Somewhere. Depois de algures.

Um lugar algures. Onde se tem a sensação de estarmos fora de tempo. Numa época que já foi. Um algures no meio do silêncio de árvores centenárias. Com pavilhões ocultados pela densidade de um bosque que demorou muito a fazer. Corredores labirínticos, um jardim de inverno onde tomar o pequeno-almoço, paredes com flores pintadas, painéis dourados com ramos de árvores sulcados. E uma fachada majestosa. Com escadas que nos levam a uma época que não é de agora. Quase nos anos 20. Quase nos bailes e nos passos de dança que terão enchido aquelas salas. Quase a viver as coisas que permanecerão naquelas paredes, mesmo que recuperadas. Estarão lá as histórias. Todas as histórias adivinhadas nos rostos dos que pareciam ter ali vivido muitas coisas. Coisas de verões quentes e prolongados. Coisas de amores que não foram. Coisas suspensas nos rostos. Ou não.
Muito silêncio, ali. No meio de um bosque muito verde. Perto de uma vila quase parada nesse tempo que procurei nos rostos. Uma estação que já não é. Onde não se chega. De onde não se parte. Hotéis desmantelados, com janelas partidas e vegetação a cobrir paredes. Casas desocupadas. Pessoas à porta de cafés vazios. E então, a sensação de uma vida deslocada, a do Vidago Palace. Circunscrita ao edifício imponente, rosa-velho. Creio que queria constatar se a aura dos palaces ainda permanecia. Se iria sentir o que senti no Palace do Bussaco. Se também ali haveria aquele silêncio que nunca mais encontrei em parte nenhuma. E sim. Estava lá o mesmo silêncio. O de um tempo que não se recupera, nem que se vá em busca de. Que faz pensar em avós. Em avós com dezassete anos. Sentadas muito direitas à mesa. A usar os primeiros vestidos de mulher. Com cabelos apanhados e brincos antigos de prata velha. As primeiras pinturas no rosto. A evocação breve do aroma difícil de nomear. O das caixinhas de pó de arroz. Dias prolongados nas estâncias termais. Era assim nesse tempo. Viajar significava ficar prolongadamente. Muitas malas. Compartimentos nos quartos só para as malas. E muito podia acontecer. Porque os dias eram longos e prolongados. Com horários rígidos, ditados pelos tratamentos e pelas refeições de dieta, prescritas.
O Hotel Palace do Vidago foi recuperado. E continua lindo. Não perdeu a aura deste tempo que tentei adivinhar com palavras. Os quartos são muito confortáveis. Muito britânicos em alguns pormenores (nos tecidos dos sofás, nos tapetes) e muito nossos em outros aspectos (os sabonetes e shampôs são da Saboaria Portuguesa). Os talheres também são nossos e lindos. Cutipol. Alguma loiça Vista Alegre, muito branca e depurada. Pormenores em que fui reparando. E quis jantar, para confirmar se a comida não era de hotel. E não, não era. Muito bom, o jantar de Carnaval, com direito a ementa associada. Não fui ao Spa, para ver a arte edificada do Siza Vieira. Mas foi o meu belo filósofo. Que disse que sim, que tinha gostado. Eu fiquei a ler, num bar muito acolhedor, cheio de recantos onde apetece estar com tempo. E em silêncio. 
Falta dizer que vi Somewhere, da Sofia Coppola. Um filme belíssimo. Com uma história que acaba por ser intuída por nós. A metafísica e a filosofia que quisermos. E os detalhes. Rever o meu hotel de Milão. Os corredores do Principe di Savoia. A solidão de um homem famoso. A solidão cercada de beleza. A solidão a conduzir um Ferrari. A solidão a beber Château Petrus. A solidão que não é um lugar-comum. Um filme destes nunca seria um lugar-comum. Ainda que seja um lugar estranho, que nos deixa a pensar em possibilidades.
Então, depois de ter estado algures, acabei por ir dar a Somewhere. Bom, ter chegado. Aqui. Depois do algures.

