Veneza. Sereníssima.















































Significa muitas coisas, o gesto primordial de ir. A começar pelo facto de nos expormos ao imponderável. Por mais que até antecipemos. Por mais imagens prévias que haja. Por mais relatos e impressões que se oiça. Por mais referências literárias que preparem o caminho. Vamos e pronto. Com o que somos. Com o que esperamos vir a viver. Sempre com isso. Com expectativa de mais vida algures. Não para escapar da que fica em suspenso nos lugares que deixamos. Não por nos ser insuportável. Tanto, que queiramos escapar-lhe. Uma divergência profunda em relação ao escape, à fuga. É para gostar mais do quotidiano. É por gostar tanto do quotidiano.
Veneza está em mim. Quero muito que esteja aqui. Em fragmentos mais ou menos aleatórios. Mas meus. Daquelas coisas que fazem com que o olhar se demore. Para que fiquem aqui. No lugar onde partilho o que não passou despercebido. Tudo o que fica integrado. Irremediavelmente integrado. Uma parede onde ficou registado um amor que se quis para sempre. Cartazes rasgados. Um jardim privado num lugar onde achamos que a beleza é sem restricções. Frutos e legumes que apeteceu transformar em coisas que perduram na memória. Um homem a guardar uma escultura. Horas ao sol, para vigiar uma escultura. Despojos que não encontram lugar. Céu. Água. E eu. A acontecer no meio disso tudo. No meio de muitas pessoas. Fui mais um dos passos, ali. As coisas nunca mais voltam a ser as mesmas. Pisei aquelas pedras. Olhei a água. Senti o vento. Queria muito adivinhar o vento de Veneza. O scirocco da "Morte em Veneza". O vento quente que vem de África. Acho que não. Que não aconteceu o vento da palavra que acho linda. Terei de voltar, então. Por causa do vento. Para ir em busca do vento que é uma palavra linda de pronunciar. Scirocco. Quase tão bela como sereníssima.
E sim. Serenidade. Apesar do ruído persistente. Das pessoas a seguirem outras pessoas. Dos flashes das máquinas. Das vozes que pediam olhares. Serenidade. Passos ponderados. Mas que quiseram perder-se. Em vielas onde se podia ouvir o silêncio que havia dentro. Sereníssima, então. Como a cidade que foi uma morada transitória.

13 comentários:

  1. Gosto de ver o mundo pelos teus olhos. Porque captas sempre pormenores únicos e lindos. Com muita sensibilidade, já to disse. Mais memórias incorporadas, então. Para (e por se) gostar do quotidiano. Revejo-me nessa interpretação da fuga. A "Arte da Fuga". Como em Bach...
    Um beijo da tua amiga,
    Babette

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  2. A serenidade aliada à elegância e à graciosidade d'aMar...
    Ainda bem que te deixaste perder nessa cidade mágica, nesses teus "passos ponderados", mas que te trouxeram de novo ao sítio onde pertences e que te pertence a ti.
    Beijos quentes neste dia que começou fresquinho...

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  3. Já há Mar, que bom lê-la. Assim, como sempre: na beleza dos textos, das ideias. A insistência no quotidiano.Que não é o mesmo, sem si e sem a Babette.
    Beijinho

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  4. Gosto muito da maneira como dizes as coisas, sabias? Bocadinhos de mundo pelos meus olhos, então. Bocadinhos do que gostei muito de viver. E foi tanto. Mesmo (ou principalmente) as coisas silenciosas. Que são as que perduram verdadeiramente. Pelo quotidiano. Para o quotidiano. Para lhe serem acrescentadas coisas que significaram aproximações ao belo. Linda, a cidade do vento da palavra que é como a cidade.

    Um beijo para a minha amiga.

    Mar

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  5. Um dia dissonante. Só pela ausência de sol. Mas lindo. Cheio. Estou no Andanças. Interrompi as férias para poder estar. Lembras-te da agitação por estes dias? Voltar é bom. Regressar à vida que é de todos os dias. Com coisas dentro. Lugares e vozes e imagens. E mais. Voltar ao lugar que nos pertence um bocadinho. E a que pertencemos. Mesmo que eu pense sempre que a minha casa sou eu. O lugar onde estiver, é a minha casa.

    Um beijo com carinho. Para ti. Que tens estado sempre.

    Mar

    PS: A Marta disse-me hoje que lhe escreveste. E que deves ser uma pessoa linda. E eu disse que sim:)

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  6. Olá minha Lusitana:

    O meu quotidiano também sentiu a sua falta:) Mas foi por bem. Foi para coisas silenciosas. E para estas. Que partilhei. Gostei muito. As coisas já não são as mesmas. Nunca são, depois de um lugar desconhecido.

