Ler devagar.

O nome de uma livraria. Que se adequa à ideia dos livros da Ana Teresa Pereira. E que recupero, a propósito não só do livro, mas de uma daquelas coisas que acontecem num determinado dia e a que não conseguimos ser indiferentes. Porque no sábado quis tanto que, à minha espera, houvesse algures um livro novo da Ana Teresa Pereira. Um que ainda não tivesse lido. E do nada, num instante de completa gratuitidade, ali estava. A materialização do meu desejo matinal, à mesa do pequeno-almoço demorado de sábado. E eu sei que não é preciso mais nada. Sei que não preciso de ter lido críticas literárias, nem de ver se foi prefaciado ou não, apresentado com direito a fotografias nas páginas das revistas. Sei que os livros dela se bastam. E que ela é uma daquelas escritoras insubmissas, livre. Que não aparece. Nem sequer para receber prémios. Uma figura algo misteriosa, que vive entre as ruas frias de Londres e a exuberância da Madeira. E que, no intervalo entre as duas coisas, escreve. Bem. Há os livros. Que são o que realmente interessa. Tão de ler, que não queremos saber coisas terrenas sobre a Ana Teresa Pereira. Não à opinião dela sobre situações políticas, não à perspectiva relativamente à voracidade com que as coisas se alteram. Só que continue a escrever. O mesmo que sinto em relação a Philip Roth, num registo diferente, porque a escrita crua deste judeu americano se opõe completamente à dimensão fora do real da Ana Teresa Pereira. Mas sei que a minha vida adquire mais sentido, porque posso esperar que um dos dois escreva. E que escrevam, então. É só isso que se deve pedir a quem escreve. Que continue. Sem ser importunado, questionado, interpelado.  
Nos livros da Ana Teresa Pereira, há uma maneira irrepetível de dizer os corpos. As flores. Os aromas. As casas. As roupas com que são vestidas as personagens. As memórias. E a comida. Também a comida. Descrições muito essenciais de coisas muito essenciais. O queijo, o pão quente, os frutos, um copo de vinho bebido a sós. Os livros a que cheguei há muito tempo. Oferecidos pelo amor, feliz porque havia um livro em que uma personagem tinha o meu nome. E porque ela era assim como eu era: de cabelos soltos ou presos, água de colónia que cheirava a frutos e a flores de Verão, jeans gastos, pés de bailarina e ombros despidos. Nesse tempo difuso, o pedido para que o vestido de casamento deixasse ver os ombros. E que a água de colónia fosse a mesma. Voltar aos livros da Ana Teresa Pereira significa voltar ao aroma inicial dos frutos e das flores de Verão. Tanto que há num livro. Nos livros. E a dádiva completamente imerecida que há aí.
Então, amanhã, o meu filho vai dizer que a mãe cheira a flores e a frutos. Early in the morning.

Pretérito Perfeito






Tão belo que um tempo verbal tenha reminiscências poéticas. Primeiro pela origem das palavras. Pretérito, praeteritum, que é o mesmo que dizer passado. E perfectum, que se refere a algo acabado, terminado. Assim, este tempo verbal poético exprime uma acção terminada no passado. É bom pensar nas palavras. E nos lugares de onde surgiram. A mim, soa-me sempre bem, esta formulação. Gosto de repetir: pretérito perfeito. E pretérito imperfeito. Por também gostar das acções que começam algures no passado, mas que se estendem. Imperfeitas. Não acabadas.
O meu fim-de-semana foi assim. É agora um pretérito perfeito. Sendo que agora acrescentaria mais sentido à etimologia. Perfeito. Não por já ter terminado. Mas por se ter aproximado da minha ideia de perfeição. E começou na sexta-feira, num almoço-surpresa, em que se procurou celebrar o (re)nascimento de uma colega de trabalho. Porque nos esquecemos do aniversário dela. E, então, decidi que a Paula iria (re)nascer no dia 28 de Janeiro. Num dia de trabalho, numa hora de almoço breve, a surpresa de um bolo em forma de conta-quilómetros a marcar os quarenta. E nós todos juntos. A partilhar uma refeição que foi aquilo de que ela mais gosta. Mais uma vez, um pedido à Cristina, da Casa dos Vouguinhas, que transforma as características irrepetíveis de cada um, em bolos de aniversário que geram olhares surpreendidos e felizes. Foi assim com o meu bolo em forma de sapato Louboutin. Foi assim também com este conta-quilómetros. Sempre nos quarenta, pela prudência que caracteriza a aniversariante.
E Viseu no sábado. O sítio da minha primeira morada. Por ter nascido lá. E, mesmo que a minha casa seja eu, os sítios onde estiver e as pessoas que amo, este há-de ser sempre um lugar de regresso. Desta vez, por causa de um filme com uma das minhas actrizes preferidas, a Julianne Moore. O Preço da Traição. E depois, olhar as ruas e as casas, porque sim. A Despensa da Praça. Em busca de vinhos e compotas, numa mercearia com armários altos. Uma loja dos anos 20, que já foi muitas coisas e agora é um sítio onde se acumulam objectos belos. E que se chama Rústica. E uma livraria. A Pretexto. Livros e um sítio onde parar para café quentinho e torradas com manteiga. E olhar para a rua.
E a música que veio comigo para casa. Kanye West. My beautiful dark twisted fantasy. Porque gostei tanto que houvesse bailarinas vestidas de negro no vídeo da minha música preferida: Runaway. Enquanto espero por Black Swan. O filme sobre uma bailarina que quer ser um cisne negro. E a música vai enchendo de dança a espera. Esta que partilho aqui.

http://www.youtube.com/watch?v=Bm5iA4Zupek

Aconchego.

