Um lugar onde pensar em voltar.

































Acaba aqui, o relato. Numa das mesas do Florian. Um bom lugar para terminar. A uma mesa. Onde se esteve prolongadamente. Com o olhar pousado em asas etéreas que voam indefinidamente. Um lugar com direito a suplemento musical. Com uma orquestra. E uniformes brancos que trazem bandejas com memórias de sabores. Daqueles que ficam muito em nós. Foi num final de dia que aconteceram os fragmentos que ficam hoje. Depois de muitas coisas, tempo de contemplação silenciosa. Há sempre tanto no que guardamos para nós. Nos momentos em que o olhar se demora em pormenores que de outra maneira seriam irremediavelmente perdidos. Nunca me importou a urgência de ver por ver. Ver para dizer que se viu, que se esteve lá. Uma componente febril de que não gosto. Embora perceba o subjacente. Rentabilizar o tempo disponível para se estar num lugar. Ver o máximo no menor tempo possível. Fazer o contrário um bocadinho. Passar por filas intermináveis e não querer tomar parte em nenhuma delas. Passar por uma fila em direcção a uma esplanada. E ver pessoas. E céu. E fechar os olhos. Para ver melhor. Para conservar melhor o que está a acontecer. O ruído do mundo numa esplanada. A espuma dos lugares onde estamos de passagem. As imagens que ficam são detalhes do que quero conservar na memória. Porque Veneza também foi isto. Foi a orquestra do Florian. E os uniformes brancos dos empregados. Os brilhos dos lustres lá dentro. Biscoitos de canela e chocolate e manteiga. Os rostos contemplativos nas mesas ao lado da mesa. A luz de Veneza a tomar conta de um final de dia. Antes de expirar até ao dia seguinte. E ali também houve isso. De pensar num dia seguinte. Guardei a possibilidade de um dia seguinte no Florian. Porque pensei em voltar. Voltar a Veneza. À luz que é só de Veneza. Depois de uma viagem, querer voltar. Uma espécie de enunciação de um propósito à medida das nossas possibilidades interiores: voltar. Hei-de rever-me naquela mesa. Num dia que ainda não sei. Que vive à distância simples da eventualidade de um dia seguinte.

7 comentários:

  1. Belo texto, muito bonita e verdadeira a ideia de que fechando os olhos, podemos por vezes, ver melhor. Boa viagem.

    Jo

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  2. Olá Jo:

    Têm sido boas viagens. Com momentos em que se fecha os olhos para se ver mais claro.

    Obrigada por ter gostado de ler.

    Mar

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  3. Olá Mar,

    Os seus textos são sempre um estímulo à reflexão. Num momento em que as notícias são perturbadoras, não só pela crise económica, como pela série de acontecimentos imprevisíveis que afectam a sociedade, como os acidentes recentes em Londres, necessitamos de forma urgente de repensar os nossos valores. O modo como no presente encaramos e vivemos as férias demonstra bem as inversões que ocorreram no último século. O seu texto é um contraponto a essa visão, por isso, merece ser lido e relido.

    Estou a pensar encomendar na Amazon um livro do Hartmut Rosa - Accélération. Une critique sociale du temps, que aborda este assunto. Li uma entrevista deste autor que me pareceu interessante.

    Um beijo

    Fa

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  4. Olá Fa:

    As notícias de todos os dias têm feito com que pense insistentemente na ideia de que cada vez mais é preciso afecto, amor, bondade. A barbárie pode assumir muitas feições. Pode ser um inútil que se aproveite de um acontecimento para ir roubar e queimar e magoar. Pode ser um mundo que assista impassível à fome na Somália (vi hoje que em cinco anos, foi a primeira vez que o ACNUR enviou comida). Pelos vistos, naquele território, as acções eram mais de charme, para fotografias de rostos benevolentes. Não é que sejamos nós os virtuosos que vão dizer de fora como é que se muda as coisas. Acontece que nesses universos há pessoas em quem o mundo delegou tarefas. Para que fizessem o que individualmente não tem impacto. Acontece isso. E outras coisas que me entristecem.
    Fico feliz que para si, o meu texto seja um contraponto. E agradeço. Muito. E com humildade.

    Um beijo com carinho, minha Fa.

    PS: Não conheço nem o livro, nem o autor. Mas é provável que o meu marido devorador de ensaios conheça:)Vou perguntar-lhe.

    Mar

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  5. Olá:

    Os seus textos mostram, como se devem viver as férias. Eu também sou assim. Se eu for a Veneza é a esses lugares que eu quero ir. Obrigada por partilhar esses momentos, porque enquanto não vou, fecho os olhos e imagino esses lugares.

    Beijo.

    Nita

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  6. Que lindo ser lida assim, Nita! Que o relato desta paragem seja motivador de coisas assim. E sim, que um dia vá a Veneza. E que vá a estes e a outros lugares. No entretanto, fico feliz por dar um bocadinho de coisas de olhos fechados. Obrigada por isso.

    Um beijo.

    Mar

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