Uma receita que não tinha nada que saber.

De vez em quando, há sabores que nos devolvem coisas que pensávamos estar lá atrás. A receita do post de hoje lembra-me a minha mãe. Nada de novo. Acontece muitas vezes. Com muitas pessoas. E, lugar-comum, era este o meu pedido para os jantares de sexta-feira, quando regressava da faculdade. Queria sempre ter arroz de polvo à minha espera. E havia sempre. Sempre o gesto carinhoso da minha mãe, devotada a satisfazer o meu pedido reiterado. Reiteradamente dedicada a fazer comida que me acolhesse no regresso. Claro que, depois de muitas sextas-feiras, acabei por me fartar. Uma daquelas coisas inevitáveis e comuns.
Mas, apesar de este arroz evocar coisas boas, também era sinónimo de uma limitação. Por não conseguir acertar no ponto de cozedura do polvo. Isto, depois de várias tentativas. Por isso, mantive-me prudentemente afastada desta fonte de frustrações e da terapia associada. Até ao dia em que me foi ensinada uma técnica infalível. E resultou. Num arroz de polvo feito por mim, do início ao fim. Sem telefonemas agitados para uma mãe paciente, a repetir instruções. Uma espécie de conquista de autonomia, então. Ou as coisas mais ou menos elaboradas que um arroz de polvo motiva.

1 polvo + 1 chávena almoçadeira de arroz carolino + 1 cebola + vinho branco + pimento verde ou vermelho + azeite + tomate em pedaços + sal e pimenta.

O polvo deve estar completamente descongelado ou fresco. Depois, corta-se em pedaços e faz-se um daqueles refogados elementares: azeite, cebola picada, pimento em cubos e tomate. Deixa-se um pouco ao lume e junta-se os pedaços de polvo e um copo de vinho branco. Fecha-se e deixa-se durante uma meia hora (com alguma vigilância, porque o tempo depende da qualidade do polvo). Findo este tempo, adiciona-se água (cerca de um litro). Deixa-se ferver e junta-se o arroz. Depois, é só esperar que fique no ponto que nós queremos e juntar sal e pimenta (muito importante não temperar com sal antes deste momento). Transfere-se para uma terrina e vai à mesa. Uma receita que não tinha nada que saber. Para os outros. Para mim, significava não conseguir, não ser capaz. Not anymore:)
A juntar à receita que não tem nada que saber, uma forma de preservar as memórias boas de garrafas de champanhe: transformá-las em jarras. Permitir que permaneçam enquanto evocação de coisas que gostámos de viver. Celebrá-las com flores e devolvê-las à mesa.  

PS: As frésias nas jarras de champanhe evocaram também alguém que tem feito parte do quotidiano. Deste quotidiano. A Emília Melo. Há uns dias que não. Nem aqui, nem no blog da Babette. Por isso, estou preocupada. Espero que esteja tudo bem. Que o silêncio signifique só uma viagem prolongada. Portishead e The XX para a Emília. Porque sei que gosta muito. Mar.

16 comentários:

  1. E que bem sabe ter as boas recordações,adorei o teu post,bjokinhass

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  2. Olá Mar

    Que bom. Conseguiu fazer um arroz de polvo malandro na perfeição. Está com um aspecto delicioso. O seu blog é uma fonte de inspiração. Todos os dias venho inspirar-me, e esse momento é muito especial.A Mar é muito doce na sua escrita...e escreve tão bem.

    Como lhe disse anteriormente já comprei algumas louças E fizeram muito sucesso na mesa de domingo passado. As mesas dos domingos são especiais, como as suas...

    Muito obrigada por ser assim.

    Maria José Duarte

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  3. Querida Mar:

    Continuo no registo de um sábado preguiçoso.... Adoro arroz de polvo, e também o pedi vezes sem conta à minha mãe. Fico contente com mais esta "prova superada", e registo mais um método (que não conhecia, confesso), de tornar o polvo no ponto. O meu truque é "sovar" bem o polvo antes de o cozer. Alivia o stress e deixa-o KO!
    Beijos e bom domingo. Com mesas e coisas boas.
    Babette

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  4. Mar
    Tenho estado todos os dias aqui. Em silêncio, é certo. Um silêncio propositado. Para tentar perceber o que me leva a ler e a reler os seus textos.A percorrer os posts anteriores. A deliciar-me com a sua escrita, a imaginar o que está para além... Também eu sou muito indisciplinada.Comento, porque sim.Porque me dá prazer fazer parte deste quotidiano.Não comento, porque não. Também me dá certo prazer o silêncio. Silêncio presente. Eloquente.
    A sua "casa" faz parte do meu dia. É um bom encontro.. Desafia-me.Rejuvenesce-me.
    Hoje estive em Coimbra. Almoço de família, em casa da minha sobrinha.A Mar presente. Porque sabia que estava também ali. A ouvir o Dr. Lobo Antunes e Anselmo Borges.Também porque a minha sobrinha nos presenteou com uma mesa bela, de registar. Velas Kenneth Turner.Dádiva na comida apresentada. Coisas belas. Objectos
    que marcam os dias. Coisas belas de guardar e amar.Que lembraram a Mar. Apresentei-lhe a Mar. Um dia feliz.Uma bela pincelada de optimismo num dia em que a nuvem negra de um futuro juntou milhares nas cidades portuguesas.
    Agradeço a preocupação.

