aqui cristalizado. Feito de coisas pequenas da Mar. De amar. Como na música dos Madredeus. "Coisas pequenas".

Massive Attack e uma subversão.


Uma receita apreciada. Solicitada, com direito a encore. Não por mim, por nunca conseguir mais do que uma vez. Por ser tão intensa, de tão conventual. Muitas gemas, açúcar, vinho do Porto e...presunto pata negra. Um ingrediente improvável. Mas fundamental. Por ser o que mais contribui para a densidade aveludada de um pudim abade de priscos. Mas ontem, lembrei-me de subverter um bocadinho a receita original. Foi aí que surgiu o sumo de limas frescas. A suavizar um pouco a intensidade das gemas conjugadas com o vinho do Porto. Correu bem, esta subversão de uma receita muito tradicional, quase intocável. Quase. Não há isso de receitas intocáveis. A partir do momento em que passam de uma pessoa para a outra, reinventam-se. Como as histórias. Fica nelas a marca de quem as reproduz. As receitas são referências. Passíveis de ser tocadas indelevelmente pelas mãos que as transformam. A marca indelével deste pudim de domingo foi o sumo de limas frescas. Um aroma que lembra Verão, para contrariar a chuva que há lá fora.

600 g de açúcar (400 para o pudim e 200 para o caramelo) + 25 gemas de ovos + 100 ml de água + 100 ml de sumo de limas + 50 g de presunto pata negra + 1 cálice de vinho do Porto.

Antes de tudo o mais, o caramelo. Depois, "forra-se" a forma e reserva-se. Separa-se as gemas para uma taça e junta-se o vinho do Porto. Mexe-se com cuidado, sem bater. Entretanto, as atenções devem concentrar-se na calda de açúcar. Num tacho pequeno, junta-se o sumo das limas, a água e o presunto ao açúcar. Leva-se ao lume e, quando começar a ferver, deixa-se estar durante 5 minutos. Decorrido este tempo, elimina-se o presunto e junta-se à mistura das gemas e do vinho do Porto. Envolve-se cuidadosamente com um batedor de varas, à medida que a calda vai sendo adicionada. Coloca-se na forma e vai ao forno em banho-maria durante 50 minutos. Quando arrefecer, transfere-se para um prato que seja digno da sua beleza aveludada. Sem ofuscar, sem rasurar. Um pudim feito a ouvir Massive Attack. Paradise Circus. Uma música aveludada. Subversiva. E doce.

Para ler a beber.

I have learned from Michelangelo about the pathos of mother love and the divinity of suffering; I have learned from Mozart about the hope that turns the deepest sadness to joy; I have learned from Dostoievsky about forgiveness and how the soul is cleansed by it. And those gifts of understanding were brought to me by art. But what I have learned from wine has welled up from within me: the drink was the catalyst, but not the cause, of what I came to know.
Roger Scruton, I drink therefore I am

São melhores e maiores do que as minhas, as palavras deste filósofo. A propósito de vinho. De como um vinho pode ser muito. Aqui, é uma espécie de fórmula de abertura. Significa dar início ao ritual quotidiano de nos sentarmos à mesa. Significa dizer o dia. Dividido em dois.
Hoje quis um vinho de amar. Amarone. Porque só o nome evoca a memória de um sabor que reconheceria de olhos fechados, sem rótulo. Ainda que o deste vinho seja como uma história. Por parecer antigo, por dizer que vem de muito longe, como as palavras.
Uma imagem que é muitas palavras, a que fica hoje. Copos de vinho. Podem significar celebração ruidosa e ostensiva. Solidão procurada, voluntária. Ritualização de um hábito sagrado. Inebriante. Querer fugir, escapar, esquecer. Dizem isso. Beber para esquecer. Triste isso, não se esquece nada. Pode ter-se a ilusão. Mas o que há para esquecer, fica à espera que a consciência regresse ao que havia antes. Por isso, não ao vinho para esquecer. Ou para criar personagens. Melhor lembrar. Como este vinho. Bebido aqui pela primeira vez. Depois em Itália. A transformar-se em memória líquida que faz pensar. Recordar. Evocar. Rememorar.
Como hoje. Em que fica guardada mais uma memória que escorre, líquida, dentro de um copo. Mais uma a acrescentar a todas as outras memórias. Datadas. A crescerem, transparentes. Datas que são pessoas. Comidas. Datas que são datas. Que são de lembrar. Datas a que voltar com afecto. Como no livro do Roger Scruton, que mudou todo um percurso por causa de um vinho. A celebratory bottle of 45 Lafitte.  
Ou então, a memória de hoje. Amarone della Valpolicella Classico, Tommasi. Vinda de Verona, a memória de hoje. A dizer no rótulo coisas de preservar. L' Amarone Tommasi è anche il compagno ideale per una piacevole conversazione. Coisas para ler a beber.  

