Quando o vazio está cheio. Axel Vervoordt.


For me stones are living souls with a spirit that resonates for millions of years, although I feel there is a different spirit in different stones.
                                  Axel Vervoordt, Wabi Inspirations

Uma vez, ofereci uma pedra ao meu marido. Num Natal de há muitos anos. Quando eu ainda não era uma casa. E então, pedi-lhe para que escolhesse um lugar bonito naquela que era a casa dele. Para abrigar a pedra que tinha trazido de uma praia com mar agreste. Muito bonita, a pedra que ofereci de presente nesse Natal. Sem irregularidades. De um redondo quase perfeito. Nada de intencionalidade, naquela pedra. Na ausência de irregularidades ou no feitio quase perfeito.
Quando passei a ser esta casa, a primeira coisa que quis ver, foi a minha pedra. Olhar o lugar onde repousava a pedra do Natal em que lemos em simultâneo o Porto Kyoto do Pedro Paixão. Estava no jardim, junto a uma árvore oriental que se enche de flores no Verão. Um lugar belo, a merecer a beleza humilde de uma pedra.
Na altura, não sabia o que era a filosofia Wabi. Nem o ZERO movement. Nem a Arte Povera. Sem sustentação, o meu gesto. Sem saber que ele adorava pedras. Os granitos do Souto Moura. Os mármores barrocos de Gian Lorenzo Bernini. As peças acumuladas no jardim. Fragmentos de colunas de séculos lá de trás. Imperfeitas, algumas das pedras. Simétricas e minimalistas, outras. Uma daquelas coisas que vinha de há muito, soube depois. O amor pelas pedras. Prolongado pela vida. Pelas nossas vidas juntas. Em busca da nobreza que há na humildade. Partilhar também isso. E os livros. Lidos em diferido.
Chegar assim aos interiores poéticos de Axel Vervoordt. Confirmar a devoção partilhada pela beleza do vazio, da ausência de ostentação. Mesmo gostando das outras coisas todas. Ou principalmente por isso. Por gostarmos juntos das outras coisas todas. As que, à pressa, são consideradas ostensivas. Pratas pesadas e espelhos barrocos. Mantas de caxemira e lenços de seda. Ou toda a beleza que se pode usar. Como a dos homens singulares imaginados pelo Tom Ford. Um homem singular, então. A evocar as camisas imaculadas, os fatos de corte irrepreensível, os sapatos envoltos em flanelas muito especiais. 
Ler estes livros. E digo outra vez: ler estes livros, é olharmos de outra forma para tudo aquilo que é considerado imperfeito ou velho ou em decadência. Estados que são negados ou ocultados. Estar estragado, estar velho, não servir, não ter utilidade. E um livro confirmar-nos na vontade de reinventar tudo o que soa a imperfeição, a vazio. Até chegarmos ao tanto que pode caber num espaço vazio. Libertar o pensamento, pela redução. Pela minimização. Ir retirando elementos, até chegarmos ao essencial. Um exercício. Uma disciplina, a de se depurar o olhar. Até não restar nada do que não interessa. Até eliminarmos todos os factores de perturbação. Uma das poucas disciplinas de que gosto muito de gostar.

10 comentários:

  1. Lindo o teu texto.
    Minha amiga escritora.
    um beijo de fim de tarde, em que o sol já aqueceu um pouco as pedras.

    da Pipinha

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  2. Mais um texto muito belo.Um dos meus preferidos. Pela filosofia de vida nele contida.Pelo desafio que me leva a investigar alguns conceitos que não conhecia - a Arte Povera e o Zero movement-.Tive alguma dificuldade em encontrar os princípios deste movimento.Gostava de poder acrescentar alguma coisa ao pouco que encontrei. Será que pode dar-me uma dica? Gosto muito de desafios, de acrescentar sempre mais ao pouco que sei.Também por isso aqui venho.Obrigada.
    Uma boa noite para a Mar e seus amores que entendem a linguagem das pedras.
    UM beijinho de boa noite
    Emília Melo

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  3. Olá Pipinha:

    Grazie. Not yet. Falta o ainda ou o quase:)
    Coisas que são para falar, quando regressares.

    Um beijo de sexta-feira de manhã. Com muito sol.


    Mar

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  4. Olá Emília:

    Sempre generosas, as suas palavras. Obrigada.
    Em relação a estes conceitos, devo começar por dizer que não tenho a pretensão de os conhecer com profundidade. Conhecia vagamente a noção de arte povera, conceptual no uso de materiais quotidianos, no esbater do conceito de arte. Por aquilo que consigo perceber, a ideia é a de enobrecer pela arte, materiais ou conceitos que dificilmente se associariam a trabalho artístico.
    Mas sabe, o pouco que sei sobre estas matérias veio deste livro. Daí o ter pensado em partilhar. A introdução explica muito bem estes e outros princípios, por isso, se quiser, pode encomendá-lo e deliciar-se com as imagens e com os textos deste decorador de interiores. Não sei como costuma encomendar livros estrangeiros, mas se quiser aceitar a sugestão, faça-o através da Fnac. É muito melhor do que pela Amazon ou outras do género.


    Um beijo de sexta-feira:) Com sol.