9 comentários:

  1. Tão bonita a tua descrição do Palácio de Vidago. Com as histórias que imaginas de outros tempos, mais demorados. E os pormenores em que reparas. Assim ajudas-me a compor mentalmente a imagem desse sítio. Onde te imaginei tão bem. E ainda bem que o jantar não foi "termal", no velho, depreciativo e insípido sentido!...
    Também gostei do filme Somewhere, que pelos vistos é autobiográfico. Um filme que como dizes permite várias interpretações, quase pessoais, dependentes da vida de quem o vê. Indiscutível é a presença de muita solidão. Da menina, do pai, de tanta gente que aparentemente está sempre no meio de tudo e de tantas pessoas. Boa escolha para o dia internacional da mulher. Ver um filme de uma mulher.
    Beijos e um bom dia!...
    Babette

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  2. Muito romântico, este hotel. Tens de ir lá, numa oportunidade!E, como falámos, antes do meu jantar, tinha algum receio de que a comida fosse "termal", nesse sentido de que falaste. Acabou por não ser. E ainda bem. Uma sopa muto substancial. E lombinhos de porco bísaro. Um sorvete de citrinos inesquecível. E a sala. Deslumbrante! Havia lá um piano que me fez pensar na música da minha amiga Babette. E imaginei que se estivesses lá, te acercarias dele, para tocar um nocturno de Chopin. Coisas breves em que pensei, enquanto jantava.
    Que bom teres visto o filme de uma das minhas realizadoras preferidas. Muito bonito. Uma das maneiras de dizer a solidão. Mesmo que essa tarefa reflexiva fique muito para nós, no final do filme.
    Reparaste no facto de a filha da personagem gostar de cozinhar? Fez uns ovos que me inspiraram:)

    Um beijo para ti. A caminho de Viena, por esta altura. Até ao teu regresso!

    Mar.

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  3. Algures um sítio lindíssimo. A que apetece ir imediatamente. Que pena que já não se chegue (nem se parta) à estação. Vi muitas dessas quando andava mais frequentemente de comboio. E dá-me sempre pena, imaginar a vida que já não povoa nem enriquece esses lugares onde quase não se conseguia chegar de outra forma.
    Muito bonita a imagem da Mar ao fundo, talvez a guardar na memória tão majestoso edifício.
    Somewhere ainda não vi, mas já está na lista.
    Gosto quando a Mar faz pausas. É sinónimo de coisas bonitas, vivências partilhadas e palavras que significam muito.
    A minha pausa passou pelos lados da Bordalo Pinheiro, onde me lembrei muito de si. ;-)
    Sandra

    P.S. - Tenho a facilidade/privilégio de requisitar livros. Só os que gosto mesmo é que acabo por comprar. Mas desta vez fi-lo. E sim, foi Pedro Paixão. ;-)

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  4. Olá Sandra!

    Saudades boas das suas palavras:) Esta foi uma pausa-relâmpago. Mas que soube muito bem. Ainda bem que a descrição fez querer ir de imediato. Gostei muito do hotel. E até da decadência de Vidago. Embora a estação me tenha entristecido. Por ter imaginado as pessoas ali. A chegar. A partir. A vida toda que já não há.
    Guardei sim. Tudo. E o meu marido quis guardar a minha imagem, quase "esmagada" pela imponência do edifício:)
    Gosto de ser entendida nesse registo carinhoso. Porque é mesmo de partilha que se trata. Dizer que alguma coisa me foi preciosa. Uma refeição, uma noite num hotel, um livro, um filme. Para espalhar coisas que eu acho belas.
    Boa, a sua pausa. Há imenso tempo que quero ir à Bordallo Pinheiro. Conhecer as Caldas. E lindo que a loiça me tenha evocado. Linda, a Sandra. Pela sensibilidade.
    E o Pedro Paixão? Qual foi o livro breve que escolheu?

    Um beijo carinhoso:)

    Mar.

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  5. Olá, Mar

    A primeira leitura do texto deixou-me em estado de deslumbramento. Com o Palace do Vidago, que não conheço, mas no essencial com a forma como a Mar escreve. Adoro as pausa que faz. As frases curtas que dão ritmo à leitura. Sempre tive medo de escrever, porque achava que era necessário respeitar muitas regras, e, porque sempre me disseram que escrevia mal. Agora estou mais solta, mas tenho muito para aprender, por isso só gosto de ler bons autores, aqueles que me podem ensinar. Ao final da tarde fiz nova leitura, mais centrada na pontuação e na construção das frases. Peço desculpa por o ter efeito, porque o seu texto é demasiado belo para ser dissecado desta forma.