Graças à mesa de hoje.


São três as Graças: Aglaia, Tália, Eufrosina. As minhas preferidas. Dedicadas a espalhar alegria na Natureza e no coração dos homens. Porque quis dar graças ao meu jantar de hoje. Que decorreu da existência de uma pessoa. Aconteceu assim, porque hoje foi a receita que a minha amiga Babette partilhou generosamente. Uma espécie de onda de coisas boas e belas, que se gera, a partir daquele universo. Como este jantar muito tranquilo, com Graças à mesa e que foi consequência de uma outra graça: a vida muito bonita de uma amiga. E eu agradeço a vida da minha amiga. E que ela chegue tanto a tantas vidas.
Quis flores. Quero flores quase sempre. Apesar da chuva, fui buscar narcisos ao jardim. A flor que evoca o mito do que se apaixonou pelo seu reflexo. De Narciso a Ícaro. Nas asas de anjo que trouxe de Viseu, há uns dias atrás. Ainda que na altura não soubesse muito bem para quê ou porquê. Fiquei hoje a saber. Coloquei tudo num pedestal antigo de prata. E fui buscar a luz de uma vela que acendi hoje pela primeira vez. E que, nem de propósito, se chama Muse. Feita de rostos declinados no infinito e criados por Jonathan Adler. Quis ouvir o piano de Preisner, que também chegou aqui pela graça de uma outra vida na minha vida. Porque das mãos da minha amiga nasce música, o piano de Preisner significa também a sua música.
Eu sei todos os dias que devo dar graças. Eu sei que sim. Porque são mesmo muitas as coisas pelas quais dar graças. A poesia. A música. A dança. A beleza. A amizade. O amor. O encantamento. A generosidade. O dom da ilusão. O sonho. A humildade. A vida. O dia. Dou graças por hoje. Todos os dias dar graças por hoje. Por todas as enumerações belas que podemos fazer. Graças ao dia que está a ser vivido. Ou a acabar de ser vivido. A tempo ainda de voltar ao livro de hoje: Confissão, de Tolstói.

PS: A receita de uma tarte deliciosa e muito delicada está lá, na Festa de Babette. 

A Primavera e o Inverno sentados à mesa.



Pois...está a chover. Outra vez. Chuva e frio de volta. E de volta também, a vontade de chegar a uma casa quentinha, a tempo de lareira e de comida perfumada. A inspiração surgiu de um presente. Mais um. A verdade é que as pessoas que fazem parte do meu quotidiano sabem da minha devoção pela comida. E, nas alturas certas, oferecem-me coisas que sabem que vão trazer-me alegria. O sr. Manuel da Tabacaria é uma dessas pessoas. Também gosta de mesa e de fazer coisas para servir à mesa. Daí o entendimento, creio. A par da simpatia de todos os dias. E dos sorrisos cúmplices, quando entro, apressada e saio na mesma cadência. Com um "obrigada, até amanhã!" soltado da porta. Neste dia, a Mar apressada teve direito a um presente fresquíssimo em tons de verde. Muito desta época. Espigos das couves de Natal. Não resisti a "convidá-los" para jantar. E achei que ficariam mesmo bem, conjugados com o pato temperado que aguardava pelas minhas mãos. Não era preciso mais nada.
As coisas, quando comidas nas tais alturas certas, têm um sabor muito essencial. Para mim, estes legumes anunciam o declínio do Inverno. Dizem que está a chegar ao fim. E que podemos esperar pela Primavera. À minha maneira, quis sentar o Inverno e a Primavera à minha mesa. A ver como corriam as coisas. A parte do Inverno já estava resolvida. Faltava a Primavera. Pensei na primeira cor que, no jardim, anuncia a chegada desta altura do ano: o rosa. Das camélias, neste caso. Em copos de chá bebido nos desertos. A flutuar numa taça de mármore muito branca. Numa mesa sem toalha, sem individuais. Loiça branca, copos e taças de avó. Creio que correu tudo bem. Que se harmonizaram tranquilamente, a Primavera e o Inverno. À minha mesa.

Muito simples de fazer, estes peitos de pato. Bastou um tempero antecipado: sal + um copo de vinho branco + um copo de licor de mirtilos + sumo de uma laranja + pimentas moídas + azeite + molho inglês.