    Mar

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  5. Olá Mar:
    Gostei imenso de a conhecer. Reitero as palavras que lhe disse, quando teve a gentileza de me expressar os parabéns pelo meu aniversário. Em vez de 'Mar', 'Oceano', porque é vasto, belo e insondável. Como é patente neste seu belíssimo texto que me deixou pregado da primeira à última palavra. Que bom é ver assim a língua de Camões, cuidada e enaltecida!
    Também nutro uma especial atenção pelas humildes pedras, desde miúdo, desde sempre. Tenho-as dos mais diversos locais, desde África, aos Capelinhos dos Açores, às Montanhas Azuis da Austrália.
    Ao ler a história da 'sua pedra', recordei-me de um conto que integra um livro de "Contos Vividos", autobiográficos, que escrevi há algum tempo. A acção decorre nos anos 50, em plena floresta africana de Moçambique. Era eu uma criança que delirava viajar pela selva na companhia de meu pai. Dessa vez, numa "Viagem pela Zambézia", ficámos, nós dois e um ajudante negro, três dias totalmente isolados numa floresta inexpugnável, sem que vivalma por ali passasse durante todo aquele tempo. Respigo da narrativa, e a propósito, umas breves passagens:
    .... - Já viste que engraçadas são estas pedras aqui na estrada? Parecem miniaturas das montanhas, dos montes, dos vales!...(mal sabia o meu pai que se antecipava à teoria dos fractais.)
    - Tem razão. Olhe, esta aqui parece aquele morro onde está a casa do administrador da Morrumbala!
    - Sabes como se chamam esses montes? São os 'inselbergs' que significa ilha-monte em alemão. Parecem 'icebergs', só que emergem, não do mar, mas de uma planície. Há muitos na zona de Nampula e Porto Amélia.
    ...........................................
    Ao sairmos do local, peguei numa daquelas pedras que juncavam o chão e guardei-a como recordação. Permaneceu no meu quarto até deixar Moçambique, definitivamente, em 1975.
    Naquela noite, recolhi ao meu quarto e adormeci mirando e volteando aquela pedra, testemunha muda duma vivência irrepetível.
    Naquela idade não tinha lido, ainda, Pessoa e aquele seu poema:
    "... A mim ensinou-me tudo.
    Ensinou-me a olhar para as coisas.
    Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
    Mostra-me como as pedras são engraçadas
    Quando a gente as tem na mão
    E olha devagar para elas..."

    Um beijinho
    João (pai da Babette9

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  6. Olá Mar! Palavras amigas trouxeram-me aqui há bastante tempo. É um prazer ver as suas fotografias e sobretudo ler os seus textos. Muitas vezes quis deixar um comentário, mas por preguiça e por pensar que não acrescentaria nada, nunca o fiz. Tenho-me comovido muitas vezes. Isto tornou-se uma peregrinação diária. Nunca uma penitência. Bem haja por existir aí desse lado. Obrigado por toda a beleza que partilha com aqueles que tivemoa a graça de chegar a si. Por aqui.

    António.

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  7. Olá Emília (outra vez):

    Apercebi-me de que é difícil encontrar referências a propósito do ZERO movement. Daí fazer novo comentário. Para lhe dizer que quando procurei informações sobre este movimento, grafei zero com maiúsculas e acrescentei Belgium. Assim já terá mais alguma coisa, creio. Enquanto não tem o livro:)

    Um beijo.

    Mar

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  8. Olá João!

    Que bom que tenha escrito. A propósito de uma das pedras de que o meu marido gosta muito. E que recuperei, ao escrever sobre este livro. Obrigada pelas suas palavras meigas. Também eu gostei muito de o conhecer. O pai da minha amiga mais recente. Uma amiga que parece de há tanto tempo. Simpático e delicado. Um médico daqueles. Que acolhe com um sorriso que tranquiliza, que pacifica e diz que vai correr tudo bem.
    Queria igualmente agradecer pela história que evocou, parte de si e do seu percurso. E por lembrar um termo que não é muito usado. "Respigo". Fez-me lembrar um filme/documentário que vi há uns anos. "Os Respigadores e a Respigadora", de Agnès Varda. E um fragmento muito belo de Caeiro. O mestre dos outros todos. Dos heterónimos e do ortónimo. Angustiados com o pensamento, com a impossibilidade de negação do pensamento. E a resposta a essa angústia: olhar as pedras. As pedras nas nossas mãos.
    Também eu gosto muito de olhar as pedras que recolho dos sítios por onde vou passando. Testemunhas. Formulou-o muito bem. As pedras são testemunhas mudas.
    Muitas coisas belas têm acontecido na minha vida. Agradeço-as interiormente. A sua filha e as pessoas que vieram com ela, são uma graça particularmente luminosa. E eu devo agradecer por isso. E tentar merecer. Ser digna de.

    Um beijo.

    Mar

    PS: Tenho muitas saudades da Babette:) É bom ter saudades das pessoas de que gostamos. Mas ainda assim, preferia que já estivesse cá:)

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  9. Olá António,

    Um visitante que quebrou o silêncio. Num post sobre uma pedra, a pretexto de um livro.
    Grata por tudo: pelas suas visitas diárias e silenciosas, pelas suas palavras de hoje, pela sua comoção.
    Partilhar. Creio que será por aí. Uma forma de partilhar. Ou de registar. Também terá essa componente. Precisar de registar. E assim, quando um dia eu deixar de existir, ficam aqui partes do que fui, enquanto estava.
    E gostei dessa palavra. Peregrinação. A ver se continua, essa peregrinação.

    Um beijo.

    Mar

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  10. Olá, Mar
    Só hoje descobri este texto. Tocou-me por vários motivos. Tive um pai que levava para casa pedras, quando eu era ainda muito criança. Despertou-me para os seus segredos. Os "inselbergs" também faziam parte da minha paisagem. Foi esse fascínio que me conduziu para um curso de geologia, porém gosto de fazer uma ponte entre esta e a arte. Aprecio uma ciência em que se colocam hipóteses sobre o passado a partir de evidências do presente. Nunca teremos a certeza se foi mesmo assim que aconteceu. Esse é o lado mais estimulante e que ao mesmo tempo no remete para a nossa dimensão temporal, muito reduzida face a outras entidades naturais.
    bjs

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