Este creme é, para mim, sinónimo de aconchego. Principalmente por estes dias, em que as mãos ficam geladas. E então, sabe mesmo bem ter uma sopa de Inverno à espera. Numa taça, para se aquecer as mãos. Para aconchego imediato.  Porque a ideia de uma sopa quentinha é uma imagem para casa. O lugar de todos os nossos regressos. Esta resultou da imagem inspiradora de um creme de feijão aconchegado por um cachecol em pied de poule. Uma casa que visito regular e virtualmente. Chama-se Nossas Cozinhas, a casa virtual da Fa. E deu origem a este creme de feijão, que eu reproduzi, adaptando-o.

2 cebolas picadas + 2 courgettes + 2 cenouras + 1 lata de feijão manteiga + bacon cortado em pedaços muito pequenos + azeite e sal q.b.

Leva-se ao lume, num pouco de azeite, as cebolas, as courgettes (sem a casca) e as cenouras. Junta-se água aos poucos, acrescenta-se o feijão e um pouco de sal. Coze durante trinta minutos. Depois, reduz-se a creme e junta-se o bacon cortado em pedaços. No fim, basta rectificar os temperos: mais sal e mais azeite.
Uma sopa reconfortante. Aconchegante. Uma sopa que é todas as palavras quentinhas que nos ocorrerem. Aconchegada na taça oferecida pela amiga de sempre, que sabe que a Mar gosta mesmo muito da loiça Bordallo Pinheiro. Grazie!

Caramel

Eu sei que a palavra é caramelo. Mas gosto tanto da sonoridade de caramel, que achei que merecia honras de abertura. Tão doce, a palavra em inglês. De acordo com a realidade que nomeia. E então, fica caramel. Uma palavra tão linda de pronunciar como tangerina, no poema de Eugénio de Andrade. Tan-ge-ri-na. E cada sílaba a ser a ressonância de um fruto delicado de Inverno. Este bolo foi feito com limões. Uma oferta de Inverno que primeiro foi transformada em centro da minha mesa. E depois neste bolo. Em que procurei conciliar a acidez dos limões com a doçura muito óbvia do caramelo. Entenderam-se bem, estes dois sabores aparentemente tão extremos. Uniram-se num bolo que pode ser de chá. Ou suficientemente digno de terminar uma refeição.
Os ingredientes e os passos para este bolo de extremos foram estes:

Para a cobertura de caramelo:

100 g de açúcar + 25 g de manteiga + 1 pacote de natas

Leva-se o açúcar ao lume até caramelizar. Entretanto, junta-se a manteiga e mexe-se. Depois, finaliza-se com as natas, que devem ser envolvidas com cuidado, para não criar grumos. Se sim, basta usar um passador.

Para o bolo:

5 ovos + 150 g de açúcar + 150 de farinha + 100 g de manteiga + sumo e raspa de dois limões

Bate-se muito bem os ovos com o açúcar. Depois, junta-se a manteiga derretida e volta-se a bater. Adiciona-se a raspa e o sumo dos limões e finaliza-se com a farinha, envolvendo sem bater. Leva-se ao forno durante 35 minutos. Quando estiver pronto, desenforma-se e cobre-se com o caramelo.
Um pretexto doce para uma noite em torno de chávenas de chá, bebidas ao ritmo de conversa prolongada com as amigas que estão sempre. Desde sempre.

NB: A receita da cobertura de caramelo não me pertence. Fui buscá-la directamente ao Flagrante Delícia, sem adaptações. E a inspiração para usar limões veio de uma receita de queques de limão que vi num blogue que conheci, a partir da Babette. Chama-se Colher de Pau. E tão inspirador, que desencadeou em mim uma vontade enorme de fazer um bolo de limão:)

Tarte de cebola e queijo fresco

Tenho andado a revisitar um dos livros da figura que me merece mais respeito, no que concerne à comida. Cozinhar com vegetais, de Maria de Lourdes Modesto. Tão sóbria sempre. Nas descrições, nas explicações, na maneira como são formuladas as instruções para as receitas. Uma mulher que dedica a vida a acrescentar coisas ao que já foi escrito e teorizado sobre a nossa cozinha. E sobre a dos outros países, também. Tudo isto para dizer que, para mim, ela está no extremo oposto dos discursos um pouco deslumbrados e pedantes sobre aquilo que é um gesto muito essencial: cozinhar. Para além disso, as receitas dela resultam sempre. Fazem com que nos sintamos capazes de passar tempo a fazer caldos de legumes e de nos aplicarmos a filtrar composições que tornam melhores outros pratos. Nada de receitas que guardam segredos. Ou impossíveis de aplicar a uma vida quotidiana nem sempre fácil de conciliar com o gosto por fazer coisas com as nossas mãos.
Esta foi uma das receitas que isolei. E claro, serviu de inspiração. Porque sou terrivelmente insubordinada e raramente sigo as receitas sem acrescentar ou retirar coisas. Ficou muito leve, a tarte que combina cebola com queijo fresco. E foi parte essencial de um almoço de irmãs, num jardim de Inverno cheio de luz. É bom tirarmos tempo para os nossos. Para lhes lembrarmos que estamos lá. Para nos lembrarmos que eles estão lá.
A receita é esta:
1 embalagem de massa folhada + 2 cebolas médias picadas + 5 fatias de bacon picadas + 1 pacote de natas + 1 queijo fresco + queijo mozzarella + 2 gemas de ovo + azeite, sal, coentros e pimenta.