Na altura de cozinhar, salteia-se os peitos de pato em azeite quente, numa frigideira. Muito ligeiramente, virando-os duas a três vezes. Entretanto, quando estiverem com uma cor dourada, acrescenta-se o líquido do tempero onde estiveram a repousar. E deixa-se estar. Vinte minutos é o suficiente. Decorrido este tempo, retira-se a carne e deixa-se reduzir o molho, para ficar cremoso. Na altura de servir, basta ter espigos cozidos à espera, num prato fundo (de massa), para os manter quentinhos. Coloca-se o pato fatiado por cima deste "leito" verde. E finaliza-se com uma colher generosa do molho aromático de laranja e licor de mirtilos.
Entre o Inverno e a Primavera, mais música. Kings of Leon. Come around sundown. Música à minha volta. Que faz pensar nos concertos a que vou assistir. Para ficar (ainda) mais rodeada de música. Portishead. Arcade Fire. Enquanto se antecipa o Verão, junta-se o Inverno e a Primavera. À mesa.


13 de Fevereiro de 2005




Há muitas formas de se gerar uma vida. Por acaso, por acidente, por descuido. Pela má-fé que resulta da falta de carácter. Por insegurança. Para realização (um peso enorme para ser suportado por um filho). Para reforçar uma tese ou uma tradição familiar. Para fazer companhia a outro filho. Para salvar ou motivar casamentos. Por cálculo sem escrúpulos. E outras. Muitas outras maneiras de fazer nascer uma pessoa nova. Única e irrepetível.
A mim, aconteceu-me a maior das dádivas. Ter gerado em mim uma vida com toda a ilusão e ternura que pressupõe a espera doce de aguardar pela vida que existe, porque nós existimos. A primeira coisa que pude dar ao meu filho. Antes de todas as outras coisas: pude esperá-lo com amor. Desde o primeiro minuto. Quis o meu filho. Sabia que estava numa nuvem, à espera que eu o fosse buscar. E soube sempre que seria mãe de um rapaz. Era isso que eu sentia. Um menino pequenino a crescer, a construir-se a partir de mim e do amor que havia antes dele. 
Há seis anos atrás, também num domingo, vi o meu filho pela primeira vez. Depois de um dia inteiro feito de uma dor que nunca tinha conhecido. Os olhos do meu filho. Os meus olhos nos olhos do meu filho. Num primeiro reconhecimento, a noção de que a minha vida, como a tinha conhecido até ali, havia deixado de existir. Nunca mais seria a mesma. Eu seria sempre a mãe de alguém. Alguém cuja vida dependeu da minha, durante os primeiros meses. Que se alimentou da minha vida. Quase até aos dois anos, que a vida do António se alimentou do corpo da mãe.
Um percurso que começou com um ano sem dormir. Todas as noites que cabem num ano. E em cada uma dessas noites, a evocação repetida do meu amor pelo meu filho. A ser confirmada. Reiterada. Mesmo quando achava que não dava para ser mais forte. Havia forças desconhecidas, como as dores que o trouxeram à vida. Forças indizíveis que me faziam renovar a virtude da paciência. Feitas de amor, essas forças. Muito simples e difíceis, essas equações. Porque havia a imagem do meu filho a procurar a mãe de olhos fechados, em busca de alimento e a respirar fundo e tranquilo, satisfeito. A dormir no berço. O meu "tantinho". Por ser tanto, o meu filho. Por me ter ensinado tanto. Por me ensinar tanto.
A mesa de hoje foi dele. Inteiramente. Os carros, a melodia das caixas de música que o embalaram desde o início, o livro que é todas as histórias de todas as noites, os lápis de muitas cores, o amigo macio que dorme com ele. O imaginário do António à mesa de hoje. E as coisas muito simples que pediu durante dias: um bolo de iogurte com natas e morangos. Arroz doce. Tão bonito, a deliciar-se com arroz doce. E a dar um beijo à mãe Mar, no final de tudo. Antes de dormir, frases pequeninas, no quentinho da almofada. Que disse que tinha tido um dia muito feliz. Que estava cansado. E que queria que eu tivesse bons sonhos.
O meu sonho bom tem seis anos, olhos brilhantes e pestanas longas. Gosta de jogar à bola com o pai e de nadar. De carros e de bicicleta. De fazer "construções" com blocos de madeira. Do sol, no Verão. De andar à solta, como o Tom Sawyer. E de dar abracinhos à mãe Mar. Um bom sonho. Muito doce, o meu filho.

O que se dá a um filho.



