Dizer a ausência.

Nunca falei dela aqui. Embora já me tivesse ocorrido várias vezes que sim. Que já o devia ter feito. Pelo carinho que trazia ao quotidiano. Não calhou. E agora, já não vou a tempo. De dizer de uma forma luminosa o amor que nos é ensinado pelos animais. Então, posso tentar dizer a ausência.
Muito provavelmente, a minha cadelinha deve ter sido abandonada. Aqui perto. Há uns quatro anos. Alguém que não esteve à altura do compromisso que pressupõe ter um animal de estimação. E veio até aqui. Chegou até mim. Aconteceu. Não consegui não alimentar aquele animal de olhos doces, ligeiramente amedrontados. Certamente habituada a ser afastada. E foi ficando. No início, sem nome. Não podia ser sem nome. Por isso, como me fazia lembrar um rolinho de sushi, comecei a tratá-la por Sushi. Um nome intuitivo. De comida de que não gosto. Mas dela sim. Muito. E nunca mais ninguém a chamou de "cão". Era a Sushi. Para toda a gente, passou a ser Sushi. E a minha alegria a escolher um cestinho para ela dormir, mantinhas fofas e quentes. Uma casa para ela. Porque ela era o primeiro sinal de que estava em casa. Porque a minha Sushi manifestava logo o carinho, o contentamento por me ver chegar. Uma felicidade que às vezes arranhava as pernas, a da Sushi. Mas, de alguma forma, isso tornava o meu quotidiano mais doce.
Foi atropelada. E estava em sofrimento. Uma decisão para acabar com o sofrimento de um ser que gostava incondicionalmente, sem cálculo. Sempre livre, sempre à solta. Eu e o meu filho a fazer festinhas até ao fim. Sob o olhar comovido do meu marido. Que nunca quis, por intuir que seria assim, quando se fosse. Por antecipar que cuidar de um animal implicaria isto. Também isto. Carinhos e palavras doces no fim da vida da Sushi.
Não tinha pedigree. Não era "de raça". Era relativamente pequena. Manchas castanhas e brancas. E não gostava nada de tomar banho. A única altura em que fugia de mim. Em que me ignorava ostensivamente, a uma distância prudente. Bastava ver-me com as luvas à CSI, para lhe dar banho. Mas, com uma argumentação implacável (tiras de bacon), a Sushi acabava por se render. Depois, ficava muito quieta e altiva, como uma rainha, enquanto eu a ensaboava. No fim, champôo de cerejas, para ficar perfumada. Não adiantavam nada, os meus esforços. Assim que se libertava das minhas mãos, ia a correr para a terra e para as ervas. Só para se sujar outra vez. Não havia nada a fazer. A natureza dela era assim. Quando é assim, só nos resta aceitar. 
É destas coisas de que nos lembramos, na ausência. Um lugar impreenchível. Um lugar que lhe pertencia por inteiro. Por isso, hoje não houve arranhões nas pernas, quando cheguei a casa. Nem olhares doces a pedir biscoitos. Logo à noite, quando fechar as portadas, não vou ouvir as patinhas dela a aproximar-se. Em busca de mais biscoitos e do último carinho do dia.
Porque a Sushi morreu. Um lugar vazio nos dias, agora. A minha cadelinha com nome de comida morreu. Eu estive com ela até ao fim. Pude dar-lhe isso.  

24 comentários:

  1. Mar
    Estou consigo nesse vazio.Nessa ausência.Vai recordá-la todos os dias. um animal dá-nos lições de verdadeiro amor. Desinteressado. Muito mais quando foram abandonados.Os seus olhos dizem gratidão.Falam o amor que sentem por nós. Mostram o que sofrem no desenlace.
    Perdi o meu Luvas em Julho.Era um rafeiro pequeno.Castanho. As patinhas eram brancas até aos joelhos.Pareciam umas luvas.Esteve connosco 14 anos. O coração cresceu muito e a dificuldade respiratória levou-o. Não quis mais nenhum.
    A Sushi vai permanecer na memória dos que lidaram com ela. O António cresceu um pouco mais com esse momento triste,mas cheio de amor.
    É isto a vida.
    Beijinhos para todos.
    Emília Melo

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  2. Aqui está a Sushi. E assim vai ficar na memória, com esse olhar doce e ternurento....
    Ainda há pouco, depois de termos falado num dia triste tinha dito ao Z. que era engraçado teres dado o nome à cadelinha de uma comida que não gostas. E até nos rimos um bocadinho com isso. E agora fazes tu mesma essa associação... Como te disse ao telefone, fica um vazio. Vais fazer um luto. E depois vais sempre lembrar-te do rolinho sushi que te trouxe tantas alegrias. E que tu trataste tão bem. Até ao fim. E ao próximo (se houver próximo), vais chamar de Nobu, certo?...
    Um beijo num dia triste. Com muita solidariedade e pensamentos ternos
    Babette