Estende-se a massa numa forma e pica-se com um garfo. Depois, é só levar ao lume as cebolas e o bacon, num pouco de azeite. Junta-se as natas, sal, pimenta e coentros. Deixa-se aquecer durante uns minutos e acrescenta-se as gemas previamente batidas num pouco de leite. Mexe-se de imediato e adiciona-se o queijo fresco, partido em pedaços pequenos. Deita-se na forma, depois de se pincelar um pouco as margens com um pouco da gema de ovo já utilizada no recheio. No fim, um pouco de queijo mozzarella, para termos um gratinado mais bonito:) Vai ao forno durante cerca de vinte minutos. E basta acompanhar com uma salada de alface e maçãs laminadas.

How to do things with lights and mirrors


Pedi emprestado parte do título a uma obra de John Langshaw Austin. How to do things with words. Um filósofo que trabalhou no MI6 e que depois aplicou a filosofia à linguagem. Um título a propósito da mesa de domingo à noite. Com parte dos objectos que trouxe da minha tarde de procura em Aveiro. A figura principal chama-se Chloé. Achei que era um nome bonito para esta mulher em marfinite, na atitude muito frágil que pressupõe a nudez. Gostei da ideia de multiplicar a fragilidade da minha Chloé e fui buscar espelhos. Juntei os dois copos dourados de cristal que encontrei durante a minha busca. E mais copos antigos, de família. Tudo iluminado por velas que se chamam Blue Tangerine, Kenneth Turner.
Depois da mesa, uns minutos para fazer uma tarte de cebola e queijo fresco, inspirada numa receita da pessoa que mais estudou/estuda a nossa gastronomia: a Maria de Lourdes Modesto. Uma mulher que não é lembrada com a frequência que lhe é devida. Deixo uma nota hoje. A que darei continuidade depois, com a receita que resultou da inspiração que procurei num dos seus tratados.

Receita do bolo que desaparece rapidamente. E uma mesa quotidiana.


Apeteceu-me um título longo:) O bolo de alho francês que é sempre consumido muito rapidamente. Que tem que ser preservado e servido no momento certo. Caso contrário, não chega à mesa. Partido em cubos muito delicados e quase simétricos, não fosse eu tão obcecada com a ordem:) Um bolo que tem a suavidade do sabor do alho francês, matizado com os sabores do bacon, do pimento, da cebola roxa. O meu filho adora esta combinação. E eu adoro que ele adore comer o bolo morno que introduz refeições que são para guardar.
A receita, então:
2 alhos franceses + metade de um pimento vermelho + 4 fatias de bacon partidas em cubos + 1 cebola roxa + 3 ovos + 1 chávena almoçadeira de farinha + 1 pouco de leite + sal, azeite e pimenta rosa.

Antes, começa-se pela parte terapêutica da receita: a de cortar os vegetais e o bacon. Depois, leva-se ao lume numa frigideira com azeite e um pouco de sal e pimenta. Deixa-se saltear durante uns minutos. Entretanto, basta juntar a farinha, os ovos, o leite e uma pitada de sal. Bate-se até a massa ficar fofa. Vamos buscar o que tinha sido salteado e junta-se à massa. No final, é só levar ao forno durante 20 minutos, numa forma untada e polvilhada com farinha. Fácil e rápido. De fazer. E de desaparecer.

Namastê.

Namastê, Leninha. "Curvo-me perante ti." É o que significa esta palavra tão bonita, não é? Porque estás muito longe. Num país que é um mundo muito diferente. E que estás a tornar teu. Por teres escolhido a fragilidade de ir. Para te dedicares aos outros. Lá longe.

Fiz o que disseste. Olhei para a lua cheia e pensei nas pessoas que amo. E enviei-lhes coisas boas com o meu pensamento. Como tu, a muita distância, num sítio onde as pessoas fazem isto esta noite, no templo de Shiva, com abertura para o céu. Uma noite especial, disseste. Que as pessoas reservam para pensar. Desde há 3000 anos. Isso é muito tempo. É bom pensar em coisas assim. Em muito tempo, nas galáxias, no infinito. E pensar que, à escala cósmica, somos mesmo insignificantes. Para relativizar o que tiver de ser relativizado. Não mais do que isso. Porque nesta escala igualmente infinita, a das coisas que as pessoas significam umas para as outras, não há porque relativizar.
Vou guardar este texto aqui. Para esperar pelo teu regresso. E dizer que te ouvi hoje na música que tem a palavra mágica: happiness. A música dos Florence and the Machine. Que és tu e a memória grata das coisas que és. E vou guardar a lua que se vê daqui. E a luz das velas a iluminar o buda de pedra no meu jardim. O sítio da minha casa de que mais gostas. Fica tudo guardado. Preservado. À espera do teu regresso.

Da Mar. Que se curva perante ti.