Quis que os presentes do meu filho fossem muito frugais. Para que aprenda a simplicidade, a humildade. Para que não se distancie destas palavras elementares. A mãe e o pai quiseram oferecer uma memória e um livro. Foi isso que quisemos dar a um filho que cumpre seis anos. Não os presentes desembrulhados numa pressa febril e antecipadamente enfastiada. Porque nestes dias, são sempre muitos, os presentes. Quis então, garantir que da nossa parte haveria um livro sem embrulho, a valer por si. E uma memória que recupera memórias gratas dos pais. Da infância dos pais do António.
No sábado, foi dia de ver carros. O brinquedo preferido do António. Para que visse os carros em tamanho real. E para que experimentasse o fascínio de olhar um Ferrari F40 ou um Lamborghini Miura. E adivinhar o som dos motores, a ritmo de corrida. Ficou feliz, o meu filho. Gostou do seu presente antecipado. De uma maneira pouco ostensiva, quase silenciosa. Os pés pequeninos a avançar no corredor. A olhar os brinquedos dos homens grandes. Com os olhos grandes. A brilhar.
E o livro que surgiu das mãos dos pais. De manhã cedo. Carta a um filho, de Kipling. Um livro feito de uma carta. Escrita por um pai ao único filho. Que acabou por morrer na Primeira Guerra Mundial. Um escrito comovente. Palavras elementares. Repetidas em forma de pedido. Uma anáfora. Se fores capaz de esperar sem deixar que a espera te canse. Se fores capaz de sonhar, sem deixar que os sonhos te escravizem. Se fores capaz de falar às multidões sem perder a virtude. Se fores capaz de preencher o fugaz minuto, com sessenta segundos vividos plenamente, tua é a Terra e tudo o que nela existe.
Eis o que foi dado ao meu filho. Uma memória que há-de ficar como ressonância de uma tarde de sol, no Museu do Caramulo, a olhar os carros. E as palavras. Que agora serão lidas pela mãe. E mais tarde serão os olhos dele a procurá-las. A juntar as letras hesitantes. Serão hesitantes, quando começar a aprender a ler. A ver se se transformam em palavras determinantes, determinadas. As tais que definem o carácter. As que o hão-de ensinar a preencher minutos fugazes com segundos plenos.  

Como conjugar uma sopa no feminino.

Não costumo entender as coisas assim: dividindo-as entre géneros. Mas, no momento de cristalizar esta sopa quentinha, apeteceu-me associá-la a mulheres. Mulheres fotografadas pelo Mario Testino. As mulheres que encheram salas no Museu Thyssen, em Madrid. As fotografias-pretexto para uma viagem a uma cidade cheia de vida (e uma loja cheia dos meus sapatos de sola vermelha). E então, fui buscá-las às páginas do livro que trouxe de lá. Todo o nada. É o que diz a capa do livro onde estão as mulheres mais bonitas. Ou então, algumas das mulheres mais bonitas, para não ser tão definitiva na formulação. Esta canja reinventada nasceu de um dia particularmente cansativo, em que o meu carro quis vir directo para casa. Sem nenhum desvio. E apesar de haver a noção de que até era preciso o tal desvio, o cansaço foi mais determinante. O meu filho adora canja. E eu tinha prometido de manhã que sim, que faria à noite. Daquelas coisas apressadas que prometemos aos filhos, enquanto dizemos para terminarem o pequeno-almoço e lavarem os dentes e vestirem o casaco e para não se esquecerem da mochila:) Coisas que todas as mães entendem com um sorriso de compreensão. Mas a gaveta dos vegetais no frigorífico deu sinal de que talvez fosse necessário reformular ideias. Afinal não. Não havia cenouras, mas havia courgettes. E alho francês. E ovos amarelinhos. E no jardim, havia hortelã. Estava tudo bem, afinal.

Numa panela, água, sal e as partes menos nobres de um frango do campo. Quando a carne estiver cozida, retira-se para um prato, para se desfiar. E filtra-se o caldo, para ficar mais límpido. Coloca-se novamente ao lume e junta-se duas courgettes médias (sem a casca), partidas em cubos muito pequenos e um alho francês às rodelas finas. Assim que ferver, massa pontinha. Coloca-se depois a carne desfiada e mexe-se. Depois, a hortelã fresca e duas ou três gemas de ovos. Espera-se que as gemas cozam (dois minutos) e retiram-se. Para se cortarem em pedaços pequenos. Depois, voltam à canja quentinha. Rectifica-se o sal, se necessário. E serve-se a fumegar. A um filho feliz:)

