Frágil.



E aconteceu. Partiu-se. Não dá para substituir. Para ir em busca de um igual. Não há em lojas. Nem tem uma marca. Não tinha idade, o copo que o meu filho partiu. Um gesto cheio da alegria que só as crianças conseguem. Um pousar demasiado determinado. E isto. Partiu-se um dos meus copos preferidos. Com flores desenhadas a ouro. E a delicadeza irrepetível de beber pelo copo que se partiu. Tão irrepetível, que vai deixar de haver.
Aconteceu assim. Um lamento inicial, a olhar os dois pedaços que não podem voltar a unir-se. Por se terem quebrado. Mas depois, continuar a ver beleza. Mesmo quebrada. Permanecia, a beleza que o tornava irrepetível. E frágil. Como tudo o que é belo. Uma metáfora, o meu copo partido. Olhei-o. E era uma metáfora. Disso, da fragilidade da beleza. Mas de outras coisas que me dizem muito. Como esta conclusão muito elementar. Ele partiu-se porque era usado. Partiu-se porque não estava fechado num armário. Junto a outras coisas fechadas. Partiu-se enquanto era vivido. Por ser vivido. Até pelas mãos imponderáveis de uma criança de seis anos. Uma opção que importa riscos, esta de escolher viver seja o que for. Ainda assim, saber que mesmo que nos quebremos de vez em quando, como o meu copo, é melhor a parte de não se estar à espera de viver lá à frente. É assim com os copos frágeis que estão à mesa de todos os dias. As pratas que se juntam a chás de final de tarde. E a jantares prolongados. E ao mais que houver. Vinhos que não esperam demasiado tempo até serem prazer acrescentado. Lugares que são sempre de conhecer urgentemente. Pessoas a quem temos mesmo de dizer que é lindo que existam. Coisas assim. Coisas destas que surgiram enquanto olhava o meu copo partido. Lembrar-me dessa característica que é de impulso. Se há beleza, para quê privarmo-nos da contemplação? Se queremos muito, para quê obrigarmo-nos a não querer? Ainda que nos quebre. Ainda assim.
Então, apesar de o meu copo se ter partido, vou continuar a usar os outros todos. Igualmente belos, de tão frágeis. Os armários vão continuar a estar entreabertos, por serem de coisas que são usadas. Coisas que dão muito. Enquanto existirem. E quando não, lembrar o que foram. A beleza toda que foram. A felicidade que souberam dar, enquanto estiveram lá. E saber que se podem reinventar. Ganhar vidas novas. Que nos oferecem outros olhares. Como este. Um copo partido, cheio de cerejas. Sobre umas asas de anjo. Numa mesa. A encontrar maneiras de regressar à mesa, o meu copo partido.

PS: Registar hoje a humildade luminosa da minha aluna que escreveu um livro. A Marta, num programa de televisão de hoje à tarde. A voz calma e ponderada da minha aluna. A dizer-se. E às coisas que vai vivendo. Sem pressas. E sem coisas apressadas. Porque o episódio fugaz e irrelevante do copo partido surgiu quando falámos. Depois dos holofotes e das perguntas. Para dizer que sim. Que é bom vivermos as coisas. Retirarmos delas o melhor que pudermos. E que se nos partirmos, haverá sempre esse património irredutível. E nosso. Inquebrável, esse. Para corresponder, as palavras da professora Mar. À ternura com que falou desse outro episódio. O de termos coincidido. Obrigada à Marta. Que é de muitas cores.

17 comentários:

  1. Belíssimo texto! Belíssimo pretexto! A metáfora da vida toda, aqui. A vida toda num copo. Partido.Obrigado!
    antónio.

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  2. Belíssimo texto! Belíssimo pretexto! A metáfora da vida toda, aqui. A vida toda num copo. Partido.Obrigado.

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  3. Mar, que lindo texto. Que bom que consiga ver poesia num copo partido. Num copo que se partiu porque foi usado. Porque foi vivido. E que continua a ser belo, com essas cerejas. Uma beleza diferente, mas belo. Um beijo para si e outro para o menino que pousa copos com (demasiada) determinação. E um abraço para sua aluna do "cabelo às cores".

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  4. parece-me a mim que a Mar tornou eterno esse copo, cuja beleza já era eterna, mesmo antes de se partir.
    Sofia

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  5. Pois falámos sobre isso no sábado... De procurarmos usar as coisas. Procurar acrescentar o nosso tempo vivido com elas. Até que, sem querer, acontece uma coisa associada ao uso. Triste, por saber que se partiu um copo de que gostavas muito. Feliz, por perceber que mais uma vez conseguiste ver o copo meio cheio, ainda que partido!
    E um beijo à Professora Mar. Que comove e faz comover alunos.
    Babette

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  6. Adorei este texto, como sempre. Mas deste, mais. Por se poder transpor para tudo na vida, o usar, o partir, o viver...