Caril de pescada e uma evocação

Hoje à tarde lembrei-me da minha tia Beca. E quando acontece lembrar-me de uma pessoa que está longe, que não vejo quando quero, procuro-a. Só para dizer o meu afecto, só para lembrar que tenho saudades. A minha tia é uma das apreciadoras mais entusiastas das coisas boas da vida. E dá-me o prazer de se sentar prolongadamente à minha mesa. Como não podia deixar de ser, também a tia Beca surge na minha memória afectiva, associada a sabores e aos dias de que foram feitos esses sabores. E a refeição que veio à ideia foi algo que em tempos cozinhou para mim: lombinhos de pescada com coentros. Que bem que me soube chegar a casa da tia Beca e ter à espera uma refeição tão simples. Em homenagem às coisas que ela é, enquanto falávamos ao telefone, fiz um caril de pescada. Porque juntei a inspiração numa receita de família à imagem afectuosa de uma pessoa que me ensina sempre o valor da fortaleza numa mulher. Conciliada com o afecto, com a ternura, com a dedicação. E hoje foi disso que falámos, enquanto o sabor intenso do caril competia com a suavidade do leite de côco: da importância da não resignação. De nunca nos contentarmos resignadamente com pouco. Fica a reprodução do caril de pescada que fiz hoje, enquanto ouvia as palavras da minha tia Beca, enquanto oiço a música intemporal dos Radiohead:

2 embalagens de lombinhos de pescada congelados; 1 cebola picada; 2 courgettes; metade de um pimento vermelho; um copo de vinho branco; duas garrafas pequenas de leite de côco; sal, azeite, caril e coentros (a medida que for a certa para nós)

Um refogado com a cebola, o pimento, a courgette e o azeite. Vinho a pouco e pouco. E depois os lombinhos de pescada. Mais vinho, um pouco de sal e os coentros. Fecha-se o tacho durante uns minutos, para deixar cozinhar os lombinhos. Quando for a altura, adiciona-se o leite de côco e envolve-se tudo com cuidado. Depois, é só juntar o caril e mais coentros e um pouco de côco ralado, se nos apetecer. Deixa-se apurar e serve-se com arroz branco e solto. E uma salada verde com maçãs e romãs. Numa mesa sem toalhas, como os ingleses gostam.

PS: Usei pescada congelada, um dos meus recursos para os dias em que não há muito tempo. Mas creio que com pescada fresca, o caril deve ficar muito melhor. E não usei condimentos mais acentuadamente spicy porque não gosto assim muito:)

A mesa para a mãe.



Hoje foi dia de oferecer uma mesa de aniversário à minha mãe loira de olhos verdes. Muito bonita, a minha mãe. Olhos brilhantes e abraços carinhosos, quando lhe mostrei a mesa que lhe ofereci de presente. Com talheres misturados e copos de tamanhos diferentes e pratos de entrada alternados. E as coisas da Mar, que estavam à espera, para celebrar o dia. Sopa quentinha (feita pela Ina). Bolo de alho francês e salada verde. Lombo Wellington, em que me apliquei a escrever a palavra mais bonita com massa folhada. O doce escolhido pelo António, que se aplicou a fazer desenhos de pegadas de dinossauros, para oferecer à avó loira. E um bolo de aniversário feito de macarons. Tudo para a minha mãe. Eu só pedi carinhos e festinhas no cabelo. E que ela me dissesse que há-de correr tudo bem. Quando ela diz isso, fica tudo certo, nos seus lugares. E em mim.

PS: Os macarons vieram da Pastelaria Avenida, em Aveiro. E têm a particularidade de me saberem melhor do que quaisquer outros que alguma vez comi. Sim, mesmo que os Ladurée. E ontem comprei todos os macarons da PA, para oferecer em forma de bolo. Um pedacinho de Paris à mesa de aniversário da minha mãe.

Sábado.





Sábado. Porque foi a primeira vez que a mesa foi posta lá fora, desde que começou o ano. Uma refeição frugal e tardia, lá fora. Porque me apeteceu muito ir a uma das minhas cidades. Em busca de memórias gratas. De objectos belos. Os meus lugares em Aveiro. A Pastelaria Avenida (a PA, para mim e para a Rita). Os objectos na Bau-Uau e no Relicário. Uma exposição niilista, vista de fora. Torradas e chá na Latina, com a Pipinha e o Pedro. Bom, encontrar a amizade por acaso, sem combinar. A ria, desfocada e de noite. No meu Sábado.

Uma vida. E um livro.

A vida é a de um maiores investidores financeiros de Espanha. E o livro foi o primeiro da editora que criou, dedicada a publicar títulos tão deliciosos como este: "Apologia de lo inútil". E eu sei que numa primeira impressão, esta referência poderá não ter nada a ver com comida ou com o acto de cozinhar. Mas eu acho que tem tudo. Porque há uma diferença entre o gesto básico de nos alimentarmos e o ritual de nos dedicarmos a recriar, a ritualizar o acto de cozinhar. Também uma inutilidade, esse gesto. Uma sopa é uma sopa. Vegetais cozidos, passados ou não. Com mais ou menos sal. Mas se a essa sopa acrescentarmos azeite, cebolinho e umas lascas de queijo parmesão, deixamos de ter uma sopa. Deixámos de ter algo que vai só suprir uma das nossas necessidades mais básicas. Para termos uma memória, uma experiência ou tão só o esforço de reinventarmos e de conjugarmos aquilo que a vida nos dá.
Tudo isto para dizer que este livro se dedica a falar de coisas inúteis. A começar pela Filosofia, passando pela arte, pela literatura, pelo amor, pela felicidade. Achei tão de partilhar, porque parei nestas páginas na Vanity Fair espanhola (ed.de Janeiro) e não resisti a falar deste homem que estuda Filosofia seis horas por semana, que diz que os filósofos são empresários do inútil e que "el verdadero placer son las cosas inútiles de la vida: las cañas, las tapas, la lectura."
O nome dele é Santiago Eguidazu. A editora é Avarigani (que em swahili é a resposta a uma saudação). E o livro é "Apologia de lo inútil".
E esteve um dia de sol tão bonito. Tão luminoso que deu para ir ao jardim e guardar esta imagem. Porque é de guardar, quando encontramos um livro num dia em que o sol surge, depois da chuva. E assim nunca nos esquecemos que todos os dias são possibilidades. Basta não as recusarmos, como dizia a Sophia de Mello Breyner, que tinha pena dos que recusavam a poesia. Do irreversível que há nesse gesto de recusa.