E as mulheres que estão junto à canja fumegante, dão sinal de um reencontro. Um amigo. Um amigo de liceu. De muitas horas. Horas muito longas de conversa, de cumplicidade silenciosa. Que estava sempre lá. E que agora vive entre Lisboa e Madrid. O meu amigo alto, que tem a profissão de dizer um bocadinho do mundo. Agora aqui. Guardado nas coisas da Mar.
E a música em que acordei a pensar. Muito cedo. O primeiro pensamento do dia em forma de música. E, durante o pequeno-almoço, quis muito que um mensageiro distante a tivesse escolhido naquele momento. E num premir de botão...a minha música. Ali, à mesa de pequeno-almoço. O primeiro fragmento de poesia do meu dia. Que guardei, enquanto bebia café quente. Um momento a que voltei, durante o dia. E ao final da tarde, um desvio. Para ir em busca da minha música. Para que ela viesse comigo para casa. Um CD que começa pelo fim. The End. A abertura. E a que me despertou. A que fica aqui guardada. Para me lembrar de hoje.


PS: Para a Maria José Duarte. As loiças brancas da mesa de que falou, são Zara Home. E os copos são uma daquelas heranças boas. Existem aqui em casa há muitos anos. Mas já vi daquele género também na Zara Home. Igualmente lindos. Um beijo da Mar. Com gratidão.

Hoje.

Porque hoje não consigo falar sobre as coisas luminosas que fazem os meus dias. Sobre a mesa de hoje. A refeição de hoje. As palavras lindas de hoje. Porque hoje li sobre a morte de uma mulher. Que aconteceu no meio de muita gente. Numa cidade. Num sítio onde há muitos carros e centros comerciais e cartões de crédito com limites no limite. E vidas que decorrem. Indiferentes às vidas. Que prosseguem indiferentes. No meio de todo o ruído que distrai, que abstrai, que faz esquecer que há pessoas que vivem anos mergulhadas na mais absoluta solidão. A quem ninguém diz bom dia, de quem ninguém se lembra, de quem ninguém sente a falta. Pelo menos lembradas aniversariamente que fosse, como no poema de Álvaro de Campos Se te queres matar, dedicado, segundo alguns teóricos literários, a Mário de Sá-Carneiro. Estamos sós. Estamos muito sós. Mas esta solidão de que falo é ontológica. Uma solidão intrínseca à nossa condição. E que é mitigada pelos afectos. Pelos sorrisos e pelas palavras doces que nos vão resgatando dessa condição, que a tornam menos intrínseca.
Esta mulher morreu na zona de Sintra. Num prédio com mais dez apartamentos. Numa das regiões mais populosas do país. Aparentemente, nada de novo. Exceptuando o facto de ter estado morta durante nove anos no apartamento onde vivia. Vou repetir: nove anos. Uma só pessoa procurou saber o que tinha acontecido à mulher silenciosa, que só saía de casa para despejar o lixo. Pelos vistos, havia família. Família que não quis saber. Nove Natais, nove Anos Novos, nove aniversários. Ao menos nestas datas. As tais datas lembradas aniversariamente. Mas não. E há-de haver muita gente a escrever sobre isto. E notícias. E depoimentos. E ruído. A propósito de histórias destas, há sempre muito ruído e muitas declarações de intenção. Muitos discursos de indignação sonoros. Feitos de palavras que se gastam rápido.
Já se sabe que sou professora de Português. Num sítio muito especial. Tão especial, que faz com que seja possível que todos os quinze dias, haja uma turma a deslocar-se ao Centro de Dia que fica muito próximo. Só para ouvir. Não para iniciativas que infantilizam a idade maior. Não uma situação assimétrica, em que um grupo que personifica a força da vida se desloca, paternalista, para dar sentido a vidas longas de trabalho. Não isso. Chamei-lhe A Vida Contada. Porque a ideia foi sempre a de dignificar muito a vida contada na primeira pessoa. E é sempre muito bonito, aquele espaço de união. Traços muito belos de união. A que tenho o privilégio de assistir. Porque do nada, assisto a abraços como o da fotografia. Do nada, surge a dança entre idades afastadas por anos de vida. Do nada, beijos carinhosos. E risos à solta. Sem que nada tivesse sido planeado, antecipado, projectado. Tão espontâneo, o afecto. Tão à solta, como os risos muito juntos dos meus alunos e dos meus anciãos de mãos macias, com caminhos que demoraram anos a ser feitos. As mãos deles nas minhas mãos. A menina. Sou sempre a menina. Encantada por estar ali. A querer que o tempo não seja impiedoso e que se deixe estar ali um bocadinho.
E nunca me vou esquecer que a razão para que tudo isto aconteça, foi uma reportagem da SIC. Este país não é para velhos. Da Sofia Arêde. Uma jornalista rara, que conta histórias com tempo. Mesmo que sejam histórias que nos fazem olhar de frente para aquilo que queremos disfarçar, esquecer. A velhice dos outros. O tempo no rosto dos outros. Que nos lembra a nossa própria velhice. A altura em que o tempo vai tomar conta de nós, do nosso corpo. Até nos esquecermos de hoje. E de ontem. Obrigada a si, Sofia. Outra vez. Porque já escrevemos muito sobre isto. Eu não disse que as coisas boas se transformam algures em coisas boas? Foi assim com esta reportagem. Transformou-se em tardes feitas de risos e de histórias. Transformou-se em afecto.
Para lembrar isso. Que podemos tentar sempre pelo melhor. E, no entretanto, dizermos bom dia. E fazermos um carinho no cabelo de alguém que teve um dia difícil. Ou sorrirmos. É fácil sorrir. Não custa assim muito.
E fica o nome da senhora que morreu sozinha há nove anos: Augusta Martinho.