    Quando ao Pedro Paixão também já comprei um livro que estou a ler e a apreciar, tal como a Sandra. Foi uma excelente descoberta. Tenho mesmo um pequeno post-it rosa choque a marcar uma citação, que aguarda o momento própro para aqui ser deixada.

    Bjs

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  6. O seu filósofo está de parabéns! Tirou uma fotografia de sonho à sua musa( silhueta tão elegante e bem desenhada também ajuda)...
    Mas que engraçado, o seu blog tem um cunho tão especial, parece uma sã tertúlia literária, que bom para todos os que por aqui passam!
    Eu escrevo conforme penso, nem sempre muito alinhada, mas admiro todos os que dão importância à escrita, esse dom fundamental para a comunicação do Homem!
    Um beijinho

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  7. Olá minha Fa:)

    Quem foi que disse à minha querida Fada que ela escrevia mal? Pois eu gosto muito. Da franqueza que se adivinha nos seus textos, nas elipses de algumas letras, que dizem muito. A mim, dizem-me que escreve ao ritmo do seu pensamento. Com verdade, portanto. E no meio de tantas coisas boas, dá-me o gosto de gostar de ler o que vou escrevendo. Escrever o que acontece. O que sinto em relação ao que acontece. Qualquer coisa de dádiva, nisso. Porque não temos obrigação nenhuma, já reparou? É só porque sim. Porque sim, gosto de ler os posts do blogue da Fa. Tal como gosto de ler a Babette. E as coisas que aqui ficam. Que agradeço reiterada e humildemente. E sabe, a minha escrita é assim pausada, porque tenho sempre receio de não ser objectiva. De me dispersar. E porque me é fundamental que elas digam realmente as coisas. Que tentem nomeá-las de uma maneira essencial. Para não me distrair dos seus sentidos primordiais. Há um poema da Sophia de Mello Breyner de que gosto muito. "Com fúria e raiva". Um tratado breve contra a demagogia. Contra os que usam as palavras, sem que elas signifiquem. Lembro-me sempre desse poema, antes de escrever. Ajuda-me a concentrar-me no que interessa.
    Sinto-me imensamente grata por si. E gosto muito que venha ler-me. Sem que importe se disseca ou não as palavras. Não sinto que seja assim:)
    Que bom que esteja a gostar de Pedro Paixão. Todo um universo aí. Na escrita obcecada pela beleza, pelas mulheres, pelo carácter trágico do amor.

    Um beijo cheio de coisas boas. Para a Fa.

    Mar.

    PS: Esqueça isso das regras. E essas palavras que lhe disseram que escrevia mal. Mau é isso. Dizer uma coisa dessas a alguém.

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  8. Olá Lusitana!

    Já partilhei com o meu marido os seus parabéns:) Ele agradece através de mim. E creio que o sentido maior da fotografia, para além do óbvio de guardar o momento, era o de registar a nossa insignificância ante as edificações. Ele está sempre a pensar em muitas coisas. Associadas a gestos aparentemente triviais:) Seja como for, fiquei ali, pequenina. Em frente ao Vidago Palace.
    Gosto muito das conversas que surgem. A propósito das coisas que fazem os dias. Ou a propósito de nada. Têm essa componente de conversas, os comentários. Um respeito enorme pelo que aqui é partilhado. A juntar à gratidão crescente que sinto. Pelas pessoas que escrevem. Pelas que ficam em silêncio.
    Gosto igualmente da sua escrita. Conforme pensa. Que essencial, essa formulação. Tão de acordo com a ideia que vou construindo a seu respeito.

    Um beijo de boa noite para si. "Bons sonhos", como diz o meu filho todas as noites:)

    Mar.

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  9. Obrigada por ter gostado de vir aqui. E já deixei um comentário no seu blog, junto a uma história comovente. Gostei do português com açúcar que aqui deixou:)

    Um beijo,

    Mar

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