Creme de castanhas

Esta é, para mim, a sopa que significa o Inverno. Para além disso, evoca uma pessoa. A minha cunhada, a Mafalda. Tão belo, que um sabor nos faça pensar numa pessoa. E nas coisas boas que ela é. Porque no Inverno, esta sopa aguarda por quem se senta à mesa nos dias frios, na Casa dos Varais. E acho muito bonito o facto de ser uma daquelas coisas sazonais, em que se integra o que a terra dá com abundância nesta altura do ano. E também porque as castanhas são de guardar, de reservar. E assim, durante o ano, sempre que nos apetecer recuperar uma memória grata de Inverno, basta fazer um creme de castanhas. Eu faço-o assim:
2 cebolas + 2 cenouras + 1 batata + 1 courgette + 10 castanhas + azeite, sal e pimenta rosa.

Primeiro as cebolas em azeite, a que se vão juntando gradualmente as outras coisas e água, a pouco e pouco. Um pouco de sal e deixa-se cozer durante meia hora. Depois, é só transformar tudo no creme mais aveludado que conseguirmos. Antes de servir, podemos acrescentar o que nos surgir no momento: pimenta rosa, um fio de azeite, bacon previamente levado ao forno...Tudo pode enriquecer ainda mais esta sopa que nos aquece os Invernos. E os torna mais doces.

Dedicatória

Para a Emília Melo.
O meu dia está a chegar ao fim. Mas antes disso, as palavras que aqui foram deixadas. E a que não consegui corresponder num comentário. Por isso, hoje quis muito escrever a minha gratidão. E a minha gratidão é emocionada. E vai além da alegria que decorre dos elogios. E assim, as minhas palavras vão inteiras para si.
Este espaço foi criado numa tarde de Verão, por um amigo, depois de me terem pedido mais uma receita, depois de ter escrito a minha receita numa folha de papel. E o meu amigo disse que já era altura de criar um blogue. E foi assim. Só para deixar receitas. E seria uma coisa em circuito fechado, pensei eu. Porque nunca tive pretensões de mais nada senão partilhar as coisas que vou tornando minhas. E o espaço virtual, a existir no meio de milhões de outros espaços virtuais, bem melhores do que o meu, foi-se tornando bem real, uma espécie de prolongamento da minha casa. Ou da casa que eu quero ser para os que amo. Mas o melhor tem sido a alegria que me tem dado. E a Emília ofereceu-me alegria com as palavras que deixou no meu último post. Por isso, quis tentar oferecer-lhe palavras. E uma imagem. Composta de coisas da Mar. O caderno verde da Mar. E luzes em forma de estrela. E copos com flores brancas. E uma fotografia de um instante guardado por uma grande amiga. Uma dedicatória.
E sabe, nem de propósito, numa das aulas de hoje, falei da importância da tentativa. De tentarmos todos os dias mais um bocadinho. Mesmo que o nosso corpo às vezes fique cansado. Mesmo quando nos desiludimos e achamos que não vale a pena. Mesmo quando sentimos que os objectos do nosso afecto não estão lá. E não entendem. Eu procuro tentar. Todos os dias. E guardar em mim as coisas que são para amar. Muito pequenas, essas coisas. Uma música enquanto conduzo, as palavras de um aluno que me são confiadas, uma frase do meu filho, um pedaço de céu ou um texto como o seu. No final do dia. E como não gosto de guardar nada para depois, quis escrever para si. Como se fosse uma carta. Desejo-lhe o melhor. E aos seus dois médicos, que a enchem de alegria. Porque lhes terá oferecido boas memórias, eles corresponderão com o carinho alimentado por essas memórias. Declinadas em abraços e em palavras que dão amor. A mais bela das equações. Fica hoje a minha gratidão em forma de dedicatória.

As mesas que acolhem.

Um fim-de-semana feito de refeições demoradas. Mas descontraídas. Sem contar, num sábado cheio de chuva, umas palavras breves e felizes a falar de um jantar na casa da Mar. E a minha preparação rápida de uma mesa, de creme de cenoura, ovos e espargos, risotto e brownies. Uma ementa em ritmo acelerado. E a Mar a precisar de solidão e de música. Para pôr a mesa em silêncio e para acender as velas. Todas as velas que receberam os meus amigos para jantar. À entrada de casa, na mesa, à volta da mesa e lá fora, nas lanternas de pedra do jardim, marcadas pelo tempo e pelo musgo.