Um doce que sabe a início.


Há anos, quando ainda andava na faculdade, fui ao Cafeína pela primeira vez. Pela mão do meu filósofo. Sem que me apercebesse na altura, escreveu-se ali um começo. Porque foi a primeira de muitas vezes ali. Naquela sala que nos acolhe e nos faz querer voltar. Depois, porque me lembro perfeitamente dessa primeira refeição. Não tanto do que pedi para mim, mas do que o meu amor inicial pediu para si. Um folhado com foie gras. E Tarte Tatin. Apesar de, na altura, a minha sensibilidade não estar ainda suficientemente apurada, recordo que estive muito atenta aos significados dos pedidos que ele formulou. E lembro-me de pensar que nem toda a gente gosta de foie gras. Mas muito especialmente, a memória de se ter deliciado com uma fatia generosa de Tarte Tatin. Uma imagem cheia e doce. Do homem que viria a ser meu marido. E que me leva pela mão em busca da beleza que há nas coisas do mundo. A beleza que pode ser dita ou contemplada em silêncio. E que me repete que as palavras são coisas e não conceitos distantes. Eu acho que lhe ofereço domingos felizes. Porque para ele, eram os dias que se arrastavam. Mas a Mar invadiu a casa. E os domingos deixaram de ser dias arrastados.  Esta foi a tarte que ofereci de presente. Num domingo vivido e não arrastado. Enquanto ouvia a voz de que nunca me canso. A voz da diva. Maria Callas. 
Muito simples de fazer, este doce que sabe a início. 

200 g de açúcar + 100 g de manteiga + quatro/cinco maçãs + uma embalagem de massa folhada.

Começa-se pelo caramelo (que deve ser feito na forma que vai ao forno). Depois de o açúcar estar caramelizado, junta-se a manteiga e espera-se até ficar integrada, enquanto se mexe com cuidado. Quando está tudo harmonizado, coloca-se no fundo da forma as maçãs partidas em pedaços generosos. Cobre-se depois com a massa folhada e leva-se ao forno durante uns vinte minutos. Retira-se e inverte-se no prato de servir. Para se servir, ainda quente. Ou morna. Acompanhada com gelado ou sorvete. Ou simples, sem mais nada, como ele gosta.  

Domingo ao final da tarde.


Se o sábado se conjuga muitas vezes no verbo ir, o domingo para mim, significa ficar. Escolher ficar. Mais ainda quando lá fora está sol. Como este domingo, que foi agraciado com uma luz intensa, quase indizível. E então, apetece olhar a luz do sol nas árvores, abrir as janelas, confirmar se as flores estão a seguir o seu caminho. E sim, estavam. Estão. Lá fora, já há jacintos. Apercebi-me ao passar, quando senti o perfume muito forte destas flores. Rejeitadas por algumas pessoas, por serem tão ostensivamente perfumadas. Mas gosto disso. De não passarem despercebidas, de serem evidentes. Pelo aroma. E pelo significado interior que têm para mim. Por me terem ensinado a virtude de aprendermos a cuidar de uma flor. De esperarmos pacientemente que ela desponte e que seja beleza. Por ter aprendido a transformar mágoa em flores perfumadas. Foi isso que os jacintos me ensinaram. Por isso, todos os anos, no início de Janeiro, planto um jacinto. Para me lembrar desse momento fundador em que aprendi a virtude da paciência. De esperarmos que as coisas sigam por onde tiverem que seguir. E assistir. Só. E no entretanto, cuidarmos de algo que seja vida.
No dia de sol que foi este domingo, apercebi-me que os narcisos também estão quase a chegar. E que a minha roseira preferida está repleta de botões pequenos que se vão transformar em rosas generosas e cheias de perfume doce. É a minha Primavera anunciada.
Ao final da tarde, a mesa para o chá. O chá que veio da lojinha no CCB, vendido por uma senhora vietnamita que gostou muito do meu lenço vermelho. Chama-se Dame aux Camélias, o chá. E eu fui buscar camélias ao jardim. Para a celebração da quietude de um chá tomado ao final da tarde de domingo. Para assinalar a vida renovada do meu jacinto. A espalhar-se em aroma pelo domingo.
C'est le temps que tu as perdu pour ta rose, qui fait ta rose si importante.
O ensinamento comovente que fica, de um livro muito breve e muito cheio, lido há anos. Le Petit Prince.