    P.S. Arroz de polvo era a comida favorita do meu pai.Está associado para sempre a esse meu filósofo que tanta falta me faz!

    Um beijo
    Emília Melo

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  5. Querida Mar,

    Também eu tenho estado silenciosa, perdida e assustada com o que estou a viver com "meus" doentes de Alzheimer. É importante vir aqui e aperceber-me que existe uma outra realidade. Bom domingo

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  6. Para a Fa
    Como eu a compreendo!Essa é uma situação que só vivida é verdadeiramente compreendida.
    Faça tudo com muito amor. Com muita dor, com muito sacrifício, com muita abnegação. Com uma vontade enorme de transformar o terminus trágico desta passagem num círculo de amor , de carinho. É muito duro ver os nossos heróis, aqueles que marcaram a nossa mente com capacidade de trabalho, luta pelos seus objectivos,que sempre nos protegeram...é muito duro v~e-los completamente indefesos, completamente dependentes de nós...das nossas mãos para as suas rotinas...do nosso carinho para lhes tornar os dias mais doces.
    Faça tudo o que é possível.Hoje cai, amanhã levanta-se.É esta doação que a irá ajudar a viver a perda!É a consciência tranquila que a vai acompanhar no vazio que , um dia, vai surgir. Força! Muita força!ELES merecem! A Fa merece!
    Desculpe a intromissão. Não são conselhos. São testemunhos de quem viveu esta situação durante sete anos!
    Envolvo-a"num amplo e afectuoso abraço da maior solidariedade".O meu pai usava muito esta expressão.Muito sentida. Neste momento,receba-a da minha parte. Também muito sentida. Muito comungada.
    Emília Melo
    P.S. Mar, peço desculpa por usar este seu espaço de celebração para falar com a Fa. É o seu poder. Consegue agregar. Esta qualidade não é para todos. Obrigada.
    .

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  7. Olá Belinha:

    Sabe mesmo bem ter recordações através da comida. E comentários amorosos com corações:)

    Um beijo da Mar.

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  8. Olá Maria José!

    Que alegria que trouxe ao post sobre um arroz que toda a gente sabia fazer. Menos eu:) Ficou bom, sim. Com aquela consistência caldosa de que gosto.
    Fico feliz por estar aí. E por gostar de vir em busca de mesas e de palavras. Ainda bem que as entende como doces, as minhas palavras. A maior parte das vezes, acho que são pequenas. Que não conseguem dizer tudo. Mas vai-se tentando. A pretexto de mais uma mesa. Mais uma receita. Mais um sítio ou um livro. Coisas assim.
    Acarinho muito a ideia de a imaginar (apesar de não a conhecer no sentido clássico do termo), a comprar loiças. E a pôr mesas bonitas. Gostava muito de ver imagens das suas mesas especiais. Se um dia quiser partilhar, pode enviar para este endereço: queiros.mar@gmail.com

    Um beijo de domingo para si, Maria José. E obrigada. Por ser assim.

    Mar

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  9. Olá, minha amiga que teve um sábado preguiçoso:)

    Completamente merecido, depois destes teus últimos dias. Fizeste muito bem.
    Também tinha experimentado essa técnica. A juntar às outras todas que não resultavam comigo. Nem imaginas a frustração! E os telefonemas para a minha mãe loira, a queixar-me de mais uma má experiência:) Foi a Mafalda, a minha cunhada, que me disse para fazer assim. E é bem mais prático. Faz-se tudo de uma vez.

    Um beijo para ti. Num domingo com um bocadinho de chuva. Mas feliz:)

    Mar

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  10. Olá Emília!