No dia seguinte, o António pediu para pôr a mesa. E eu acedi, sem intenções pedagógicas, mas enternecida por ir ouvindo o meu filho a repetir em voz alta as minhas instruções: o guardanapo à esquerda, os copos à direita, a colher junto à faca, mas não muito e o prato pequenino do pão à esquerda. Eu só precisei de fazer uns ajustes na mesa do meu filho de olhos brilhantes. E de lhe dar um abraço feliz, com os meus olhos brilhantes. Por ter ensinado o princípio da autonomia ao meu filho. Em forma de mesa. O legado mais precioso da minha mãe. A autonomia. Aplicada ao sentido de casa. E às coisas que podemos fazer com as nossas mãos.  

Uma sopa minimalista com nome de flor

Os finais de tarde de sexta-feira são dos meus preferidos. Porque é um tempo em que se adivinha o tempo a mais que se vai ter para nos dedicarmos a viver o que está em casa, à nossa espera. Principalmente por estes dias, em que temos a sensação que devíamos simplesmente hibernar ou trabalhar a partir de casa. Mas depois perderíamos o resto. E o resto é o que está lá fora, apesar da chuva.
E fiz um creme de couve-flor. Uma sopa clara, de sabor delicado. A que se pode acrescentar o que quisermos. Mas para começar, bastaram duas cebolas feitas em azeite durante uns minutos, duas batatas e uma couve-flor. Água e uma pitada de sal. Depois, foi só esperar meia hora. E passar até ficar cremosa. No fim, acrescenta-se mais um pouco de azeite. E antes de servir, podemos escolher entre cebolinho picado ou coentros. Mas a minha versão preferida é só com um fio de azeite. Uma espécie de interpretação minimalista, por ser uma sopa tão depurada. Antes do jantar depois da sopa, como diz o meu filho. Antes de uma noite quentinha, a ouvir a chuva e a pensar no pequeno-almoço de sábado, que é tomado com tempo.

Tenho coisas a agradecer: à Fa e à Babette, pela inspiração que fui buscar para a sopa minimalista:). À Sara, pelo panettone quentinho de hoje à tarde. Que vai tornar mais doce o pequeno-almoço de sábado.

Quietude no fim de um ciclo

Quando era pequena, o Dia de Reis não significava coisas boas. Porque era o dia em que desapareciam todos os sinais de Natal. Desfazer a árvore, arrumar as luzes dentro de caixas, onde eram recolhidas durante um ano, enchia-me de tristeza. E então, não percebia o porquê de se celebrar este dia, por preferir que não fosse assinalado. Mas, à medida que se cresce, vai-se aceitando com tranquilidade as fases, os ciclos, as coisas que mudam. Em nós e nos outros. Agora, este dia é vivido com aceitação. Mas ainda assim, com brilhos. Com caminhos feitos de luzes. Nas escadas que levam ao jardim. Velas e lanternas a iluminar o caminho. Por isso, o Dia de Reis é só o dia em que me lembro que termina definitivamente um ciclo e que um novo começa. Um tempo de início. Cheio de luz. Mesmo não querendo assinalar, acabei por ceder a pressões:) e fiz uma nova declinação de brownies. Com pedaços de papaia cristalizada e licor de mirtilos. E enchi com eles uma caixa laranja, das que vão colorindo sítios improváveis da casa. Porque as caixas laranja significam para mim o tempo que se dedica à beleza, à execução lenta da beleza intemporal, em forma de objectos igualmente intemporais.

Deixo hoje as luzes a iluminar o caminho de um ano novo e bolos dentro de caixas laranja.

Uma daquelas coisas de Inverno

Tenho muitas saudades do sol, de sentir o sol no meu jardim. De ter rosas, em vez de camélias, as flores que parecem feitas de cera e que vão caindo das árvores, fartas e apodrecidas de chuva. Pois eu também estou farta de chuva, como as camélias do meu jardim. Mas antes de fazer esta sopa, tentei lembrar-me do que gosto no Inverno. E cheguei à conclusão de que gosto de muitas coisas: da vontade mais acentuada de regressar a casa, da lareira à espera, de achar que o sofá é o melhor sítio do mundo:) e das sopas reconfortantes, que nos aquecem por dentro.
Há muitas virtudes nas sopas, aquelas todas de que falamos às crianças e mais. Nesta em particular, por ser tão neutra. E nisto não sou muito adepta das variações francesas em torno das sopas de cebola, por terem demasiado queijo, demasiada pimenta. O que eu gosto neste sabor, é mesmo a suavidade. Claro que fiz também a versão com queijo, preferida pelo meu belo filósofo. Mas a minha sopa de cebola foi sem queijo e sem pimenta. Enquanto havia chuva lá fora.

A minha interpretação de sopa de cebola:

3 cebolas (duas roxas e uma branca) + 2 cenouras raladas + azeite + água + sal + cebolinho picado + queijo gruyère ou conté e pimenta branca.

Refoga-se as cebolas com o azeite, introduz-se água aos poucos até à quantidade desejada. Depois, junta-se as cenouras raladas, tempera-se com sal e deixa-se cozer durante uns 15 minutos. Depois, na altura de servir, adiciona-se cebolinho picado, os queijos e a pimenta.