Ir ao encontro de. Junto ao mar.

Há frases que repito interiormente. Como se fossem uma espécie de mantras. E, a propósito do significado que atribuo ao surgimento de uma pessoa nova na minha vida, só consigo pensar muito num princípio budista. O de o amor gerar amor. De que tudo o que se faz com amor desencadeia sempre mais amor. Um ensinamento que, de tão essencial, se esquece facilmente. Temos muitas vezes essa tendência, a de tomarmos determinadas coisas como certas, seguras. Disciplino-me muito para que não. Para que nada na minha circunstância seja tomado como garantido. A começar pela vida. E o amor. E a amizade. A amizade que nasceu aqui, virtualmente, sem rosto, sem história ou contexto. A amizade que me fez ir ao encontro de. Junto ao mar, num lugar que é sinónimo de coisas boas para as duas. Para mim e para a Babette. Ir ao encontro de uma dádiva. É assim que entendo as coisas. É esse o significado real que atribuo à amizade. A de ser algo que devemos acarinhar, cuidar, preservar de todos os males. E então, tento não ter nada a dizer, tento não me despedir de alguém se estiver magoada, tento não guardar ressentimentos. E despedir-me do meu filho com um beijo. Sempre. Mesmo nos momentos matinais em que não há tempo ou circunstância. Para que a última imagem da mãe seja sempre a imagem do amor luminoso.
E a primeira imagem do bom encontro de sábado foi a de um abraço. Muito franco e espontâneo, o abraço de duas pessoas que nunca se tinham visto. E depois, as palavras que surgiram livremente. Como se fossem a continuação de uma conversa que tivesse ficado em suspenso algures. Como se sempre nos tivéssemos conhecido. E o importante: dizer as fragilidades, as falhas, as limitações. Dizer os momentos em que sentimos que não somos capazes. Um discurso limpo. Em que foram relembrados os caminhos que nos trouxeram ali, ao momento cheio de luz em que procurámos dizer-nos. Percursos de vida diferentes, circunstâncias que, apesar de todos os pontos comuns, não nos conduziriam até ali. Mas aconteceu assim. Por causa de uma consulta na Internet da Babette. Em busca de coisas para fazer para mais um exercício de dedicação. Muito bonita, a amiga que me foi concedida pela vida. Com um sorriso maternal e dedos finos de pianista. E, enquanto o cenário à nossa volta ia mudando, fomos ficando. Numa conversa doce, em que se procurou preencher o que estava para trás. Descrever as vidas, as casas, as viagens, os afectos. E o que há em nós disso tudo.
Espinosa falava dos bons encontros. Evoco-o aqui. Hoje. Por mais um bom encontro. Para dizer a gratidão por tudo o que há de imerecido nos afectos. Tão grandes e belos, por aquilo que há neles de gratuito e de inesperado. Os melhores ingredientes para o início de uma amizade. E pensar que é tão bonito que seja só o início. Que há uma pessoa tão preciosa que dedicou um bocadinho do tempo de sábado para vir junto ao mar. Ao encontro da Mar. Fica aqui registada a minha gratidão. E a minha felicidade por mais uma dádiva.

PS: Pelo meio, a evocação das palavras que são as pessoas. Muito especialmente os diálogos da Fa, da Emília Melo, da Lusitana. Ainda sem rosto. Estiveram lá, também. Junto ao mar. Com a Mar e com a Babette. Num sábado luminoso.