    E um beijo à Menina-Coragem de 1000 cores. Não a vi no tal programa de televisão de hoje à tarde, mas consigo-lhe adivinhar o arco-íris que espalhou!

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  7. Olá António:

    Sim, uma vida num copo partido. É o que significa, o copo que se partiu.

    Obrigada a si. Pelo prolongamento que deu ao texto que lhe fez bem.

    Mar

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  8. Olá Ilídia:

    Acontece-nos muitas vezes. Conseguirmos antever poesia em coisas que eram velhas ou estavam estragadas ou não eram usadas há muito tempo. Nunca tinha acontecido com um copo partido. Sempre para longe da vista, para o lixo. Com este, foi impossível. Achei que era mais bonito prolongar-lhe a vida, por ser lindo.
    E sabe, o meu menino há-de continuar a beber água por copos delicados como este. E aprender a pousá-los com menos intensidade:)
    A minha aluna. A minha aluna é muito especial. E há-de estar grata pelo abraço terno vindo dos Açores:)

    Um beijo de fim de dia.

    Mar

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  9. Olá Sofia:

    Gostava que sim. Que a beleza do copo partido fosse eterna. Que perdurasse um bocadinho. Uma espécie de ilusão, essa. Mas também as ilusões são belas. Acreditar que sim. Como com o copo.

    Um beijo para si.

    Mar

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  10. Foi também isso, o sábado que me ofereceste. Falar destas coisas. De não enclausurarmos os objectos. De não os remetermos para uma ideia futura que pode não haver. Já sabes coisas. Aquilo de eu não conseguir muito essa ideia. De futuro. De pensar repetidamente que é fácil deixar de. Estar. E deixar de estar. Sem permitir que essa noção seja castradora. Que condicione em demasia. Mas é assim e pronto. A mesma coisa com as coisas que nos prolongam e acrescentam. Permitir que se dê isso quotidianamente. De nos sentirmos acrescentados. E de procurarmos ver os copos meio cheios. Ainda que partidos:)

    Um beijo para a minha Babette.

    Mar

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  11. Uma leitura inevitável, sabes? Pareceu-me. De como um copo de que gosto poderia ser resgatado de um fim igualmente inevitável. Permaneceu. Por me ensinar coisas, o copo quebrado.
    Também não vi o programa todo. A história da Marta era demasiado intercalada com coisas que quebravam um bocadinho o fio condutor. Vi-a ali. E fiquei feliz. Por ela. Com ela. E partilhámos depois o que ficou de tudo o que tinha acontecido. Quis prolongar o brilho luminoso do arco-íris que é a minha Marta do cabelo às cores:)

    Um beijo para ti.

    Mar

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  12. Mar, o seu post foi uma verdadeira lição de vida. Também eu fiquei muito triste quando parti uma chávena do meu serviço de chá favorito. Ainda mais por saber que nunca a poderia substituir. A partir de hoje, sempre que o mesmo acontecer, perceberei que ao dar uso às coisas estarei a dar-lhes vida, que como a nossa também tem um fim, e sem hora marcada.
    Um beijinho
    Patrícia

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  13. Olá Patrícia:

    Fico feliz que tenha sido possível retirar coisas boas deste episódio do copo partido. E sim. Mesmo que sejam insubstituíveis, viver muito as coisas lindas que há para viver. Pelos objectos que vamos acumulando. Saber que mesmo que um dia se quebrem, nos deram muito. Como agora, lembrar as vezes em que o meu copo esteve à mesa. De como era bonito e elegante. De como ritualizava um gesto banal. Ficaram coisas dessas.
    Obrigada pela vida que acrescentou ao post de hoje, Patrícia.

    E um beijo para si.

    Da Mar

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  14. Concordo, se partiu, fica a lembrança!
    Beijinhos.

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  15. Um copo partido que é lembrança. Evocação. De todas as vezes que foi usado.

    Um beijo para si.

    Mar

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  16. Mar,
    Belíssimo texto. A beleza da irregularidade. Não pela falta, mas pelo uso, por estar completo, por ter vivido. Paradoxal - em dois, partido, mas completo e único.
    Gostei demais.
    Abraços,
    Bergamo

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  17. Olá Marcelo:

    Obrigada. Pela sua leitura. A óbvia. E a construção que fez a partir do que está aqui. A descrição de uma daquelas coisas inevitáveis: a perda ou a fragmentação do belo. De como isso é frágil. Mas também...era belo exactamente por isso. Ou também por isso. Por ser frágil.

    Um beijo para si. Aí do outro lado do Atlântico.

    Mar

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