Como fazer um jantar em 15 minutos

De vez em quando, distraio-me nos meus rituais de final de tarde. Quando isso acontece, sei que vai valer quase tudo: a inspiração, o que apetece, os ingredientes mais imediatos e claro, a pressão amorosa de um filho que começa a perguntar às seis da tarde o que vai ser "o jantar depois da sopa". Mas basta aproximar-me do lugar da casa onde me sinto mais em casa, para saber exactamente o que vai ser o jantar depois da sopa. E apeteceu-me uma massa leve, com camarões e nozes e um molho de natas perfumado com cebolinho. Soube mesmo bem que fosse tão rápido. E que pudesse ser feito com a tranquilidade com que se bebe um copo de vinho branco e se ouve a música que invade a casa ao início da noite. Uma melodia que descobri porque alguém enviou música de presente. Preisner, uma banda sonora comovente, a acompanhar todas as etapas breves de uma massa que ficou na memória. E que o António quis repetir, por ter gostado tanto da massa da mãe Mar. E eu fico feliz porque o António gosta da comida que eu faço com as minhas mãos. Porque a comida que nasce das minhas mãos há-de transformar-se em memórias quentinhas, que o hão-de acolher, quando a vida for dura com ele ou quando precisar de um sítio onde regressar.
A receita da massa que o António quis repetir:

250 g de massa Taglioline + 1 cebola roxa + pimento laranja + camarões (os que quisermos) + 1 pacote de natas + cebolinho picado + nozes picadas + o normal (azeite, sal, pimenta preta moída e vinagre balsâmico).

A massa coze em três minutos, na mesma água onde durante três minutos foram cozidos os camarões. Isto porque a ideia é que a massa absorva logo os sabores dos camarões. Quando a massa estiver cozida, passa-se por água fria e regressa ao mesmo tacho, onde estão à espera a cebola roxa, o pimento e o azeite. Deixa-se refogar só um pouco e junta-se a massa e os camarões descascados. Depois as natas e as nozes e o cebolinho. Rectifica-se os temperos e serve-se logo. Para ser comida quentinha.

PS: Queria agradecer à Joana. Pela música comovente que enviou. Pelo que senti ao ouvir o piano de um compositor que não conhecia. E pela história eterna de Prokofiev que o António vai conhecer. O melhor para si. Pela música e pela poesia que trouxe à casa da Mar. E do seu antigo professor de Filosofia. Igualmente comovido. Com a música e com a generosidade que pressupôs a música. Depois de tantos anos.

Um presente de ano novo feito de chocolate e tangerinas

Resolvi ver como é que resultava associar tangerinas a um bolo de chocolate. E acho que correu bem. Porque quis que o ano novo soubesse intensamente a chocolate e que fosse de alguma forma suavizado pela presença das tangerinas. E aos sabores, juntou-se a doçura de uma turma inteira e absolutamente surpreendida. Porque lhes tinha prometido em tempos um bolo de chocolate. E nós devemos cumprir as nossas promessas, não é? Apesar de não serem meus alunos. Ou principalmente por não serem meus alunos, uma vez que as minhas turmas só têm direito a bolo de chocolate no final do ano, na última aula:)
Fica a receita do meu presente de ano novo para uma turma irrequieta:
1 chávena de farinha + 1 chávena de açúcar + 150 g de manteiga + 200 g de chocolate para culinária + 3 tangerinas confitadas + sumo de duas tangerinas + 6 ovos inteiros

Junta-se a farinha, o açúcar, a manteiga derretida e os ovos inteiros e bate-se muito bem. Depois, é só acrescentar o chocolate derretido com um pouco de manteiga, bater mais um pouco e finalizar com pedaços de duas tangerinas confitadas e o sumo. Vai ao forno durante meia hora. Para ficar mais bonito, um creme, feito com 100 g de chocolate derretido com uma colher de sopa de manteiga, duas colheres de leite condensado e um pouco de natas.
Uma receita que espalhou felicidade com sabor a chocolate e a tangerinas. No primeiro dia de aulas do ano.

Lista de coisas para fazer

Um ritual de todos os anos. A lista. A primeira de todas as listas. Na primeira página da minha agenda. Sabendo que a minha agenda de cada ano é feita de muitas listas. Por causa da minha tendência para a organização:), uma tendência que os que me são próximos suportam amorosamente, enquanto me olham a controlar os pontos de cada dia: o que está feito e o que falta fazer. O meu sentido de disciplina quotidiano, que me leva a fazer sucessivas listas de coisas pequenas, insignificantes. E a par dessa racionalidade, ser impulsiva nos afectos. Dizer e fazer coisas boas em nome do meu afecto pelas pessoas que vão tomando conta dos meus dias.
E eu sei que se pensa mais em desejos. Os desejos do ano novo. Eu prefiro pensar em coisas que dependam de mim. Porque os desejos nos colocam na posição confortável e algo passiva de esperar. Esperar que as coisas aconteçam, que surjam. Então, penso com calma nas coisas pequenas de todos os dias. Nas coisas que quero fazer em cada um dos dias que me forem concedidos. Acabam por ser quase sempre as mesmas, as coisas da minha lista. E muito simples. Nada de grandes propósitos. Mas ficam os registos de todos os anos. E este começou com um presente muito poético. Um caderninho Smythson, a dizer na capa que quer acolher Dreams and Thoughts. Em verde, uma das minhas cores preferidas.
Uma das tais coisas que dependem de mim e que faz parte de todas as listas: cozinhar sempre. E continuar a gostar de vir aqui, para deixar na memória as coisas que fiz. A formulação de uma intenção, a ouvir a música inicial dos The XX, Intro. Tão apropriada, a introdução dos The XX. No primeiro dia do ano.  