O significado das coisas





O sábado é dia de mundo. De sair. De ir em busca de coisas. De olhar as pessoas. E os sítios. Desta vez para o Porto. Aliás, há algum tempo que estranhamente não ia ao Porto. A cidade que sempre me acolheu. Mesmo quando lá chegava sem a noção de rumo. Ia ao Porto porque sim. Na faculdade. Na Baixa, os edifícios de pedras escuras. O Majestic. O Bolhão, onde ia para comprar uma maçã verde e saía sempre com quatro, para retribuir a alegria efusiva das vozes das mulheres no mercado. E livros. E chocolate quente no Inverno. No final de tudo, o mar. Não podia ir embora sem olhar o mar na Foz. Mesmo quando aquele mar era uma memória que me entristecia. Mas ficava ali, na água.
E neste sábado em particular, o Porto soube-me muito a felicidade. A coisas que acontecem num dia. Como um dia pode ser tanto. Um almoço no Shis. Sempre bom. As coisas que encontrei. E as que reencontrei. Uma loja na zona do Campo Alegre, onde não ia há anos. Mas ainda bem que sim. Porque de lá vieram mais objectos que significam beleza. Chama-se Empatias. E eu não consigo dizer a minha alegria por ter visto cristais Lalique e Baccarat num sábado cheio de sol. Copos azuis, dourados, verdes. Jarras e taças com estatuto de escultura. Obras de arte por onde se pode beber vinho e água. Depois, uma rua muito especial, a Miguel Bombarda. A Rota do Chá. Um lugar onde se entra em busca de chá. E torradas. E bolos de cenoura e maçã. Com um jardim de casa de cidade. Interior. Foi lá que passei um pedaço da minha tarde. Junto a um altar improvisado e a laranjeiras com luzes e velas. Depois vir para a rua. Cheia de arte, a rua. Galerias e coisas velhas misturadas com coisas novas. Numa atmosfera que resulta. De tão improvável. E no CCB, que traduzido quer dizer Centro Comercial Bombarda. Uma loja que desconhecia, Miui. Vietnamita. Repleta de chás com nomes poéticos em francês. E a loja do Museu de Estuques (Crere), onde volto uma e outra vez. Para escolher da parede as figuras que queria em minha casa. Desta vez, as Três Graças. Para que me seja concedida a graça de mais poesia, claridade e alegria. Muitas coisas que aconteceram até a luz desaparecer. E que eu guardei. As vozes difusas das pessoas. Os meus passos a escreverem palavras a vermelho na rua. Os pensamentos fragmentários e erráticos desenhados a graffiti. Uma música a sair de um bar. Os instantes preciosos que quero conservar, que evoco no final de um dia. Mais um dia aqui. A dádiva de mais um dia. De poder viver um dia de sol. Na cidade que para mim é materna. Uma casa da Mar.  

Uma prova e um caminho de luzes à mesa.


Situo primeiro a parte da prova. A verdadeira possibilidade de criação surge nas circunstâncias que, à partida, não seriam terreno fértil para que se desse fosse o que fosse. Há inúmeras lições e exemplos desta ideia em variadíssimos campos. Penso nos socalcos no Douro, de repente. Onde dificilmente haveria hipótese de cultivar ou de produzir. Mas há, houve. Porque alguém se lembrou desta técnica e a aplicou. E assim, surgiu não só o vinho, mas também um património visual inesquecível. Com as devidas distâncias, evoco um cenário com que nos confrontamos muitas vezes: o que fazer com sobras de refeições? Neste caso, havia dois pedaços de frango relativamente generosos, mas que não poderiam ser, por si, uma refeição. Fui habituada pela minha mãe a não desperdiçar. Por me ter sido ensinado que há uma espécie de vertente do sagrado associada não só ao gesto de comer, mas também ao de cozinhar. Assim, aplico frequentemente este preceito tão essencial e esforço-me por não desperdiçar. E, para além de o encarar como algo que se basta enquanto ensinamento, acho também que são estas as circunstâncias em que mais ponho à prova a minha inventividade. A sós com música que inspire. E com as coisas em que penso, enquanto as minhas mãos se dedicam a transformar despojos de uma refeição em algo que não estava escrito ou previsto inicialmente. E, num final de dia, enquanto permitia que a música dos Muse se transformasse em fonte de coisas boas, surgiu uma tarte de frango com acelgas e mostarda. 
Foi assim que aconteceu:
Um refogado simples: azeite, cebola picada, pimento vermelho, uma courgette pequena e um alho francês cortados. O frango desfiado quase a seguir, sal e um pouco de vinho branco. Deixa-se refogar durante uns minutos e introduz-se as acelgas cortadas. Mais uns minutos breves ao lume e um pacote de natas. Envolve-se tudo, junta-se uma colher de sopa de mostarda, pimenta moída e mais sal, se necessário. À espera, está massa folhada, previamente picada com um garfo. Depois de se colocar o recheio sobre a massa, preenche-se a parte de cima com queijo mozzarella e emmental. A seguir, um forno quente durante 20 a 25 minutos.
E mais música e um gin tónico partilhado, enquanto se espera. Quando é tempo, serve-se quentinha com o tipo de salada que entendermos. Numa mesa onde se desenhou um caminho feito de luzes sustentadas por copos escolhidos ao acaso.

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