Para a Marta. Que escreveu um livro.


A Marta tinha quinze anos quando escreveu o livro que hoje apresentou. Tem dezasseis, agora. Uma maneira que encontrou para fazer todo um percurso interior. Porque se viu muito cedo na circunstância de ajudar a cuidar de uma irmã com paralisia cerebral. Com tudo o que esse ajudar implica de perda de centralidade. Por haver uma vida que precisava de cuidados continuados, concentrados e sempre urgentes. A minha aluna do cabelo às cores escolheu transformar todas as coisas duras da sua circunstância em palavras. Concentrou-as em oitenta páginas. E escolheu partilhá-las com a professora de Português, no Verão do ano passado. Uma dádiva, então. Ser-me confiado um livro de uma aluna.
Deixou há uns meses de ser minha aluna. Está agora numa escola grande, decerto. Na cidade da luz mais bonita. É por lá que anda a minha aluna do cabelo às cores. Há umas semanas, a notícia de que o livro que estava no meu email, iria materializar-se. Que a apresentação seria hoje. E que queria que eu escrevesse o prefácio. E que estivesse lá. Mais dádivas. Mais coisas gratas, vindas da minha aluna. E sim, com um orgulho enorme. Escreveria e estaria lá. A tentar dizer a graça de me ter acontecido a Marta.
Acontecem coisas muito bonitas na vida de quem ensina. Cada aula é uma tentativa de nos dirigirmos aos mundos que se sentam nas cadeiras. De apelarmos. De interpelarmos. De sermos duros, por vezes. Porque o afecto pressupõe verdade. E a verdade nem sempre é fácil. Ela costumava estar lá. Um dos imaginários que se sentava a escutar. Já não assisto às variações na cor dos cabelos da Marta. Cada semana uma cor diferente. É a luz de Lisboa que assiste a isso tudo, agora. Não importa. Somos significativas sem o quotidiano.
Escolhi partilhar pelo óbvio: quero que o livro dela chegue a mais pessoas. E porque queria que ela estivesse aqui. Que fosse uma página inteira, a minha aluna que escreveu um livro. Porque sei que, para ela, hei-de ser sempre a professora Mar. Fica a dedicatória. E o momento em que a escreveu. O momento em que uma professora está em pé, a aguardar que uma aluna escreva uma dedicatória no livro que acabou de conhecer o mundo. Pela humildade que se adivinha. Por cristalizar o orgulho de todos os professores que vêem os seus alunos a avançar. A serem inteiros na vida que há para a frente. E que nos vê ficar para trás, felizes por termos feito parte de todos os percursos que são os nossos alunos.
Na última aula do dia, na turma que era a da Marta, as perguntas. Se também iria, se eles fizessem uma coisa grande e importante. E se ia sentir orgulho neles. A resposta simples, a querer corresponder ao carinho das perguntas. Que já me orgulhava de cada um deles. Por cada coisa pequenina e quotidiana. E que sim, que iria. Para sentir mais orgulho. Só para aumentar o orgulho que já há.

1001 cores. Marta Guerreiro, Edições Esgotadas.
Que seja só o primeiro livro da minha aluna do cabelo às cores.

8 comentários:

  1. Tal qual pais a ver um filho bater asas e voar. Muito bonitas, as tuas palavras e desejos para os que passam pela tua vida como alunos. Esta em particular, por tudo o que já falámos. De certeza que marcas as suas vidas, e que és uma daquelas professoras que recordamos sempre com saudade e alegria.
    Beijo. E um óptimo fim-de-semana.
    Babette

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  2. Pelo menos aqui, no meu canto, reservada, e longe dos olhares postos em mim (em nós) no dia cheio de ontem, posso expressar toda esta emotividade. Sem ter que controlar ou fingir beber água só para que não se notasse o esforço que era manter-me forte, quando a professora Mar falou. Pelo menos aqui, li as suas palavras e senti, sem máscaras, sem ser outra além de mim.
    Costumo acreditar que nada acontece só porque sim, só por acaso. Nunca reflecti sobre essa ideia de destino, sinto-me pequena ainda para pensar sobre isso, tenho adiado. No entanto, seja por que motivo for, quero continuar a acreditar que as pessoas não existem na vida umas das outras só porque acontece: mas porque tinha que acontecer.
    Tinha que acontecer num verão quente eu decidir (sem ainda hoje perceber o porque) ir para a escola na pequena aldeia. Não me acredito que fosse um acaso, isto de mudar o meu espírito radicalmente e aventurar-me: sair da minha Lisboa e ir para uma aldeia.
    Não mudaria nada, tenho-a agora, a professora Mar, tenho mais umas quantas coisas boas e felizes que me preencheram. (Feliz verão esse, e o que se seguiu a ele).
    Posso agradecer? Por ter falado sobre mim, com palavras lindas e cheias de orgulho, por ter falado sobre mim, nesses saltos altos, com um vestido curto e continuamente deslumbrante? Obrigada (e este obrigada é tão puro, e tão de mim para si).
    Quero estar um dia também estar presente em coisas bonitas e grandes suas, ainda que já não seja sua aluna, poderei ser continuamente uma companheira de viagem, mais distante, mas que nunca se esquece que deve ser inteira, preenchida, realizada, mas que nunca se esquece das aulas ao som de Creep. Porque eram únicas: as suas aulas.
    Estarei aqui, porque não quero não estar, ou não ser, qualquer coisa no seu caminho, ainda que me fique por uma ex-aluna com quem troca e-mails, ou seja mais. Mas quero ser. Porque a professora é linda, por fora, mas ainda mais por dentro.
    Serei perto de si (ainda que não num sentido literal) mas serei, por perto.
    Um beijinho da sua aluna que muda a cor de cabelo constantemente (assim como muda tudo o resto por ser tão inconstante).
    1001 Carinhos, parecido ao livro, mas carinhos, para a professora Mar: de (A)mar.