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  3. oh M, que pena:(((( Mas foi uma cadelinha com muita sorte na vida, em ter arranjado uns donos como vocês, não foi? A minha Verusca morreu em 2006 e apesar de, com o passar do tempo, doer menos lembrar-me dela, nunca a esqueci...um beijinho grande para todos aí em casa:)

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  4. Querida Mar,

    Compreendo-a bem. Também tive uma Zuca, cadelita rafeira e com mau feitio para os outros, meiga para os donos que queria proteger. Conheço os rituais dos banhos muito pouco desejados e o duche que cada um nós recebia, no final, quando ela se sacudia para retirar a água do corpo. Perdi-a num domingo de Páscoa, por doença, quando foi necessário tomar uma decisão para a não a ver sofrer tanto. Fui eu que estive com ela até ao fim acariciando-lhe a cabeça: Momentos que nunca esquecerei. Já passaram mais de 10 anos, mas continua presente na nossa memória. As suas histórias contadas e recontadas. Junto dos meus livros mantenho uma fotografia da Zuca, mas não precisaria desas imagem para a recordar, porque ela fez parte das nossas vidas.
    Um grande beijo

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  5. Vais tê-la sempre aí na melhor máquina fotográfica de sempre: a tua memoria!
    Porque ainda hoje, passados mais de vinte anos, recordo a minha "Tareca" e há dias (mais cinzentos e sombrios!) em que juro ouvir nitidamente "as patinhas dela a aproximar-se"!
    São os nossos animais, que de irracionais têm muito pouco...

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  6. Dizer que o que importa e o que fica é a felicidade que proporcionamos aos animais e eles nos proporcionam, é pouco e durante algum tempo sentimos o vazio das perdas, como de tudo o que gostamos. Também eu tive uma reação semelhante à do seu marido quando as (então) crianças cá de casa apareceram com o primeiro animal. Mas, quando morreu, percebi que só havia uma forma de suavizar a dor da sua perda: arranjar outro e, dessa forma, conseguir uma transferência de afectos. Hoje temos dois.

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  7. Olá Emília,

    Sei que sim. Que está. Mesmo quando não diz nada. Hoje sim. Palavras que não são discursivas. Que dizem e são muito, as suas palavras.
    A Sushi aconteceu nas nossas vidas. Não a procurámos nem escolhemos. Sempre gostei muito desse facto. E de ela ser rafeira. Pequenina e carinhosa. Andava sempre aqui. Sempre à espera de afecto. Desinteressadamente à espera.
    Não quis afastar o meu filho. Não o quis privar de se despedir da sua Sushi. Porque era dele que ela gostava mais. De uma maneira inteira. Ele chorou muito e deu-lhe beijinhos enquanto ela ia. No dia seguinte disse que a Sushi já devia ter chegado ao céu. E perguntou-me quando é que eu morria. Inevitável. A grande questão. Quando é que a mãe vai morrer. A mãe não sabe. Mas enquanto não, está aqui.
    E sim, a vida também é isto. O meu filho aprendeu esta parte da vida com a morte da Sushi.

    Um beijo para si. Pela evocação carinhosa do seu Luvas. Também sem pedigree. Como a minha Sushi.

    Mar

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  8. Bom dia, minha amiga doce

    Uma comunicação tão bonita, a nossa. Que até pressentiste que algo se passava. Falar contigo no final de um dia triste ajudou a amenizar. Irónico, o nome da minha cadelinha. De comida de que não gostamos as duas. E sim, se algum dia houver outro ser que gosta desinteressadamente, há-de chamar-se Nobu. Em evocação do restaurante onde comeste sushi pela primeira vez.
    Há um luto associado. Inevitável. Mas ficam as coisas boas que ela significou. Significa. Custa só o silêncio que ela deixou.

    Um beijo de sábado com sol. É bom haver sol.

    Mar

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  9. Para a LBarbosa:

    Creio que sim. Que foi uma sorte enorme ter acontecido assim. Que tenha vindo até nós. Procurei cuidar dela o melhor que pude. Muito carinho que ela teve. Nunca conseguia zangar-me com ela. Mesmo quando me arranhava as pernas, enquanto tentava sair do carro, ao final do dia. Ontem não houve nada disso. Só a memória.