    Que bom ter notícias suas! Estava genuinamente preocupada. A partir de 6ª feira, principalmente.
    Entendo o seu registo. Também escrevo porque sim. Ou não, porque não. Aplico-o aqui. Muito porque este espaço me é precioso, apesar de não ter qualquer objectivo pragmático. Ou principalmente por isso. E por querer muito preservar a ideia de liberdade que lhe está associada. Preciso sempre de sentir que o que aqui fica resulta de um gesto autêntico, destituído de qualquer obrigação. E gosto que este princípio se aplique a quem aqui escreve. Primeiro, porque este blogue existe há algum tempo. E sempre foi um bocadinho "secreto". Amigos e familiares próximos. Pouco mais. E então, os "comentários" sempre foram orais. Raramente registados. Mas, nos últimos tempos, apareceram pessoas como a Emília. Como a Babette. A Fa. A Sandra. A Cristina. A Maria José. E fazem parte dos meus afectos. Mesmo que não tenham rosto. Só a Babette tem rosto.
    À medida que os dias passaram, tive receio que lhe tivesse acontecido alguma coisa. E custava-me não saber como saber de si. Tanto, que caso não dissesse nada, eu iria ao hospital de Viseu, perguntar por um médico que tivesse uma mãe chamada Emília Melo. E acredite que não iria descansar enquanto não soubesse que estava bem:) Sou um bocadinho impulsiva nos meus afectos. E persistente, quando quero saber de alguém.
    Estive em Coimbra. A gostar muito de estar lá. De a vida me oferecer a possibilidade de ouvir pessoas como as que lá estiveram. Que boa, a proximidade de a Emília também estar em Coimbra. Sentada a uma mesa bonita, feita por uma sobrinha que também gosta das velas Kenneth Turner.
    Grata, a evocação do seu pai. Por gostar de arroz de polvo. Belo, o seu diálogo com a Fa. E carinho, por saber que está tudo bem consigo. Que não está doente, como comecei a temer.

    Um beijo para si. Com coisas boas.

    Mar.

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  11. Olá, minha querida Fa!

    Lembrei-me muito de si, ontem. Durante a comunicação do Dr. João Lobo Antunes, que falou de casos como os dos seus pais. Das vidas que vão ficando sem memória. E lamento tanto que se sinta perdida e assustada de vez em quando. E gostava tanto de poder fazer mais do que ser uma outra realidade, ainda que intua que isso lhe faça bem. Deixo-lhe o meu email, para se quiser escrever porque sim. Numa ocasião em que queira dizer coisas sem rede. Coisas que a magoam ou que lhe fazem mal. Para partilhar, se quiser. Para fragmentar o que a assusta e faz sentir perdida.
    E aqui, encontrou palavras melhores do que as minhas, a propósito do que está a viver. As palavras da Emília. Que já viveram o que está a viver. Apoie-se um bocadinho nelas. E sinta-se em casa. Aqui. Sempre acolhida, a minha Fa(da).

    Um beijo. E pensamentos que querem dar força e esperança.

    Mar.

    queiros.mar@gmail.com

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  12. Não me sinto capaz de fazer um comentário verdadeiramente perfeito como os que leio por aqui. Nem sei nunca que palavras usar só para dizer que sim, que tudo o que escrever tem que ser lido. Enriquece-me, enriquece(nos).
    Tenho um orgulho enorme em poder ter tido 90 minutos muitos vezes onde a sua voz era a que mais se fazia ouvir.

    Um beijinho da sua aluna,
    Marta.

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  13. Olá Marta,

    Uma das minhas alunas. Uma aluna que já não é aluna presencial. De todos os dias. Há uma cadeira vazia, agora. Que não foi ocupada entretanto. Por ter sido o lugar da Marta. Está num outro lugar. Há uma outra professora de Português, agora. Numa escola maior, em Lisboa. É sempre tudo maior, na cidade grande. Mas veio aqui. Depois de ter sido minha aluna. Mesmo que já soubesse há muito que a professora dos muitos 90 minutos existia aqui. E que é Mar. Fora da escola, sou Mar. Ser Mar também para a Marta, então.
    E o comentário foi perfeito. Pela alegria que me trouxe. E o orgulho é meu.

    Um beijo,

    Mar

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  14. Querida Maria Emília,

    Muita obrigada pelo amplo e afectuoso abraço da maior solidariedade. Os problemas às vezes são inesperados e não sabemos como lidar com eles. Há um turbilhão de sentimentos contraditórios que é preciso acalmar, racionalizar e encontrar soluções. Não sei se no seu caso passou por crises de agressividade, mas essa é a parte que considero mais difícil de superar. Contudo, talvez por ter pedido ajuda a várias pessoas e por a ter recebido (obrigada Maria Emília e Mar), ontem encostei-me no sofá e dormi toda a tarde, como há muito não acontecia. Creio que o Professor Lobo Antunes deve ser capaz de explicar estes nossos mecanismos de defesa.

    Hoje, já mais descansada, vou começar a reorganizar a vida, a minha e a deles.

    Um beijo

    FA

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  15. Querida Mar,

    Muito obrigada. Encontra sempre as palavras certas! Este blogue está a tornar-se num porto de abrigo, num local secreto onde as minhas amigas e amigos não me descobrem (ou talvez sim).
    Um dia destes escrevo-lhe e depois claro que nos iremos conhecer.
    bjs e uma excelente semana

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  16. Olá Fa,

    Um local secreto que abriga. Uma imagem bonita.
    Que esteja bem. Que diga coisas, quando não. É libertador dizer aquilo que nos magoa, que nos confronta com o difícil.
    Lembre-se de tomar conta de si. Para poder tomar conta dos outros. Gostava de poder fazer mais. Mais do que dizer coisas.

    Um beijo cheio de carinho para si, querida Fa.
    A desejar uma boa semana.

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