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  3. O eco das tuas palavras: "Acontecem coisas muito bonitas na vida de quem ensina."
    E sim, quero conhecer/viver essas 1001 cores! Por saber que também existe um dedinho teu nessa paleta...

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  4. Para a minha amiga Babette:

    Estás a ver como são as coisas? No dia em que havia um post sobre a minha aluna. Sobre as coisas boas que surgem todos os dias na vida de uma professora, a sensação de não ter conseguido. De ter havido uma aula em que não consegui resgatar um aluno da revolta e da raiva que sente em relação ao mundo. Com algumas horas de distância relativamente a essa perplexidade enorme, que é sentir que não, que às vezes não somos suficientes, saber que também esses momentos nos ensinam. Aceitar, então. Mas tentar. Continuar a tentar. Apesar da tristeza enorme de ver uma vida tão jovem com tanta revolta. Mesmo que não me fosse dirigida.
    Há-de haver mais aulas. Mais circunstâncias para continuar a tentar. E a ver se sim. Se serei isso que disseste. Deve ser bom ser recordada com saudade e alegria.

    Um beijo de sábado com sol. Apesar de estar um bocadinho doente:)

    Mar

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  5. Para a minha aluna que escreveu um livro:

    Não sabia que ia falar. Ia para estar presente Para te ouvir. Para te ver naquela circunstância. Para saberes que estava ali. Quando me chamaram, levantei-me e lembrei-me do essencial. Era para falar sobre ti. E nada aí me era difícil. Falar sobre a Marta. Também me custou não quebrar o discurso. Não interromper o que dizia, por causa da comoção natural que vem com o orgulho. Pensei nas tuas cores de cabelo. E ia olhando os sorrisos das pessoas. Que estavam comovidas por sermos tão significativas na vida uma da outra.
    Sou como tu. Não penso na ideia de destino. Por não gostar especialmente da noção de que algo obscuro nos determina. Sou eu que me determino. Sou eu que escolho. Ou não. Mas sim, creio que não há acasos. Que quando as pessoas acontecem na vida umas das outras, há sentidos para que assim tenha sido. Ainda que não sejam inteligíveis. Ou interpretáveis.
    No essencial, acho lindo que me tenhas acontecido num Verão quente. Que tenha sido eu a entrevistar-te. Que tenha sido eu a dizer que sim. Que havia lugar para ti na minha escola. Que bom que assim foi.
    Fico feliz por recordares as minhas aulas pela música. Que sejam música na tua memória, as aulas da professora Mar. Tu és música e cores. E um livro. E estas palavras que aqui deixaste e que eu tento agradecer. Não sei se consigo agradecê-las o suficiente. Não sei se serei suficiente. Uma tentativa, esta.
    A mais luminosa das sortes para a minha aluna. E sim, em Junho, vou a Lisboa. Para falarmos muito sob a luz da tua cidade grande.

    Um beijo com carinho.
    Da professora Mar.

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  6. Olá minha happy single mother:

    Também sabes que sim. Que acontecem coisas destas. E outras. Pela professora que és. Pela marca que terás deixado nos teus alunos. E que deixas.
    A minha aluna vai estar hoje à tarde na Feira do Livro, em Viseu. Vai lá, se puderes. Se leres a tempo. É de 1001 cores, o mundo dela. Podia ter sido só de uma cor, mas ela escreveu. E transformou-o em muitas cores.

    Um beijo para ti. E para a tua menina dos olhos grandes e brilhantes.

    Mar

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  7. Sim, entrei hoje nesta paleta, onde se percebe desde logo a cor e a magia! Difícil a interrupção! Porque a realidade me chamou, a realidade de uma menina de olhos grandes que precisava da mãe nestas pequenas tarefas diárias, onde ainda procura o aconchego e segurança dos braços maternais. Mas vou voltar ainda hoje, em breve, quando a Princesa adormecer e a casa mergulhar no silêncio e tranquilidade, o cenário perfeito para uma aventura mágica de 1001 cores...

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  8. Que bom que leste a tempo. E que já estás com o livro das cores em mãos.
    Uma imagem linda, a que deixaste. De uma casa mergulhada em silêncio e uma princesa de olhos grandes adormecida.
    Gosto muito de ser tua amiga, sabias? :)

    Um beijo com carinho. Da Mar.

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