    Um beijo luminoso para si. E muito grato pelas palavras.

    Mar

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  10. Olá minha querida Fa,

    Sei bem do que fala. Cada banho era uma espécie de provação. Não gostava nada. E teimosa, que era a Sushi. Mas acho que acabava por gostar, por ficar tão quietinha enquanto era mimada com espuma. Muitos mimos de espuma, a cheirar bem.
    Compreendo a sua memória. E sei que, mesmo que passem muitos anos, a memória da ternura da Sushi há-de permanecer. Não podia ser de outra forma. Assim foi/é com a sua Zuca. Também rafeira. Que foi embora num domingo de Páscoa. A Sushi foi embora antes da Primavera.

    Um beijo carinhoso. Pelas suas palavras. Para si.

    Mar

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  11. Oh Mar. Que tristeza quando parte alguém (ainda que de 4 patas) que faz parte do nosso quotidiano, que dá e recebe amor como a Mar disse, desinteressadamente. Que nos vem esperar à porta. Que fica triste quando estamos tristes e que correm "desentraitados" (palavra nova) quando estão felizes. Consigo imaginar o vazio que fica e que se sente muito.
    Tenho um Chaplin com um ano (um gato preto um pouco maluco) e não imagino as nossas vidas sem ele, apesar de todas as tropelias e móveis arranhados.
    Um beijo grande para todos e em especial ao António. E diga-lhe que sim, que no céu dos animais a Sushi o está a ver e a zelar por ele.

    Sandra, com carinho.

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  12. Minha happy single mother,

    Na minha memória, está o olhar doce e cheio de ternura da Sushi. Este que ficou aqui. A pedir carinho. Parecia sempre que estava a pedir afecto. Bela a evocação do teu animal de estimação de há vinte anos. Coisas muito gratas que ficam. Bom não nos impedirmos de dar afecto. Ainda que seja a um animal. Uma profunda humanidade nesse gesto.

    Um beijo para ti e para a tua princesa dos olhos grandes.

    Mar

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  13. Olá Arlete,

    O meu marido não queria. Dizia sempre que receava não estar à altura do compromisso. E também por antever isto. Eu sou diferente dele, nesse ponto. E então, ainda que corra o risco de sofrer, de me custar a ausência, quero sempre gostar. Foi assim com ela. Alimentei-a. Dei-lhe um nome. Uma casa. E montes de caixas de biscoitos em forma de osso. E agora, esta tristeza. Intercalada com as coisas muito lindas que deixou para trás, a minha cadelinha com nome de comida.
    Não sei se vai voltar a haver o som de patinhas ali fora. Se sim, sei que vou voltar a gostar. Apesar de conhecer a tristeza da ausência.

    Um beijo muito grato e carinhoso para si.

    Mar

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  14. Bom dia à minha Sandra dos livros,

    Sabia que sim. Que tem um gatinho. Já cristalizado no seu blog. Um ser que fica triste connosco. Que se alegra connosco. Um ser que não é racional. E quem disse que o afecto, o amor, é racional? Se sim, deixa de o ser verdadeiramente. Porque a essência de todos os sentimentos desinteressados, é a ausência de cálculo, de planos associados. Os animais ensinam isso. Também ensinam isso.
    Por isso, é muito bonito que a Sushi tenha ensinado essa forma de amor ao meu filho. E que tenha corrido muitas vezes com ele, a vigiar de perto o dono pequenino.

    Um beijo de sábado para si. Cheio de sol e de carinho.

    Mar

    PS: Gostei muito da sua palavra nova. Um neologismo carinhoso, a propósito das brincadeiras de um animal de estimação.

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  15. Eu não poderia ficar ausente nesta hora de perda para a Mar. Que longo caminho os cães percorreram, dede que abandonaram a selva até chegar junto do Homem! Jack London, um dos meus autores preferidos, ajudou-me a entendê-los e a saber lidar com eles. Uma festinha na barriguinha de um cão dócil, mas também respeitar, por exemplo, um cão de guarda.
    Um beijinho à Mar, que esteve à altura quando a sua bichinha precisou de si. E que foi generosa quando a adoptou. Boa pessoa, a Mar e o Filósofo, que a aceitou, se calhar protestando um pouco. Beijinhos e pense em adoptar outro animal, tem tanto amor para dar!