    Um beijo de saudades.

    Mar

    PS: Também tenho muitas saudades do quotidiano partilhado da Babette. Pelas coisas boas que traz aos nossos dias.

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  7. Olá querida Mar,

    Os seus textos são sempre pontos de partida para viagens interiores. E este não foi excepção. Porém, desta vez fiquei encantada com as fotografias. Olhares imprevistos sobre uma cidade que "conhecemos" quase sempre por outras imagens.

    Estou neste momento a ouvir um dos meus cantores preferidos do Mali - Boubacar Traoré. Achei graça ao facto de uma amiga da Mar outro dia ter feito referência a um outro músico do Mali, do qual também tenho vários Cds. Recordo-me que quando vos referi os meus gostos musicais os acharam um pouco estranhos. Quando conseguir gravar uma canção envio à Mar e à Babette.

    Até já

    Fa

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  8. Olá minha Fa:

    Eu fiquei realmente encantada com cada bocadinho de água. E até registei alguns desses pedaços. Depois dei-me conta que seria impossível registá-los, sempre que aconteciam. Por gostar tanto destes fragmentos. Por achar que me ficam de uma maneira ou de outra. Por serem fragmentos, muito provavelmente. E breves. Transitórios. Sabe qual é a imagem de que mais gosto? A da parede onde estão escritas aquelas coisas cheias de amor. Pensei se ainda seria assim. Se aquelas pessoas que registaram ali o amor ainda estariam juntas. Ou não.
    E sim, achei estranho o seu gosto musical:)Mas a falha aí é minha. Por ignorância. Por não conhecermos, achamos estranho. A parte boa é que conhecê-la a si, há-de significar conhecer mais música do mundo:)

    Um beijo de até já. Como se diz aos que nos são queridos.

    Mar

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  9. Querida Mar,

    para saudar o seu regresso, um mimo em forma de poema. De um dos poetas que me apareceu um dia, por acaso também, e que aprendi a amar. Um poema tão simples, que fala dessa beleza que encontrou em cada canto, mesmo em simples palavras de amor escritas numa parede gasta pelo tempo. A beleza que dá vida a cada coisa e a nós próprios.

    "De muitas coisas se pode morrer
    em Veneza
    De velhice de susto
    de peste

    ou de beleza"

    Jorge Sousa Braga

    Fazia falta por aqui! Tanta!

    Com ternura, sempre,

    Mafalda

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  10. À Fa, aqui no canto da Mar:
    Pois eu achei os seus gostos musicais extravagantes mas absolutamente deliciosos.
    Não lhe contei, mas também tive uma "fase" em que só ouvia música gregoriana. O meu professor de História da Música, na altura, teve a sua influência. Por outro lado, descobri também que esse tipo de música me ajudava a estudar matemática, na faculdade. Mas a Tese de Mestrado, por exemplo, foi escrita a ouvir Chopin. Repetidamente. Já a música do Mali, confesso que vou ter de investigar....
    Beijos às duas
    Babette

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  11. Olá Mafalda:

    Creio que a minha pequena morte foi doce. E foi de beleza. Exactamente. O meu marido diz que Roma consegue ser mais esmagadora a esse nível. Por ser tanta e tão constante, a beleza. Obrigada pelo seu mimo em forma de poema. Não conhecia. Chegou-me mais um poeta. Por si. Bom, isso. Que a poesia nos chegue por pessoas lindas. Tinha saudades suas. E já vi o seu email:)Vou responder daqui a pouco.

    Um beijo com carinho.

    Mar

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  12. Olá!

    Gostei muito das fotos. Mas, as palavras conseguem tocar bem mais fundo. As palavras emocionam-nos mais. Não há nada com tanta volúpia como as palavras. Fragmentos das viagens que fizeste podem encher almas alheias. Por isso, as viagens alargam o nosso mundo bem como o daqueles que nos lêem. E refinam o nosso olhar. Durante as viagens temos tempo para olhar para as coisas de outra maneira. Abeiramo-nos das coisas devagarinho e bebemos um pouco do seu mistério.

    F. Pinheiro

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  13. E eu gostei das formulações que deixaste. Muito particularmente da ideia de as viagens nos fazerem abeirar das coisas devagarinho, para lhes bebermos um pouco do mistério. Partilho isso das palavras. E fico feliz por haver fragmentos meus nas almas que os lêem. Muito bonita também, essa ideia. Obrigada pela visita. E muito pelo que verbalizaste.

    Mar

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