Os céus do último dia do ano



O dia 31 de Dezembro começou muito cedo. Com uma Mar ensonada, a descer ao primeiro piso do Ritz, para se entregar aos cuidados de umas mãos silenciosas e tranquilas. Que me acolheram no início do último dia do ano, depois de tantos dias a fazer comida com um prazer renovado. E não por ser uma tarefa intrínseca ao quotidiano. Mas antes de descer, as imagens do céu. Porque fiquei tão feliz por haver cá fora um arco-íris e um sol a acordar uma cidade luminosa, de que gosto tanto. Vista da janela de um quarto. A room with a view.
As minhas memórias do dia de todas as retrospectivas. As colectivas e as mais importantes, as individuais. E as minhas memórias foram um pequeno-almoço lento e quieto, que soube a sumo de laranja e morangos. E o olhar silencioso de um marido que diz que um certo vestido foi feito para mim. E as velas que vão iluminar o ano novo. E o céu na Igreja dos Mártires, onde me ajoelho silenciosamente perante os homens que construíram este templo. Perante a minha ideia de Deus. Um lugar de contemplação, no meio da agitação cosmopolita do Chiado.
Um dia que já soube a início. Porque todos os dias são princípio, por serem possibilidades diárias de nos surpreendermos, de nos encantarmos ou de ficarmos felizes por ver um arco-íris.

Os livros.

O meu livro. E o do meu belo filósofo. Os livros que entraram no ano novo. O dele, Erros Individuais de José Miguel Silva. Um poeta, antigo colega de faculdade. Uma escrita entre o sentido poético do quotidiano e uma racionalidade crítica. Quase uma viagem a Itália. Um livro que nos leva de viagem. E o meu livro. Uma das minhas resoluções, a par de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Será que é este ano? Não faço ideia, mas gosto de pensar que sim, que será este ano. Entretanto, enquanto não, leio a Servidão Humana de Sommerset Maugham, um título retirado de um dos livros da Ética de Espinosa. Um belo propósito, para começar o ano. 703 páginas, cheias de propósitos:)

La douce fin de l'année



Gosto muito da minha casa. Mas, de vez em quando, faço a mala e sigo viagem. Não só pela ideia da viagem em si, mas para ir em busca de coisas que me acrescentem. De lugares que sejam momentaneamente a minha casa. O fim deste ano foi o Ritz, em Lisboa. E eu gostei mesmo muito de associar este hotel ao final de um ano tão bonito. E sei que foi a primeira de mais vezes. Apesar de continuar a gostar muito do meu hotel com jardim, o Pestana Palace. Mas o doce fim de ano no Ritz deixou em mim uma memória que quero muito preservar. Por muitos motivos. Sabendo que poderia enumerar os detalhes mais ou menos técnicos. Mas vou escusar-me a isso. Porque todos esses pormenores foram ultrapassados. Pela sobriedade do espaço, pelo luxo silencioso que se adivinha a cada passo e pela simpatia contida dos que ali trabalham. Os murais, as tapeçarias, os mármores e o brilho quente de um arranjo de Natal, que dá as boas-vindas a quem chega. As minhas memórias doces de final de ano. Gravadas hoje, no primeiro dia de um ano novo. Para partilhar, para dizer que foi assim que eu fui procurar coisas belas, nos dias finais de 2010. Para dizer que não quero adiar a ideia de felicidade. Agora, tentar ser feliz agora. E não num futuro desconhecido e improvável.

A(mar) no Gambrinus

Eu não conhecia ainda. O meu belo filósofo sim. E ele achou que este era um dos sítios que eu devia conhecer, antes que o ano acabasse. Porque sabe como gosto de restaurantes, quase tanto como gosto de cozinhar. E então, mais uma memória foi adicionada ao património que trago dentro de mim. Uma boa memória, declinada num consommé e croquetes com mostarda, num filet Gambrinus e numa mousse de chocolate e avelãs. Uma refeição demorada, entrecortada pelos risos de uma família italiana, claramente a celebrar a dádiva de estarem juntos a uma mesa. A dádiva da reunião pela comida.

E eu registei isto em mim. E no caderno que me acompanha. Para não me esquecer de nada. Para memória futura. Para quando eu deixar de existir. Ficam os cadernos da Mar. Os registos da Mar.

Um sítio da Mar. Que é de amar.

Creio que o Tia Alice, em Fátima, foi o primeiro restaurante de que falei aqui. Pois este é um dos meus sítios, porque raramente vou a Lisboa sem uma paragem estratégica em Fátima. Na ida ou no regresso, não importa. Não em busca de novidade, mas da memória dos sabores que antecipo como previsíveis, mas sempre bons. E peço sempre as mesmas coisas: a açorda de camarão ou o bacalhau gratinado e uma carne assada absolutamente marcante. Um doce e uma salada de frutas exóticas, feita na hora.

Vale mesmo a pena a paragem, para seguir viagem com uma sensação boa de reconforto. Um restaurante tão previsível e tão meu, que já não é preciso pedir a lista, por tantas refeições guardadas na minha memória. Um sítio a que regresso indefinidamente. Com a prudência de uma reserva antecipada. Porque há muitos que vão em busca das mesmas memórias. E ainda bem.

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