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  16. São sempre momentos que nos marcam para a vida... perdi a minha amiguinha de infância uma pastora alemã de olhar doce, ar pachorrento e que tolerava todas as minhas brincadeiras com ela. A Lassy, já passaram 23 anos e ainda hoje lembro do seu olhar de despedida que mais parecia que me diziam eu fico bem, toma conta de ti... Nunca mais consegui ter nenhum, um pouco por medo de ter que passar outra vez por tudo mas principalmente porque tenho medo de ocupar o espaço que lhe pertence no meu coração.
    Bjs e que as lembranças da Sushi vos aqueçam e confortem neste momento....

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  17. Olá Lusitana,

    Que bom que está. Muito bom estar aí. Apesar de esta ser uma hora que não é luminosa. Mas a vida também se declina nestas coisas, não é? E as horas passam. Também isso ensina muito. O meu filho está sempre a perguntar se ela já terá chegado ao céu dos cães. Se está bem. Creio que imagina uma espécie de viagem. Não sei.
    Não sei se sim, se haverá outra Sushi nas nossas vidas. Não foi uma coisa pensada, interiorizada ou negociada. Uma das coisas inesperadas da minha vida, a Sushi. Inesperada e bela. Vou guardá-la assim.

    Um beijo de domingo.

    Mar

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  18. Olá Vanda,

    Também a Sushi suportava amorosamente todas as brincadeiras e mimos do meu filho. A companheira das corridas de bicicleta. Ficam essas e outras coisas boas. Que ajudam a mitigar. Mesmo que tornem os olhos baços. Por serem a evocação de algo que já não há. Que existe na lembrança. Como a sua Lassy, que a ajudou a crescer. Que certamente lhe terá acrescentado sensibilidade. Pelo afecto gratuito que deu.

    Um beijo de gratidão. Pelo comentário com palavras doces.

    Mar

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  19. Mar,
    Reavivou-me a memória do meu Charlie Brown, também ele sem pedigree, vindo da rua. Acompanhou-me durante quase 14 anos, desde a casa dos meus pais e depois na minha própria casa. Travesso e ternurento q.b. No dia em que o deixei no veterinário, ainda sem saber que não regressaria, senti um silêncio tão triste assim que entrei em casa. Durante muito tempo a minha casa já não era a mesma. Já não tinha o latido do Charlie ao abrir a porta, nem o calor dele enroscado no sofá a meu lado ou aos pés da cama. Os animais podem ser uma boa companhia. Autênticos na sua ânsia por carinho e nada mais.
    Beijinhos.

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  20. Olá Mar,

    Queria apenas lhe dar um beijo de conforto. E ao António também.O António perdeu uma companheira de brincadeiras. A Mar de certeza que tem muitas lembranças, das boas, da Sushi, por isso lembre-se sempre dela, vai-lhe fazer bem. Sim. Diga que sim ao António, a Sushi está a tomar conta dele no céu do animais.

    Um beijo de conforto para a Mar

    Maria José Duarte

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  21. Olá Carla,

    Sei esse silêncio de que fala. Aprendi-o com a morte da Sushi. E a casa não é a mesma. E os meus gestos que eram os de todos os dias, ainda permanecem. Abrir a porta para ir dar o jantar à minha Sushi. Antecipar por segundos, ao sair do carro, as patinhas nas minhas pernas. Há-de passar. Isto. Para ficar a memória doce de tudo o que ela foi nas nossas vidas.

    Um beijo carinhoso pela sua perda. E pelas palavras que deixou.

    Mar

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  22. Olá Maria José,

    Muito grata pelo conforto. Para mim e para o meu filho. As coisas seguem, não é? Isto foi vivido. E tentámos vivê-lo em conjunto e com verdade. Sem ocultar este facto irredutível ao António. Creio que não iria perdoar-nos, se tivesse acontecido de outra forma. E agora, ir respondendo às perguntas o melhor que sei. E pensar num céu inventado para os animais, para dar conforto às questões de uma criança.

    Um beijo com gratidão e carinho.

    Mar

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  23. Ainda há pouco nos conhecemos e vim espreitar o seu blog, este post toca-me particularmente pois tenho dedicado parte da minha vida a defender estes pequenos seres que só quem ama entende...
    Veja o meu blog: www.patavermelha.com se gostar e puder ajude um animal em memória da sua SUSHI.
    Sou a Helena do Império dos Sentidos

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  24. Olá Helena:

    Que bom uma dedicação deste teor. Tão necessária sempre, a dedicação. Vou ver o seu blog. E gostava muito de ajudar. Gosto sempre de ajudar. Obrigada pela visita. Depois de ter ficado maravilhada com a sua loja. Um pequeno tesouro no Porto. A que apetece regressar em busca de beleza.

    Um beijo.

    Mar

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